vestiu-se com seu mito individual. saiu pelas ruas sombrias da cidade, à noite, todo vestido. andou por lá e por cá, mas não sem rumo: na sua pequenez individual havia tudo planejado. surpreendeu-se com os transeuntes nus: ninguém mais acreditando estar em face do outro, tornavam-se pálidos si mesmos sem nenhuma mediação com aquilo que a noite esperava deles. e ele todo produzido para uma noite longa, noite de cantos e becos, de esquinas em velocidade, uma noite toda do tato. os transeuntes nus tiravam toda a excitação das surpresas que as ruas poderiam trazer. pois já estava tudo visto, já estava tudo sentido. zumbis nus. por onde ele ia, seu mito se manifestava.
que tantos males houve nessa trajetória, nessa corda-bamba, que tanto mau humor e recalque? o que foi recalcado que permanece recalcitrante naquilo que dizes hoje de mim? de todos os indícios recontados, não há um sequer que tenhas ao menos me indicado. recontas agora todo o caminho, toda a corda-bamba, como fio da navalha no qual caí e me despedacei. que monstro foi liberado, que monstro em que me tornei? que tanta amargura, raiva, que não cabem em uma frase ou em uma pergunta a mim dirigidas? que medo, que receio de ouvir minha resposta? que tanta covardia? que tanta mesquinhez em fazer chegar até mim o que pensas por meio de bocas que não é a tua? que tanto ressentimento, me pergunto, é capaz de dividir o mundo entre os que ainda não odeias, os que já odeias e os que ainda não conheces?
não mais a verdade, mas as políticas da mentira de um modo geral a partir das quais contamos a alguém aquilo que somos. e o que somos não é mentira, não é mentiroso, mas é efeito de uma lacuna na cadeia de meias-verdades sobre o que somos. a lacuna, como a própria palavra remete, não é tampouco em si mesma uma mentira. poderá eventualmente ser. mas é antes e acima de tudo um silêncio e um pano de fundo cinzento indiscernível. elo quebrado da cadeia de meias-verdades daquilo que somos. a pequena sala trancafiada e escondida em cujo teto estão inscritas a hora e as condições da morte de Sétimo Severo. o pastor tebano para quem Jocasta entregou o recém nascido Édipo, que também viu Édipo matar Laio em uma encruzilhada, pastor tebano que se refugiou e se ocultou em sua cabana. não mais a verdade sobre o que somos e sobre os caminhos que nos conduziram até aqui. nenhum passado que condena. mas, por outro lado, as pequenas salas trancafiadas, os simples pastores refugiados, os lugares velados e os sujeitos não-cônscios.
um período imenso de silêncio para decantar.
"decantar" sempre foi uma linda palavra, pois significa "separar" e "enunciar melodicamente".
hoje dei uma volta inteira ao redor do furo do desejo. inlcui basicamente duas paradas:
1. uma pergunta a ser feita para meus pais (mais precisamente para minha mãe, embora a coisa toda faça convergência para meu pai);
2. uma afirmação a ser feita para mim (mais explicitamente anunciada, pois já está de todo modo enunciada para quem está por perto).
não vou melhorar, mas vou abrir caminhos.