"Um teatro de fantoches"

- (silêncio) E tu ou vocês não se sentem acuados como cães frágeis? Se aqui não adianta latir, se aqui há de morder além de latir, como tu ou vocês fazem pra lidar com a perda e com a omissão?

- Não nos concebemos exatamente como cães frágeis. Frágeis sim, mas talvez não como cães. Há uma humanidade mais refinada em mim. É dessa humanidade mais refinada que vem o latido, o ranger de dentes e a mordida. Mas também ela não se reduz a isso. Porque o latido, o ranger de dentes e a mordida estão diretamente ligados à proteção: fazemos sofrer para nos defender. O sofrimento é uma boa blindagem. Mas por mais refinada que seja essa humanidade protetiva, de vocação defensiva, que tem a capacidade de refletir sobre seu sofrimento e infligi-lo ao outro como modo de defesa, por mais que ela seja um pouco mais rebuscada, ela ainda não dá conta de explicar outras realidades ligadas, como tu bem colocas, à perda e à omissão. Das duas, na minha opinião, a mais grave é a omissão. Entretanto, deixaremos claro que omissão não é simplesmente a ocultação da verdade. Também pode ser isso, mas essa é a faceta rude e áspera da omissão. Acusar o outro de faltar com a verdade, de esconder a verdade, de ocultar a verdade por detrás de cortinas grossas que invariavelmente se ligam à mentira, tudo isso é de significado pertinente, porém rasteiro. Tampouco a omissão da qual falo aqui mantém laços estreitos com a falsidade; alguém omisso pode ser falso, mas também pode não ser. Alguém omisso pode ser frágil. Consideramos a omissão mais grave que a perda porque sentimos na omissão uma profunda cumplicidade com o medo, com o desespero, com a sombra. O não-dito é tão interessante quanto o prolixo. E voltamos novamente ao assunto do medo! (risos). É bem verdade quando tu dizes: “vais continuar nesse relacionamento moribundo? Porque ele está morrendo!”. Com que eficiência fomos capazes de criar um labirinto móvel de sinceridades, meias-verdades e omissões... De todo modo, estamos aí dentro. Eu me importaria menos com os desejos da carne saciados de modo canino, típico animal do cio, se eles fossem tratados como tal desde a gênese disso que erigimos para nós. Se eu apostaria ou não numa relação como essa, aí a questão é de outra ordem. Eu não me importaria em agir como uma cadela e ser tratado como uma. O que detesto é agir como eu mesmo e ser tratado como um cão frágil. Porque, como já mencionei, não sou um cão. Talvez cadela, talvez cadela frágil, talvez cadela frágil no cio, mas não um cão. O que realmente me apavora é ver o tempo suceder, incrustando com suas goivas afiadas sulcos na pele ao redor dos meus olhos, ver o fluxo do tempo confundir o espaço e borrá-lo como aquarela, ver o próprio espaço revigorando-se e tornando-se mais robusto, mais transparente e também mais sólido... E eu parado aqui pensando ser eu quando na verdade ele me pensa e me sente como um cão frágil. Quando dizemos que não adianta latir, há de morder, dizemos isso pra ele: latir em sua direção, mordê-lo! Com que assombro às vezes me pego repassando diversas cenas pelas quais passamos juntos e só então conseguindo ler na entrelinha de um olhar, de uma contração dos lábios, um sentimento denso e profundo de total cumplicidade que não está direcionado para mim. Com que desespero reconstituo frases, com seus substantivos robustos, e interpreto um texto que não foi escrito para mim nem por mim, cuja plateia ocupa apenas uma poltrona, cujas palmas ecoam vindas do passado – do passado dele, e não do meu. Ah, dou-me conta: é um teatro de fantoches.