Sonhando anticorpos

Há quem sonhe ilhas... E há quem sonhe anticorpos. Há algumas concepções do que pode vir-a-ser um anticorpo: pode ser uma reação, uma estratégia de defesa, uma vingança, um veneno, um remédio. Pode ser a materialização de uma cura. Anticorpo pode ser também aquilo que não é um corpo, aquilo que é anti, o contrário do corpo, seu antípoda. Pode ser a desmaterialização de um corpo, portanto. Anticorpo pode ser um corpo estranho, um corpo excêntrico, foracluído, um corpo estrangeiro – ou seja, um corpo que destoa do homogêneo. Anticorpo pode ser, então, corpos-outros, de improviso e imprevistos, inesperáveis, sempre se separando uns dos outros a criar corpos-novos.

Sonhar anticorpos é sonhar que se está crescendo, ou que já cresceu, e que se está prestes a tornar-se outro, atacando corpos e deglutindo-os. É esparramar-se até a porta ou janela, deslizar pelas frestas e reentrâncias abertas que não podem jamais ser fechadas e tomar de assalto a boca, os olhos e as mãos. É também só olhar através vidro, escutar a voz através da parede, sentir os passos pelo chão, e a partir deles criar uma história, de mágoas ou ressentimentos, de sucessos e de tranquilidade, que seja, mas uma história que justifique e possibilite qualquer aproximação.

Não é assim que nos insinuamos? Porque sei que tu também tens teus anticorpos (de defesa ou de cura), e sonho que eles sejam também meus. Sonho que eles se esparramem e deslizem pela porta, à noite ou de dia, sem dor nem culpa, mas com ansiedade. Meus anticorpos são urgentes. Minha história, minha trajetória, tu as recontas quando te deitas na cama naquele lapso de tempo entre por a cabeça no travesseiro e o sono vir? Só tu vais saber se minha história é bonita ou trivial, de angústia ou de carinho. Se tu criares pra mim uma história, me dispo da que eu tive até hoje e visto a tua. Porque não quero ficar sem história pra contar, sem memórias pra lembrar. Mas abro mão das minhas pelas tuas: talvez teus anticorpos me curem. Ou se vinguem de mim.

Nu em pelo

Será mesmo que eu tenho que lhe dar a notícia pessoalmente? Pensei talvez numa carta, que não é tão fria quanto um e-mail e nem tão calorosa quanto um papo olho-no-olho. Talvez por intermédio de amigos – mas não há motivos pra envolver outras pessoas nisso. Teria de ser nu em pelo.

Pois foi justamente contra um pelo que lutei nos últimos cinco dias. Eu o via ali, num lado ligeiramente à direita do meu nariz. Reconheci-o de primeira: um ponto preto me desafiando bem na superfície da pele. Sabia desde sempre que não se tratava de um cravo, já que eu conhecia todos os que se deitavam no meu rosto. E sua cor era diferente da dos cravos, era um preto profundo, acetinado, garboso. Eu o via ali, tentei tirá-lo com uma pinça, mas só consegui rasgar minha pele de tanto insistir. Pensei em estratégias: talvez depois de um banho quente; talvez com uma nova pinça; talvez deixando o pelo crescer alguns dias mais; talvez promovendo uma pequena intervenção ambulatorial no meu próprio banheiro... E assim se passaram cinco dias sem que eu conseguisse arrancá-lo do meu nariz.

Quando eu finalmente consegui (empurrando um pouco meu nariz pra cima, contra a raiz do pelo, de modo que ele se projetasse pra fora da pele para, então, eu conseguir pinçá-lo e arremessá-lo pra fora das minhas fronteiras), suspirei: “sou uma nova pessoa”. E sou mesmo. Porque às vezes é pequeno, é quase discreto, é sutil, diriam que imperceptível. Acontece que me incomoda, me estranha, me faz outro que não me reconheço, habita uma parte do meu corpo e da minha vida que eu não quero que seja habitada por ele – ele, o pelo. Mas é difícil de tirar, e não sairá a força, só sairá com um “jeitinho. E quando sai, nossa: me renovo inteiro.

Daí volto a me perguntar: será que vou ter que informá-lo pessoalmente, com pinça e tudo, dando um “jeitinho”? Tudo bem que alguns nem percebam que ele está ali, que alguns o achem sutil e discreto. Mas me incomoda e começa a habitar partes da minha vida que não são da sua responsabilidade. Ele começa a querer me cobrir, me esconder, me vestir, me calçar... E eu quero continuar nu em pelo.