Eu me mato por todos os silêncios. Sim, haveria a condolência e a vergonha, a vergonha alheia, o desprezo, e a inocência de não saber que te requisitam. Mas nenhum seria tão pesado quanto o olhar que tu de mim desvias, que tu de mim bifurcas, que tu de mim separas. Escansão. O olhar articulado ao silêncio é a pior experiência, a pior prospecção. Um negar que envolve o corpo todo: a boca, os braços, os pés que vão embora. Até chegar aí, que estrada longa não trilhou? Não sou só eu, é um bando de gente. Não me mato por eles e elas, pois não sou mártir. Mato-me pelo silêncio, que é imbatível e coletivo.
“As dobras do corpo já não são mais as mesmas”, ele pensou. Estão mais curvas, mais arredondadas, mas flácidas. “Algum dia forma diferentes?” Viu com certa resignação a impossibilidade de alcançar com a mão e o sabonete porções das suas costas. “Permanecerão sujas.” Os pés mais secos, a pele do rosto mais esburacada. “Estou inchado debaixo dos olhos, e as pálpebras estão caindo.” Quando criança, ouvira sua mãe uma vez dizer a uma tia que, de acordo com o mais recente sermão do padre, era um pecado soterrar talentos. Um pecado. Havia quanto tempo que ele não entrava numa igreja? “Há pouco mais de um mês!” Surpreendeu-se. E não fora um momento de pânico no qual precisara pedir, requisitar, demandar. Fora apenas para agradecer. “Os bancos frios e duros da igreja, quando eu era criança... Eu ajoelhado; os joelhos doíam.” Solicitações e regozijos. Tudo mais ou menos enterrado naquele corpo. A lucidez à míngua, o ocaso de qualquer prega com o real, com o concreto. Desajoelhando-se do mundo. “Vou-me perdendo e me separando, escorregando para fora.” A água ainda caia, quente. Perguntou-se acerca dos dias inteiros e ininterruptos que simplesmente não saía de casa: era justo consigo? Acasulando-se, enovelando-se, rodopiando-se como um pião nos fios longos da recusa a qualquer contato. “Acabo estranhando gente, a gente toda, quando elas falam e quando elas caminham; me perturbam.” O mais perto que chegava das fronteiras rente à gente toda era na sua sacada, imensa, cortada por um horizonte impressionante a perder de vista. Da sacada via a tempestade chegar em nuvens de chumbo, e o sol, e o vento, e a abóboda celeste inteira alegrando-se com o coaxar dos sapos. “As noites são ao menos felizes.” E escuras. Nunca dormira em um quarto mais escuro antes. Com medo da escuridão – não o medo infantil, mas o medo adulto, o medo de não acordar nunca mais –, experimentou deixar a porta do quarto e a cortina da janela da sacada abertas durante a noite. Já não haveria o perigo de dormir para sempre. “Hei de me despertar com a luz do dia.” Passou, então, a tomar remédios para dormir. Pois não podia pegar no sono com tamanha claridade vinda da rua, dos postes, das outras casas – eventualmente, da lua. “Pois há luz ofuscante até nas minhas noites felizes!” Tomava dois comprimidos de relaxante muscular, quando meio era suficiente, dado seu peso. Era um modo de adensar as paredes, finas demais em sua opinião, que o separava dos vizinhos. Todas as manhãs a vizinha de cima acordava às oito e punha-se a tossir; não raro, o casal do apartamento ao lado fazia sexo com trilha sonora da cantora Enya. Ele sobressaltava na cama. Culpava-se pelo cigarro e culpava-se pela solidão. Fantasiava acabar seus dias em uma maca de hospital público esquecida em um corredor lotado, já velho e sem forças, sem dentes, pendurado a um soro pingando lentamente e a uma sonda cuja cânula jamais era trocada. Ninguém o tiraria dali, nem o visitaria. “Vou ficar pra sempre solteiro mesmo...” Culpava-se por não fazer sexo com trilha sonora da cantora Enya. Um pouco de tudo estava soterrado nele. Um imenso pecado, diria sua mãe.
Todas as coisas vão se perder.
Me perder.
Todas as coisas vão se perder de mim.
Perder.
As coisas minhas não são nada: minha calça, meu espelho, meu prato:
Nada meu.
Perdam-se.
Quero somente meu, minhas, eu.
Perdi.
Eu acho que sim.
Eu acho que decidirei ir embora - haverá tempo pra isso.
Sozinho consigo, ele pensou. Sozinho apenas com um sorriso, e o sorriso é sempre um companheiro. Sorrindo consigo, ele pensou, e sorrir é sempre uma dádiva. Pôde, enfim, dizer não a qualquer desatino do ego, a qualquer controle da martelada: o prego saliente é sempre alvo da primeira martelada: mas isso é pouco. Liga a geladeira. Ela refresca o que já haverá de comer e de dizer chega. Já diz, a geladeira, o que eu hei de comer e de recusar. O que eu posso ingerir. Voltando, então: é tudo belo. Tenho umas plantinhas crescendo na vertical da minha minha perede. Não consigo prever, agora, se elas resistirão: é preciso considerar que me sugam a vida, que me confiscam a vida. Uma piada mal feita, um riso, um olhar; um cigarro, uma long neck de Stella Artois; o tira-limo que uso em excesso e que que respiro profundamente quando limpo o box do banheiro: a vida que se extingue, que eu sei que vai embora ou que se diminui, que fica opaca, que vira a cara pro Sol e pra todo seu reflexo. É uma vida que esvai, que recusa e que renuncia. Não haveremos de dar ouvidos, em algum momento, para aqueles e aquelas que tiram suas próprias vidas? Que grito haverá de ter nas cordas vocais de quem esteve lá para ouvir e para resignar-se, para entender o motivo de quem não quer mais estar entre nós? Ir embora - da minha janta, da minha festa, do meu texto ou da minha palestra - jamais significa abandonar quem não quis estar conosco. Guardam um segredo, essas pessoas que recusaram o mundo tal como ele é: sua razão e seus motivos, sua lógica. Expresso simploriamente por meio de um ato (um tiro, um enforcamento, um carro jogado no poste, uma ingestão obtusa de medicamentos), há explícito em seu corpo e em sua feição tudo aquilo que escapa ao que consideramos justo: a beleza, a juventude, a alegria, a magreza e a riqueza. Jamais deixemos de explorar quem se mata. Não por razões necrófilas, mas por razões políticas. Quem se mata monta um quebra-cabeça, um código, uma chave, uma senha que nos diz da impossibilidade do mundo no qual vivemos. Escutemos seus gritos, ouçamos seus tiros, experimentemos suas químicas. O que temos, enfim, para aprender com quem vai embora por ofício, por decisão e por amor? Com quem recusa este mundo do modo como está? Com quem sente pena de nós por ficar?
Todas as coisas entre dois fiapos de nuvem ou entre dois tijolos: depende. O pote de café entre um pote de sal e outro de açúcar, que lugar é esse? Um mais pra lá do outro, assimétrico, me irrita, mas que lugar é esse? Entre um pote e outro, um lugar que me irrita. O lugar onde umas coisas entram mais que outras, umas pessoas cabem mais que outras: o lugar do cimento ou o lugar do céu. Irrita um espaço maior entre o pote de café e o pote de sal; um espaço menor entre o pote de café e o pote de açúcar. Todos cabem entre esses espaços, mas todos cabem mais entre uns que entre outros. Fim do dia de domingo, sol entre chuva, notícias de um suicídio. Houve aquele que não coube nem entre os potes de café e sal, tampouco entre os potes de café e açúcar. Houve aquele que achou um espaço acima, ou abaixo, dos potes. Houve aquele que recusou os potes e seus espaços entre um e outro. E foi embora. Cada início, cada começo: onde começam? Num piscar, num estalar, outra criança nasce no mundo. No mundo onde tudo cabe nos espaços entre três potes. A resposta à pergunta "que lugar é esse?" nunca acaba, nunca acha o ponto final que cada frase precisa ter para fazer sentido.  O início de uma criança no mundo nunca acaba: ela se pergunta "que lugar é esse?", e a resposta nunca termina. Ela seguirá se perguntando: "que lugar é esse entre os tijolos, entre os fiapos de nuvem?" Talvez haverá o sol brilhando entre os fiapos, ou talvez o cimento endurecido. Um sol brilhando assimétrico entre duas nuvens desproporcionais, que se movem. Talvez haverá dois tijolos simétricos, porém estancados no mundo, na coisa toda do mundo que gira e reverbera. Notícias de um suicídio não são animadoras, mas marcam o ponto final da resposta à pergunta "que lugar é esse?" Eu aposto em todas as crianças que nasceram durante esta escrita, aposto em todos os fiapos de nuvem e em todos os espaços entre eles: assimétricos, móveis e criativos.