Ninguém lê. E também não me explicarei sobre o porquê de não escrever. Mas há de se dizer que todas as noites eu me pergunto: por que não escrevi? De tudo, talvez a pior e a melhor parte é escrever. Porque dá pra fingir que escuta, fingir que olha, fingir que lê. Escrever não é fingimento, e se for é sinal de mau caratismo. Sonhei com um livro de três páginas nas quais cabiam todos os sonhos da minha mãe. Minha mãe sonha, eu é que raramente lembro dos meus sonhos. Que triste, um filho que não sonha. Dessa vez sonhei, e sonhei com os sonhos da minha mãe, que sonha sempre. Eu, que não sonho, sonhei o sonho transbordante de quem sonha. As rochas, as dunas, os lagos, as árvores. Uma mulher atropelada, estendida na maca, gritava e chorava e pedia pela ajuda de deus. Ninguém a ajudou. Ninguém a ajudou porque todos fingiram que não a escutavam, e eu acabei de sugerir que é muito fácil fingir que não escuta. Se a tivessem escrito, aquela mulher que gritava e chorava e pedia por deus, não teriam como ignorá-la. É como se eu não quisesse limpar a casa, as chaminés: eu não escrevo, e as coisas vão se acumulando nos meus cantos - que caem em degraus inalcançáveis para o sótão e para o porão. Fico eu em em desuso: ocupado pelos toques nas teclas, esperando o exercício de pensar sobre o que se vai escrever, as longas pausas entre uma frase e outra, ou entre as vírgulas ou entre as palavras, e a ansiedade de concluir logo a lauda ou o parágrafo. Para não limpar a casa de todo, para manter pedacinhos obscuros, desorganizados, desencadeados. Ontem meu corpo doía, e eu me vulnerabilizei. Vulnerabilizei a mim mesmo, no sentido de entregar-me a uma nudez fria e seca, surda. Ofereci-me ao acaso sabendo que o acaso era cruel. Ontem vi corpos mutilados e sofridos, ossos tortos e olhares de pessoas que sequer sabem que estão desoladas, perdidas, entregues à própria nudez. Elas ignoram seu próprio estado de fragilidade, de debilidade e de abandono. Elas não se sentem usadas. Talvez elas sonhem comigo. Minha vida toda em um livro de três páginas nos sonhos daquela gente desolada. Eu sou o sonho de gente nua. É por isso que não dá para fingir que escreve, porque não se pode fugir daquilo que escrevemos. É uma caça, as palavras te caçam. Ninguém realmente lê de cabo a rabo, ao fim e ao cabo. O final vem sempre antes, antes da terceira página, antes do atropelamento, antes da nudez. É sempre antes o desfecho de quem lê, e ninguém lê.