Eu vou sentir saudades de ti


Minha amiga Beibe do Brasil sempre me disse que eu tava mais pra Billy Elliot que para Jean Willys. Hoje, depois de anos de resistência consciente, assisti ao filme.

O filme é equilibrista: anda... ou melhor, dança numa navalha sedutora entre a comédia e o drama. Mas não quero analisá-lo. Quero senti-lo.

Acho que a Beibe me acha mais parecido com o Billy porque ele é inglês. Eu não sou inglês, mas tenho sotaque! Me identifiquei com o menino nas suas primeiras aulas de ballet: desastrado. Me identifiquei também nos confrontos com o pai. As masculinidades ‘másculas’, de minerador do interior da Inglaterra dos anos 80, são um paredão rochoso contra o qual se lança aquela suavidade masculina que enxerguei com todas suas cores no Billy. O menino é uma graciiiiiiiinha, como diria a Hebe, um lindo, um querido! Quando franze suas sobrancelhas ganha um ar de delicada brabeza que pra mim é fa-tal. Tiro&Queda.

Sim, me emocionei. Houve uma cena na qual eu deixei escorrer uma lágrima, menos como uma lágrima em si e mais como um suor deste espírito duro que aqui escreve (por que torturar criancinhas pra tornar-se um insensível quando se nasce com o ascendente em Virgo?). Foi aquela em que o Billy entra no ônibus para ir morar em Londres e olha pela janela. Seu irmão mais velho o encara e diz algumas palavras. O Billy não o ouve e bate no vidro, grita dentro do ônibus, ansioso por escutar o irmão. O ônibus arranca, segue pela rua em sua viagem que vai dar direto na Real Academia de Ballet, e o Billy não consegue saber o que o irmão tenta dizer.

É claro que o Billy vira um Deus da dança. E é claro que o Billy tem um amiguinho viado que é apaixonado por ele. E é claro que o Billy é super compreensivo em relação à sexualidade desviante do amigo. Afinal de contas, é um filme, né, gente? A cena com a qual eu mais me identifiquei foi aquela em que o amigo gay é pego dançando ballet usando um tutu (aqueles saiotes de tule que as bailarinas clássicas usam) pelo pai do Billy. Ótema! Porque o tutu cai bem em todo o tipo de quadril!

Todas as fases do Fim - A Conformidade, parte 6

Sabe, que merda, pra eu ser alguém socialmente aceito eu tenho que ficar com todo mundo, tenho que trepar com todo mundo. Porque é inadmissível que alguém esteja solteiro. Porque se alguém ta solteiro é sinal de que tem algum problema – grave – com essa pessoa. Isso é culpa da nossa amiga carência. É sempre a carência. E é também sempre o medo de ficar sozinho, medo de nós mesmos, medo de acordar, de almoçar, de tomar banho e dormir sozinho. Medo de passar um dia sozinho. Medo de dançar sozinho, de beber sozinho. Quantas e quantas vezes eu comentei, lembra aquela vez?, eu comentei que bebi uma garrafa de vinho sozinho em casa uma noite (ta bom, eu sou bebum, adoro vinho, qual o problema, o fígado é meu e a cirrose também) e a guria me disse “aaaaaiii, que deprê!!! Beber sozinho em casa!!! Como tu é triste!!!”. Eu? Triste? Meu anjo, eu sou é muito feliz porque eu consigo fazer isso sozinho, já que a minha própria companhia não é algo que me assusta, pelo contrário, é algo que me apraz. Lembra disso? Pois é. Depois chamei ela de ignóbil, burra e ignorante, disse que o cabelo dela era mal-cuidado, que o cabelo dela era seco, que o cabelo dela era quebrado e bicolor, que ela tinha dentes podres. E que deveria ter meses que o namorado dela só gozava se pensasse estar comendo uma boneca inflável. Ela me chamou de bicha, a coitada. Eu disse “bicha, não! Pra ti é DONA bicha, sua vaca”. É, é isso aí. Não dá pra sentir pena de nós próprios, sabe?
Daí eu virei pra ele e disse “ta, eu acho que deu, né”, “deu o quê” ele me perguntou, “deu entre nós. Acho que a gente já se falou tudo. Eu sei que é complicado, mas não acho que a gente precise ficar aqui se digladiando até amanhã. Nem até o próximo minuto”. “É, eu também acho... foi tudo muito pesado”, ele disse. “Não te culpo por nada que tu me disse, apesar de ainda me doer bastante e apesar de eu ainda gostar de ti, porque tu pode não acreditar, mas eu gosto muito de ti. Desde a primeira vez que te vi. E eu entendo que tem vezes que não adianta a gente gostar muito de alguém porque esse alguém - ora que pena! - não vai ficar com a gente, porque esse alguém simplesmente não gosta da gente. Simplesmente, sabe” e eu queria muito um lenço, sabe lenço? Não, não os de pano (imagine se eu sou alguém de ter lenço de pano), de papel mesmo. Quando eu choro meu nariz escorre horrores. Daí eu peguei meu livro, e ele “que livro tu ta lendo”, “é um que explica a pós-modernidade” eu disse, “ah, que legal, e o que é a pós-modernidade?”. Eu virei pra ele, ele me olhou bem nos olhos. Fazia tempo que eu não olhava ele nos olhos, eu tinha medo. Olha o medo aí outra vez. Eu não encarava ele, fazia horas que eu não via sequer a sobrancelha dele (que ta tri mal feita por sinal), eu tinha vergonha de encarar ele. Mas ali eu encarei e eu sorri. “Compra um desses e lê. Leia muito, discuta com os amigos. Assim tu vai adquirindo cultura”, “eu não tenho cultura, né?”, “não, tu não tem cultura, mas isso é o de menos porque o mais importante e o mais raro tu já tem que é a inteligência”. Eu não tava defendendo ele, também não tava jogando confete. É verdade que ele é inteligente. Quando a gente gosta de alguém a gente quer que essa pessoa aprenda por si mesma, a gente quer que essa pessoa ande com suas próprias pernas. Foi por isso que eu mandei ele comprar e ler o livro em vez de eu contar a historinha. A gente quer que essa pessoa brilhe com sua própria beleza. Sabe esses namorados e namoradas tri ciumentos e ciumentas? Isso aí é mais que ciúme e muito pior: é inveja. Se um namorado é ciumento é porque ele não quer que o companheiro ou a companheira chame a atenção mais que ele próprio, ele não quer que o companheiro ou a companheira fale mais que ele próprio, seja mais bonito ou bonita que ele próprio. É tudo uma questão de ego. A gente sufoca o outro em nome de um ciúme, que na verdade é inveja, pra poder anular o brilho e a luz do outro. É a conclusão à qual eu cheguei. E eu gosto muito dele, ta, eu gosto sim, é, sou mulher de brigadiano, há-há-há-que-engraçado, mas eu gosto dele e eu quero que ele brilhe muito por aí. Mas bem longe de mim. Quero que ele pegue muitos caras sarados & definidos & musculosos, por mim ta tranqüilo. Ele é perspicaz o bastante pra um dia se dar conta que os abdomens de gominho e as costas de nadador e as pernas de corredor vão apodrecer e servir de comida pra milhares de centenas de vermes. É bom ter um corpão? Mas é claro que sim. Mas corpão é um detalhe (que nos toma tempo, dinheiro, paciência e uma pitada de ignorância) perto de outras características que não podem ser adquiridas só pelo exercício. Inteligência é uma delas. Bom humor é outra. Simpatia também. Um corpão, meu bem, a gente compra: pagando uma academia, um personal trainer, uma lipo-escultura, shake de proteína, anabol. Inteligência a gente não compra só comprando um livro e lendo. Nem a alfabetização a gente compra só pagando escola! “Tu me acha inteligente” ele perguntou, “acho sim, e acho que tu tem que te dedicar mais aos estudos. Só ter um pouco mais de disciplina. De qualquer forma, a pós-modernidade” eu explicando “é um contexto sócio-cultural que alguns teóricos concordam em dizer que vem depois da modernidade. Alguém é pós-moderno quando faz milhares de coisas ao mesmo tempo, quando É milhares de pessoas em si mesmo, quando tem vários círculos de amigos, quando em cada um desses círculos essa pessoa adquire identidades novas, mutantes. Às vezes até opostas. Pós-modernidade são frases telegráficas, idéias soltas que não obedecem a nenhuma regra de escrita padrão. Pós-modernidade são os laços efêmeros que a gente mantém com os outros, é a negação de qualquer institucionalização, tipo o casamento. Ou a família. Ou a escola. Por exemplo, quando a gente ‘fica’ com alguém na boate, isso é pós-moderno. Nossos pais não poderiam jamais ter ‘ficado’, se dado uns beijos, trepado atrás da moita depois de umas doses de vodka e ‘tchau, um abraço, até mais, a gente se fala’. Porque nossos pais são modernos, e a gente é pós-moderno” eu expliquei bem didaticamente. “Então eu e tu tivemos um laço efêmero aquela noite?”. “É, tivemos. Uma relação não-contratual, eu diria”. “Somos pós-modernos, então?”. “Eu diria que sim” eu respondi.
Daí ele se levantou e disse que tinha que ir embora, não sei o quê. Eu disse que também tinha que ir, que eram muitas emoções pra um pôr-do-sol só. Lá pros lados do Guaíba deveria estar lindo porque a cor do céu no horizonte era um vermelho-alaranjado, sabe? “Vamos comigo até a João Pessoa?”. “Por que eu iria?”, “porque eu gosto da tua companhia, apesar de tu ser chato. E arrogante. E ter milhares de cravos no nariz e pêlos encravados na barba”. Filho da mãe, né? Eu fui... bem feliz, eu fui indo. Os dois iam em silêncio. E eu pensei naquele momento que quando a gente gosta de alguém, a gente também deixa esse alguém seguir seu caminho, sabe? A gente deixa ir, a gente deixa seguir, a gente libera esse alguém para viver aquilo que tem que viver e quer viver. O caminho dele quem tem que trilhar é ele, ninguém mais. Esse desapego do outro é tri difícil, é doloroso, porque ninguém nos ensina a ser desapegado das coisas – e das pessoas. A gente sempre quer pra nós mesmos. Quando a gente gosta, além de querer ver o outro bem, feliz, a gente também tem que entender que o jeito que o outro vai achar pra ser feliz tem que ser respeitado. E se ele queria ir pra Redenção pra caçar os carinhas sarados, deixa o guri, sabe? Se ele queria ir pra noite fazer umas baladas de tequila, cerveja, maconha e chá de cogumelo, deixa ir. Eu também tenho o meu caminho pra seguir. Que não fica do lado do dele. Eu ia voltar pra casa pra limpar o vaso sanitário; ele ia voltar pra casa pra bater punheta. Pensando nos caras sarados. Me conformei com aquilo, parei de me debater. Não parou de doer, não, ainda doía, sabe, doía mesmo, mas eu estava certo que daquele jeito era menos pior. Era mais correto. Não com ele, mas comigo.
CONTINUA..........

Cartas a uma Jovem Bicha - Astolfo

Astolfinho Jr.
Leia essa carta como se ela não existisse. Como se o papel estivesse em branco, como se essas letras fossem pálidas e escondidas, como se nada houvesse antes dessa carta, como se nada existisse neste instante. Palavras são apenas sinais gráficos que nós, humanos que somos, tentamos convencionar para articular e tentar expressar o que não se expressa, o que não se vê, o que não se mostra: sentimentos. Leia essa carta como se estivesse lendo o que se passa pelo meu coração, pela minha mente, pelo meu espírito. Quero que tu sejas de tal forma diferente depois dessas palavras que tenhas certeza que elas existiram. Mais que isso: quero que tenhas a certeza de que elas vieram de mim e de mais ninguém. O presente que te dou também é um presente que dou a mim mesmo.
Penso que devo falar de mim e de ti pelas desculpas. Pela parte em que se pede perdão, em que se pede compreensão, em que se pede o obséquio da paciência. Essa é normalmente a última parte, o último respiro profundo antes do mergulho no mar sem fim do adeus. Quando, entre duas pessoas, uma pede perdão para outra é sinal que essa relação já chegou num ponto tal de saturação que é capaz de não haver mais redenção para o motivo que faz essas duas pessoas estarem juntas. Peço desculpas pela aflição com que te chego nos momentos mais inoportunos, Astolfo. Peço desculpas pela ansiedade doentia com que interpreto tuas mensagens subliminares, pela pressa nas respostas que espero de ti, enfim, peço desculpas por tudo que espero de ti. E eu espero muito. Ignore meus surtos possessivos; o desprezo é a arma que mais me fere. Só te peço para não me ferires muito porque tudo em mim dói mais que o necessário, tudo em mim arde mais que o possível, porque sou dramático e exagerado. Não me fira, Astolfinho, mais do que tu feririas a ti próprio, pois se sou teu amigo é porque eu sou tu, e tu és eu de alguma forma. Estar em harmonia com o outro é vibrar na mesma freqüência que o outro, mesmo estando em realidades diferentes. A harmonia que tu me trazes é minha, mas é tua também.
Segue na direção em que teu medo cresce, Astolfinho.

Eu vi o Rey

O álbum "O Chamado", de Marina Lima, marcou de maneira criativa minha juventude... Juventude? Um dia eu fui jovem? Bem, de qualquer forma, esse é um álbum que cada vez que escuto me faz lembrar de belas situações. É um clássico. Qual não foi minha surpresa noite dessas, com uma companhia para me acariciar os pés, que voltei a escutá-lo depois de anos empoeirado na minha prateleira. Ali há uma música, "Eu vi o rei", cujos versos caíram bem assentados a esse alguém a quem os dedico agora, com adaptações. Sempre há um Rei - no meu caso, um Rey - nas nossas vidas, às vezes somos nós próprios, às vezes são uns que vão e que passam. Sua majestade depende de como a cultivamos.






Letra e música: Marina Lima/Antônio Cícero
Adaptações livres (em itálico): Luiz Felipe


Eu vi o Rey chegar (atrasado)

Um Rey assim
Que não escuta bem
Que adora a luz
Prefere olhar
O horizonte, o céu
Longe daqui
É tudo seu...

Eu vi o Rey chegar (atrasado)

Seu sangue azul
Ninguém diz de onde vem
De que sertão
De que mar, que além

Eu vi o Rey chegar (atrasado)

Um Rey assim
Cultiva a solidão
Sombria flor
No coração

E claro é
Que o pêndulo do amor
Às vezes vai
Até a dor

Eu vi o Rey chegar (atrasado)

Devo dizer
Que eu não sofri demais
Mas devo dizer
Que acordei
Mesmo sem ser
Tudo que eu imaginei
Devo dizer
Que eu o amei

Eu vi o Rey chegar (atrasado)

Todas as fases do Fim - O Arrependimento, parte 5

Os olhos verdes dele se arregalaram “tu ta chorando” ele perguntou, “é claro que eu to chorando, seu viado escroto, é muito difícil ter que escutar as coisas que saem dessa tua boca suja” eu disse entre soluços e tentando limpar a água que ainda escorria dos meus olhos. É, eu falei “viado escroto” e “boca suja” porque eu tava muito brabo, muito doído por dentro, eu tinha que agredir ele de alguma forma. Sim, eu também acho que agressões nesse momento não valem de muita coisa, mas o que vale numa hora dessas, hein? Vale é falar tudo que se sente, tudo que se pensa, vale é celebrar a sinceridade e a honestidade, vale é dar tapas & beijos, vale é chorar por um sentimento que te signifique alguma coisa. E ele significava tanto pra mim. Depois que eu chamei ele de “viado escroto” entre lágrimas, ele não falou mais nada. Ficou ali sentado do meu lado mexendo com uns galhos secos no chão por horas, e eu sentado do lado dele com a mão tapando a boca e chorando por horas, e as pessoas passavam caminhando e correndo e umas passavam de dupla, de trio, passavam conversando, uns cães vinham cheirar nossos pés (a merda em que a gente estava pelo jeito não era só merda moral), passavam umas pessoas de bicicleta...
E veio uma criança, sabe? Um gurizinho coisa mais linda, negro, de cabelo power, uns olhos enormes bem pretos, deveria ter no máximo uns três anos. Tava de fraldas e de sandálias, veio correndo na minha direção e parou bem na minha frente, ali, a cinco passos de mim. E a criança ficou me encarando, sabe? E eu chorando e chorando, e a criança parou na minha frente e me encarou mesmo. E eu decidi encarar a criança. O guri ficou me olhando e franziu um pouco as sobrancelhas, tipo ‘por que tu ta chorando’, eu pensei ‘to chorando porque eu gosto muito desse rapaz aqui do lado, mas ele não gosta de mim do mesmo jeito que eu gosto dele, e ele ta me dizendo umas coisas bem feias que estão me deixando dodói’, a criança me olhou como quem diz ‘ah, eu sei o que estar dodói, eu às vezes também fico dodói e tomo remédio que me deixa melhor’, ‘mas do jeito que eu to dodói é diferente, do jeito que eu to dodói não tem bem um remédio que a gente possa tomar pra ficar melhor’, e a criança franziu de novo as sobrancelhas e me pareceu dizer ‘mas que dodói é esse que não tem como ficar melhor?’, ‘é um dodói que um dia tu vai ter também’, ‘mas eu não quero um dodói que não sara nunca’, ‘mas esse dodói tu vai querer ter, sabe, tu vai querer muito ter, tu vai gostar de ter, tu vai querer mais sempre e sempre, porque é um dodói que às vezes faz a gente sorrir bastante, às vezes faz a gente ficar bem feliz, só que machuca também, e deixa a gente de cama, mas é tão bom estar dodói assim, é gostoso’. A criança me olhou bem desacreditada, e eu inclusive escutei o gurizinho ‘mas se é tão bom assim, não podia se chamar dodói’.
“Vem, guri, deixa o titio tomar o chimarrão com o amigo dele, vem, vamos lá ver o chafariz que ta ligado, lá ó...”, a mãe pegou o piá ela pela mão e levou pra perto do chafariz. Bah, eu estava errado, sabe? Desde o início, bem errado. Não em chamar ele de “viado escroto”, porque ele é viado e é escroto também, mas errado em pensar que tudo tem que ser assim, sofrido, se jogando na cara um monte de palavras duras, me conformando com o fato de ele ter ATÉ curtido ficar comigo, de achar que eu ATÉ dou pro gasto, de dizer que me acha ATÉ bonito. Porque ele ATÉ poderia estar certo, MAS NÃO ESTÁ! Eu estava errado o tempo todo, sabe, porque a gente aprende desde cedo através das músicas e dos filmes que a gente ouve e assiste por aí que a paixão, ah!, a paixão só é boa quando é sofrida, só é válida quando é ganha à força, só é recompensada quando parimos ela a fórceps de um ventre que não existe. Sabe assim? A gente arranca paixão de onde não tem. Beber por causa de paixão, beber porque te deram um fora, beber porque te deram um buquê de flores. Beber porque o carinha com quem tu ta ficando há uns meses te pediu em namoro, beber porque o carinha com quem tu ta namorando há uns meses ficou com uma amiga tua. Ou amigo teu, bah, aí é foda, mas pode acontecer, hein?, eu sei de casos. É, a concorrência agora é desleal. Um mundo bem competitivo esse dos afetos & sexo & relacionamentos, não é mesmo? Não é mais apenas metade da população que conta na hora de se apaixonar ou fazer sexo, agora o povo todo ta se querendo, e viva Sodoma e Gomorra. Eu tava muito errado em relação a ele, não que eu esteja defendendo ele – porque não estou – mas eu tinha que me curtir mais. E saber quais são minhas qualidades. Porque é assim, eu acho, que se conquista alguém, quando a gente é seguro daquilo que a gente tem de bom. A criança tava certa, que história é essa de “dodói”? Desde quando “dodói” é bom? Se dói, não pode ser bom, a gente não pode querer se machucar, imagina! Paixão é boa quando nos faz bem, e somente quando nos faz bem. Porque de coisas que nos fazem mal o mundo já ta cheio. Pensa comigo: cartão de crédito. Bah, cartão de crédito é uma coisa que faz muito mal pra pessoa. Inveja também faz. Trabalhar num lugar onde a gente não quer estar, isso faz mal. Passar aspirador no carpete de casa toda a semana faz mal pra coluna. Chega, chega, aquilo lá não podia mais me fazer mal, eu me dei conta que eu tinha feito tudo errado desde o início. Eu queria resetar o meu HD pra começar tudo de novo, mas eu tava ali com o cara, né?, ele tava ali do lado ainda, mexendo com os galhinhos secos no chão. E eu quieto, pensando em todas essas coisas, ainda bem que parei de chorar e acabei com meu showzinho particular de final de tarde na Redenção. Minha única saída era pressionar ‘esc’.
CONTINUA.............

Cartas a uma Jovem Bicha - Emboletado

Garota:

Fiquei de cara com tuas anfetaminas. De cara, com o beiço lá no chão. Até meu cílio postiço esquerdo descolou.
Pára de arranjar soluções rápidas para problemas de longa data; o que há muito está errado geralmente exige muito para se pôr no lugar. Não pense que as boletas vão te dar "uma chance" com tua orientadora, pois tu sabes que tu, somente tu, de preferência sem anfetaminas no corpinho, é que tem que se dedicar mais aos estudos (fiz a linha 'mãe' agora).

E que história é essa de "remédio pra emagrecer"? Menina, se o que ele te deu foi "remédio pra emagrecer", tendo em vista o histórico de tráfico do sujeito em questão, ele certamente deve ter te dado anfetaminas britânicas - as mais porradas. Pra emagrecer? Ai, moça, te respeita, né? Começa que eu acho esse lance de "emagrecer" coisa de donzela, e no teu caso, coisa de bicha passiva. Onde já se viu, homem querendo emagrecer?! Homem que é homem vai correr no parque, debaixo de chuva, sob trovões. Até no mato se for preciso. Homem que é homem não quer "emagrecer", quer "ganhar e definir músculo". Homem que é homem levanta peso na musculação, é óbvio que sem luvinhas (isso é coisa de frutinha) para as mãos ficarem cheias de calos.

[...] Eu concordo que temos que cuidar do nosso corpo, mas concordo por uma única razão: ele é nossa propriedade, e sendo nossa propriedade, podemos moldá-lo e esculpí-lo da forma que nos dê mais prazer. Isso não inclui se jogar numa academia, ou tomar boletas, para ter um corpo "que os outros pensam que nós devemos ter". Isso quer dizer, aí sim, que nosso corpo e nossa vida podem ser entendidos como obras de arte a serem pintadas/eculpidas/moldadas/escritas, e temos o direito de ser aquilo que nos faz sentir mais prazer sendo, desde que sejamos aquilo que nós acreditamos que devemos ser. [...] Eu penso que tu tens que ser aquilo que tu queres que tu sejas, para que depois os outros aprendam a reconhecer teu valor. E os outros só vão reconhecer teu valor se tu te afirmares da forma mais original possível.

OK, ainda tá se achando gordo? Tudo bem, vá fazer exercícios. Mas faça aquilo que te dá prazer, amiga. PRAZER, menina! Extraímos prazer de várias situações, não apenas da punheta e do coito anal.


Fui reconhecido na rua por 4 pessoas graças ao programa na MTV. Uma delas, inclusive, no Ocidente sexta à noite. Vou fazer uma ligação bem indignada para a produção exigindo a queima da fita original desse debate de merda. Cansei de ser sexy & famoso ao mesmo tempo.

Hoje tive reunião de orientação com meu professor. Ele amou meu projeto, ficou tão entusiasmado com as idéias que tive e com os conceitos que criei para poder analisar o XXXX que imediatamente marcou outra reunião para semana que vem. Eis que vejo uma estrela brilhando, beeeeeeeeem lá longe, no céu da bicha aqui. Haverá o dia em que eu queimarei cuecas em praça pública gritando palavras de ordem contra o movimento gay brasileiro: cansei dessa vida de camela, dessa vida de cadela, dessa vida de potranca. Eu quero, isso sim, é ler, estudar, escrever meus artigos (e minhas crônicas e meus contos e meus romances), dar palestras, participar de seminários (como ouvinte e como convidado), quero dar e assistir a aulas, quero falar, falar, falar, falar e fazer as pessoas se arrastarem de si mesmas. Quero fazer as pessoas se questionarem, quero problematizar, quero ver outros ângulos de outros assuntos.

E, é claro, quero que as pessoas me arrastem de mim mesmo. Quero que alguém me mexa-remexa-abre-e-feche-me-chame-de-gaveta, minha Menina do Rio! Sabes por que eu não me apaixono mais, por que eu não caio de 4 por mais ninguém, por que os homens (as bichas, né, meu bem? vamos falar sério?) não me interessam mais? Porque não há mais ninguém, exceto alguns poucos amigos entre os quais estás tu, lindinha, que são capazes de me surpreender com idéias e atitudes originais e autênticas. Tá todo mundo saindo de uma máquina e caindo numa imensa bacia de robôs pré-fabricados.

Um beijo, amada, um beijo e me ligue sempre!!

Luiza Felpuda, A Bárbara

Todas as fases do Fim - O Desespero, parte 4

O banco onde a gente estava sentado ficava de frente para o sol se pondo. Enquanto ele esfregava os olhos por causa da erva-mate, eu olhava pro sol lá atrás dos eucaliptos e jacarandás, havia naquela hora grandes nuvens que se erguiam altas lá no céu, e os raios de sol se projetavam para além delas em feixes de luz parecidos com holofotes que miravam em algum lugar muito distante de onde a gente estava. As nuvens tinham aura aquele dia. Passou um rapaz fazendo seu jogging diário: calção de corredor de maratona, sem camisa, mp3 player no braço esquerdo (bíceps e tríceps musculosamente bem definidos), pêlos bem distribuídos pelo peito e barriga, ah, não, não, aquilo não era uma barriga, aquilo era um abdome, porque tu sabe que eu tenho barriga, mas tem caras que têm abdome. É, abdome, com gominhos tipo de tábua de lavar cueca, de lavar meias sujas encardidas, sabes? Abdome que dá vontade de lavar meias sujas encardidas nele, ficar horas ali forçando nos gominhos até deixar o algodão das meias bem branco, bem macio, e depois pôr elas pra secar no varal que fica logo abaixo do abdome de gominhos. Digo, da tábua de lavar. E as pernas do rapaz corredor, bom, enfim, pernas que não eram grossas, mas nas quais era possível de passar em revista a todos os conceitos de fisiologia muscular, fibra por fibra pulsando cada vez que o pé pisava no chão, óculos escuros escondendo, quem sabe?, um par de olhos verdes, um par de olhos azuis, um par de olhos caramelo, um par de olhos cinza... Um belo par de olhos, tenho certeza. Um boné que deixava os cabelos, molhados de tanto suor, um pouco rebeldes saindo pra fora aqui na nuca e por cima da orelha. Não, não como o meu cabelo, porque em mim isso é a moldura do meu sofrimento, mas como nele, só no rapaz corredor esse cabelo ficava bem porque balançava enquanto ele corria (aliás, era a única parte do corpo dele que balançava enquanto ele corria. Ah, não, mentira. Tinha outra parte que balançava também, sabe aquela parte? É, o varal de estender roupas logo abaixo do abdome de gominhos, essa mesmo, que parecia ser um belo varal pra estender lençóis king size). E o rapaz corredor passou. Ficou tão legal de ver o rapaz corredor, lindo como ele só, contornado pelos raios de sol por detrás das altas nuvens, lindas como elas só, foi uma paisagem tão bonita e tão ameaçadora, tão significativa e tão pungente, porque o filho da puta (o filho da puta que estava sentado do meu lado, e não o filho da puta com gominhos que estava fazendo jogging, sim, porque qualquer cara com gominhos é um filho da puta em potencial até que prove o contrário, hahahaha, to brincando... Não to brincando nada), o filho da puta sentado do meu lado tinha até esquecido da erva-mate nos olhos dele e parou por alguns segundos pra dar um confere nos gominhos do rapaz corredor para em seguida, voltando a esfregar os olhos, tecer o comentário “bah, mas com esse aí eu até perdia uns trinta minutos”. Larguei a cuia junto da garrafa térmica e me engasguei com uma maré de lágrimas e soluços, tudo muito discreto, é claro, porque a gente cai do salto, a gente perde a peruca, a gente borra o rímel, mas jamais perde a compostura. Mas é verdade que me engasguei com aquela situação e com as palavras que ele recém tinha dito. Sobre mim e sobre o rapaz corredor. Porque tudo o que ele tinha dito sobre mim, todas as frases complexas, as palavras cáusticas, todos os apontamentos dos meus defeitos, tanto físicos quanto morais, as recriminações, as reclamações, tudo sobre mim ele tinha me dito de um jeito bem menos franco e honesto do que a simples frase que ele dedicou ao rapaz corredor. Escorei meu braço na garrafa térmica (ainda tinha água quente ali, mas jogar na cara dele pra quê? Pra ele perder mais tempo esfregando o rosto? Pra ele sair correndo pro hospital? E pra eu ficar sem água de chimarrão até o final da tarde? Porra, eu tinha até botado um chá pra ficar mais gostoso, aí eu já achei que não valia mais a pena jogar coisa nenhuma nele), e olhei pro lado extremo oposto de onde ele esfregava os olhos por causa da erva-mate que voou e chorei e chorei e chorei e chorei muito, mas sempre em silêncio, sempre bem quietinho porque quando a gente chora a gente sempre perde um pouco da elegância, então chorar quietinho nos deixa ainda um fiapo de dignidade que podemos vestir. O fiapo não é Prada, mas a gente se sente o próprio diabo, né? “Tem água ainda” ele perguntou, eu respondi mentalmente ‘muita água caindo dos meus olhos’, mas não pronunciei. Era hora de eu esfregar meu rosto, enxugar as lágrimas. Respondi com aquela voz anasalada de nariz entupido “não tem mais nada pra ti aqui”.

CONTINUA..........

Todas as fases do Fim - A Verdade, parte 3

“Tu e essa tua agressividade gratuita sempre”, ele disse. “Gratuita? Gratuita? Eu escutei ‘agressividade gratuita’? Não pode ser...”, não podia ser, não podia. Eu que gosto dele, eu que tenho que escutar com quantos ele flertou numa tarde de calor e pouca roupa na Redenção, eu que tenho que ficar com cara de paisagem quando escuto comentários do tipo ‘bah, mas com aquele cara eu até perdia uns trinta minutos’, eu que tenho que deitar minha cabeça no travesseiro every fucking night e rolar na cama por horas só pensando nele, pensando por onde ele andará, em que novo corpo ele se revolverá naquele instante, pensando em que ele estará pensando, e depois eu poso de agressivo. E de agressor. E por acaso tudo por que eu passei por gostar dele não foi também uma agressão? “Sim, tu sim, sempre arredio e na defensiva, sempre agressivo com os outros, sempre mal humorado quando alguém não faz tuas vontades, bah, essas coisas que tu disse de mim não são verdade. E as coisas que tu diz de ti mesmo também a maioria não é verdade”. Oi......? Como assim, ‘a maioria das coisas que tu diz de ti mesmo não é verdade’? Tu entende minha aflição agora, né? O guri estava ali me dando nos dedos, quando na verdade era eu quem deveria esculachar com ele até o último pentelho e deixar ele com a cara lá no chão. Mas, pois é, eu tive de escutar isso & muitas coisas piores. Ele se virou pra mim no banco e subiu a voz “porque tu é assim. Arrogante e chato. Pra que me dizer essas coisas?”, e eu pensei ‘aloooooooooouuuuu, é tu quem tem que calar a boca, bicha escrota’, e a minha indignação foi tanta que eu me calei. Sim, fiquei quieto, tomei nos dedos, fiquei nervoso e fiquei quieto. “Eu to há horas pra te dizer que eu até curti ter ficado contigo aquela noite”, o quê? ATÉ curtiu ficar comigo? Fiquei passado, né? “mas tu é tão distante e frio que nem deve ter percebido que teve um dia que eu te convidei pra sair, pra gente poder ficar de novo, mas tu sequer respondeu meu convite” e eu juro que eu não quis ir naquela boate porque eu não me sentia na obrigação de ver ele dando em cima até de poste de luz, por favor, me respeite, “outro dia tu foi lá em casa e tu queria tomar água, e não tinha água, e eu saí pelo prédio atrás de água pra tu beber, consegui a porra da água, só porque tu pediu, só porque tu queria beber, e tu me disse um ‘obrigado’ que eu duvido que alguém tenha escutado, eu mesmo não sei ainda se escutei tu articular essa palavra na tua boca ou se foi só uma fantasia da minha cabeça, sabe quando tu deseja muito ver ou ouvir alguma coisa que tu acaba acreditando em coisa que não existe”, e foi me subindo um ódio por dentro, uma raiva, um calor, e eu continuava tomando aquela água quente de chimarrão tão rápido que nem senti minha língua, minha garganta e o céu da boca queimando, mas eu sentia minha mão tremendo cada vez que eu enchia a cuia de água porque eu não conseguia acertar o lugar certo de derramar a água e acabava respingando na minha mão, me queimando (por dentro e por fora, eu estava todo queimado), “Tu até é bonito, cara, tudo bem que não tenha corpão e que seja um pouco magrinho demais, mas tu até que dá pro gasto, tu tem uma pegada legal, mas tu usa umas roupas meio forçadas às vezes, umas calças nada a ver que não te valorizam, sei lá, tu tem uns gestos muitos circulares e uma voz indefinida, num tom estranho, sei lá, um cabelo muito comprido aqui assim nas orelhas e atrás, na nuca, tu tem uns tufos de pêlos que te deixam parecido com um personagem peludo de Star Wars, um pescoço meio comprido demais também, e se a gente chega perto do teu rosto dá pra ver os milhares de cravos que têm no teu nariz e na tua testa, os pêlos de barba encravados logo em baixo do nariz, bah, é meio dangerizante, e esse contexto todo te deixa um pouco feio, sem graça, sem personalidade nenhuma. E me desculpa, ninguém quer ficar com alguém assim, com alguém nada a ver, e tu é todo nada a ver”, ele continuou falando, e eu só fechei os olhos porque eu não queria ver nada, não queria escutar nada, aquilo tava machucando e machucando e machucando e eu queria fugir pra um outro mundo qualquer de dentro de mim, “ou daquela outra vez que a gente tava naquela festa anos 80 e que pra onde tu ia eu ia junto pra ver se tu te ligava que eu queria dançar contigo, ficar contigo, e tu sempre fugindo, e quando eu tentava falar contigo tu sempre te saía com uma lição de moral imensa, um discurso ridículo sobre ética nas relações pessoais, e sobre infantilidade emocional, e sobre como eu sofria de uma síndrome de Peter Pan. Isso foi me enchendo o saco, foi saturando, foi me incomodando. Porque tu sempre tem alguma coisa pra dizer, tu tem sempre um ponto de vista e uma opinião sobre alguma coisa, tu sempre pensa, pensa, pensa, tu pensa demais, cara! E isso te deixa muito pouco sensual, isso faz com que as pessoas não se interessem em fazer sexo contigo, porque gente que fala demais e pensa demais age de menos. É por essas e outras que as pessoas fogem de ti, cara, porque tu é arrogante, porque tu é distante, porque tu é inseguro, e porque tu não tem sex-appeal nenhum. Eu perdi o tesão por ti, perdi mesmo. E hoje acabo sentindo mais pena de ti do que saudade”. Bateu um vento forte que espalhou erva-mate e jogou uns tocos nos olhos dele. Quanto mais ele esfregava, pior ele ficava, mais vermelhos ficavam os olhos verdes dele. Admito aqui que senti um leve prazer pela dor física que ele pudesse experimentar.

CONTINUA.........

Todas as fases do Fim - A Revolta, parte 2

“Deixa eu ver se eu entendi”, falei com um sorriso de deboche nos lábios (mas é claro que ele não entendeu o deboche, ou entendeu perfeitamente, porque nos lábios dele também tinha um rastro mesmo que difuso de deboche. E de ironia. E de cinismo. E de maldade), “tu vem pra Redenção pra tirotear pra todo lado. Aí ontem tu encontrou um cara com um corpo definido, que vai ao cinema, que discute sobre cinema, que entende e aprecia vinhos e tu achou o máximo tudo isso. To certo”, eu perguntei pra ele. “É, isso aí, cara, ele é muito gente fina e é tri bonito, bah, muito gato mesmo, peito bem definido aqui assim” e passou a mão na altura do diafragma em direção ao esterno, “uns ombros legais, umas costas largas de nadador e umas pern...”, aí eu fiquei puto. Interrompi ele dizendo “olha, não sei bem porque tu ta me dizendo essas coisas todas, algum motivo bastante forte tu deve ter pra me dizer, já que faz uma cara que eu to tentando levar a conversa pra um outro lado que não seja das tuas conquistas & práticas sexuais” eu disse, brabo, irritado, enchendo a cuia de água quente (que estava prestes a voar das minhas mãos, mas não, a educação pequeno-burguesa que meus pais me deram sempre surte efeito nas horas em que eu mais preciso ser um selvagem), “só que eu acho que tu ta fazendo um papel bastante ridículo e patético falando essas coisas pra mim”. Aí ele “ah, ta, então desculpa, eu só tava tentando conversar”, se ajeitando no banco, virando a cabeça pra bem longe, desviando o olhar pro lado oposto a mim. “Que conversa é essa? Tu acha que eu quero saber dessas coisas” perguntei, “sei lá, talvez tu quisesse”, “não, não quero, não quero mesmo, até porque sei bem como tu faz pra chamar homens pra esse teu corpo, afinal de contas o palhaço aqui já caiu nesse teu papinho mole de pseudo-intelectualóide babaca, o palhaço aqui caiu achando que alguma coisa de interessante poderia emergir desse mar de lugar comum que é tua cabeça” eu disse, sorvendo um longo gole de água quente através da bomba, e aquilo doeu, sabe, doeu o gole de água quente e doeu dizer aquelas coisas porque se por um lado eu penso que ele é um pseudo-intelectualóide babaca, por outro eu sei que ele é inteligente e esforçado (bah, ‘esforçado’ é péssimo, mas em todo caso não consigo pensar em outra palavra que possa servir melhor que esta), ele tem conteúdo, tem sim, eu sei que tem. Só falta ali um pouco de, digamos, disciplina augusta para ele se tornar aquilo que a gente chama de ‘pessoa culta’. O que na verdade eu acho desnecessário, porque o que importa é a inteligência – que ele tem – e não a cultura – que ele pode vir a ter. E eu já estou tentando defender ele. Só sei que foi difícil de dizer aquilo, e ele falou num tom de voz mais baixo, olhando pro chão “ah, então é isso que tu pensa de mim...”. Isso me MA-CHU-COU! Doeu, foi péssimo ter escutado! Falei “puta, tche, penso sim! Olha as coisas que tu fala, o jeito que tu fala dos caras que tu conhece! Me revolta o jeito irônico que tu usa pra te referir aos idiotas que vêm até ti como moscas vêm na merda” e isso doeu um pouquinho mais. Silêncio entre nós, só o burburinho das pessoas caminhando e correndo, das crianças brincando, dos cães buscando a bola que os donos jogam longe, o vento nas folhas das árvores e os pássaros (malditos pássaros, cagaram no banco, exatamente entre mim e ele! Não pode ser bom sinal!), silêncio que durou muito tempo para um assunto tão duro. “Sabe o que eu acho mais estranho” perguntei. Silêncio ornamentado pelos mesmos figurantes anteriores. “Sabe”, perguntei de novo. Ele se virou pra mim “o quê”. “Acho estranho tu achar uma maravilha ter encontrado um cara na Redenção que pode vir a fazer um dia – talvez, quem sabe, hipoteticamente, num futuro bem nebuloso e incerto – aquilo que eu fiz contigo uma vez. Lembra disso? Quando a gente foi ao cinema ver um filme super cabeça, depois a gente saiu pra tomar um vinho chileno tri caro. Sentamos numa mesa de bar e tivemos uma conversa legal, falamos sobre coisas interessantes, a gente descobriu um ao outro, a gente fez isso, caralho. Qual é a diferença, hein, posso saber?”. Silêncio horripilante novamente. “Eu acho que sei” falei, pra cortar o silêncio e pra jogar verde uma dúvida que há muito me perseguia, “acho que eu sei bem qual é a diferença... É que o cara tem o peito tri definido, tem uns ombros legais e umas costas largas de nadador. Eu, mais humildezinho, não tenho nada disso. Tem uma larga diferença, de verdade, sério mesmo, larga é a diferença entre ir ver um filme europeu e depois tomar vinho chileno com um cara sarado e ir ver um filme europeu e depois tomar vinho chileno com um cara magricelo. Mas parabéns, acho que o teu sonho de consumo sexual já está no teu encalço”. Ah, falei. Falei mesmo, enchi o saco e falei, enchi a boca pra falar e falei. Queria saber se ele não tinha mesmo curtido ficar comigo porque eu sou um cara normal como qualquer outro, queria saber se ele ta na putaria pra pegar só os que são MUITO LINDOS, se ele ta com o rodo na mão e só pensa em pegar ‘os mais gatos do orkut’, queria saber se a noite que passamos juntos vai ser motivo suficiente pra fazer ele entrar naquela comunidade ‘já fiz um feio feliz’. Sabe essa comunidade? Acho ela cruel, muito cruel. Será que ele ta, hein? Deve estar, imbecil. Se ele estiver eu deleto ele do meu orkut.
CONTINUA..........

Todas as fases do Fim - A Falsidade, parte 1

Eu vou te contar a história bem do jeito que aconteceu e vou te descrever todas as reações que eu pude ver nas expressões dele.

Não sei se tu lembras, eu já te falei sobre isso, mas acho melhor repetir pra ficar bem claro: eu era bem apaixonadinho por ele. Arrastava um bonde, caidaço mesmo. Daí rolou de a gente ficar, mas coisa pouca. Uma pegada aqui e ali, uma lua cheia no céu (e descobri depois, fazendo mapa astral, que naquele período a lua estava na casa 5, ou seja, era sexo & diversão & prazer & puro êxtase. Depois me dei conta que aquele era o mapa astral DELE e não o meu, é claro), um colchão qualquer e cuecas espalhadas pelo quarto. Ta, enfim, daí depois um virei um qualquer pra ele. Por mim beleza, eu posso lidar com isso. É normal, eu entendo, ele pode não ter me curtido, sei lá, o momento de vida dele não era pra romance, ok, ok, minha inteligência emocional é capaz de processar essa rejeição. Foi barra, mas eu consigo passar por isso quase ileso, não fossem as centenas de chicotadas que a auto-flagelação adora dar em mim. Ta, parei de drama. Aí um dia eu estava lá sentado lendo um livro na Redenção e tomando meu chimas, tri tranqüilo. Um dia lindo, solzão em Capricórnio, mas não estava quente. Até tinha um ventinho. Ele passou e me viu... Fez uma cara de surpresa ridícula, como quem diz “era óbvio que eu te encontraria aqui sozinho lendo um livro, já que é a única coisa que tu sabes fazer bem”, e veio na minha direção. Eu fechei o livro (era sobre pós-modernidade e sobre como o sujeito contemporâneo está fragmentado em milhões de pequenos sujeitos, às vezes sujeitos complementares, às vezes sujeitos opostos... entendeu?), mas continuei segurando firme a cuia (vai que eu precisasse jogar na cara dele, não é?), me levantei com um sorriso cú e nos cumprimentamos. O foda disso é que toda vez que a gente se encontra e que a gente começa a conversar eu me comporto como se sempre fosse a primeira vez porque eu fico nervoso e sem saber o que dizer, sem saber como começar um papo tranqüilo, eu sempre espero uma reação positiva dele pra qualquer pergunta e qualquer assunto que eu trago. Isso me deixa perdido. Já comecei o papo com ele perdido.

“E aí, o que tem feito”, eu perguntei, “ah, to aproveitando minhas férias, durmo até tarde, como bastante, faço bastante sexo, hahahahaha”, e eu “ahahahaha, ta certo”, acho que ali mesmo eu já deveria ter jogado a cuia, mas deixei passar. Pena. Eu disse “tem que aproveitar mesmo as férias, é um tempo que a gente tem pra nós mesmos”, tentando teorizar sobre qual a função das férias na vida de uma pessoa, sabes essas minhas saídas teóricas que uso pra escapar de uma saia justa de crepom sem fendas como esta, ele disse “é, pra nós e pros outros, porque a gente tem que estar aberto também pra outras pessoas que estejam em férias, aí duas pessoas que estão de férias podem inventar coisas divertidas pra fazerem juntas, a imaginação da gente é fértil, hahahaha”, e eu “hahahaha, é mesmo”, momento número 2 em que eu deveria ter jogado a cuia na cara do viado. “O dia ta bom hoje, eu não gosto desses calorões que fazem quando o sol está sob o signo de Capricórnio, eu curto mais o sol sob o signo de Câncer ou Leão”, e tu sabes que quando a gente apela pra esses papos de tempo, ainda mais assim, logo no início da conversa, é porque a saia vem ficando justa, vem ficando justa, justa de uma forma que tu ta vendo de longe que a calcinha vai aparecer a qualquer momento porque a saia está pra rasgar ali, na hora, e eu sempre tentando levar a conversa pra um nível mais geral justamente pra não cair num nível mais pessoal, porque senão eu ia começar a lembrar das nossas coisas, das nossas outras conversas, e ia me afundar nesse poço que não dá pé, dos meus sentimentos em relação a ele, e eu ia me afogar ali. Até porque ele estava lindo naquele dia, lindo, desgraçado, lindo, e eu me irrito com gente linda. E com gente loira. E ele é lindo e loiro. “Ahhh, não! Eu gosto de calor porque todo mundo tira a roupa, fica sem camisa, e dá pra paquerar mais na rua, tipo pegar uma bicicleta e dar uma banda aqui na Redenção, bah, rola muita paquera aqui, cara, eu nunca pensei que rolasse tanto, ontem mesmo eu conheci dois caras, meu, dois caras vieram falar comigo, e olha que eu nem fiz muito esforço... quer dizer, eu tirei a camiseta, hahahaha, foi só esse o esforço, hahaha!”, tu acreditas que eu tive de escutar essa narrativa? Pois é, eu escutei, impassível, um véu de dissimulação pousava sobre mim, eu sorri, olhei pro horizonte, pensei ‘não, não, não e não’, era o momento número 3 de jogar a cuia & a térmica com água quente INTEIRA na cara, pra deformar mesmo, sabes, pra levantar bolhas de queimaduras de segundo e terceiro graus naquela pele branca, pele alva, levantar bolhas entre os pêlos daquela barba ruiva na qual eu me perdi uma certa noite, pra levantar bolhas entre os olhos verdes, ai que raiva. Mas não fiz nada disso, pra dar piti tem hora e tem lugar, ali não dava. Eu até queria gritar muito, mandar ele embora e mandar ele à merda, mas ao mesmo tempo eu queria que ele ficasse ali comigo porque eu gosto dele, eu gosto de estar perto dele porque eu gosto do cheiro, do calor que vêm dele. Acho que eu sempre quero ele por perto pra eu pensar que eu sempre posso seduzir ele de vez, sempre posso surpreender ele de algum jeito que faça ele pensar ‘bah, mas eu nunca tinha visto como ele é bonito desse ângulo’ ou coisa do tipo ‘nossa, como ele é inteligente, eu queria namorar alguém assim’. Sabe, umas coisas bem trouxas de gente romântica e fodida pra caralho? E eu me saí com uma “é, aqui na Redenção a paquera rola solta, acho isso legal, essa liberdade de olhares, de intenções, eu to na rota de desejo de todo mundo e todo mundo ta na minha rota de desejo, se a gente for pensar bem, isso é muito legal e muito libertador”, me saí de novo pros lados das teorizações, das elucubrações, fugi pro mundo das Idéias. Lugar de onde, aliás, eu jamais deveria ter saído. Mas aí ele continuou, bem deslavado, “um dos caras era ruim, bem bonito, mas muito burro, sabe, sem papo. Mas, cara, o outro era demais! Tri definido, corpo legal mesmo, e muito inteligente, cara! Ele tinha assistido o mesmo filme que eu vi no cinema semana passada, e a gente ficou conversando sobre cinema um tempão. Aí eu disse que a melhor coisa é tomar um vinho depois de um cinema, mas assim, tomar um vinho legal, acompanhado, e conversar bastante, e o cara me disse que curtia muito vinho, e a gente ficou falando horas sobre vinhos, bah, muito show!”. Puta, aí eu perdi a paciência, né?!
CONTINUA.........