É, queridjeenho!

... não, queridinho! Meu corpo não é fantoche daqueles quem desejo, nem daqueles que me desejam. Meu corpo é só meu corpo, uma extensão de mim, uma coisa de mim, um algo qualquer de mim, mas não é eu. Eu sou outra coisa e outras coisas, eu não mereço – nem tu, queridinho, mas tu és velho pra dar-se por conta – ser escravizado por um, por dois ou por três que me desejam. E tu és um deles. Eu não vou me subsumir àquilo que tu desejas de mim, não vou me transformar naquilo – aquilo, aquela coisa, aquela máquina – que tu tanto quer provar. Tu não desejas aquele que sou, tu desejas aquilo que tu pensas que eu possa vir a me tornar. Vai te tratar! Eu não quero ser aquilo que tu queres que eu seja, eu quero ser exatamente aquele sou e aquele que eu me torno no instante seguinte, no dia seguinte, no ano seguinte! Eu me adoro um ano depois, dez anos depois, bem ao contrário de ti que fica mais e mais triste a cada minuto que passa. Triste e sozinho. Eu não sou uma pessoa sozinha, eu não sou único: sou tudo aquilo que os outros pensam que eu sou – até mesmo esse insatisfeito que tu pensas – e sou muito mais: sou o que penso que eu sou, sou o que eu quero ser já de antemão, sou o que eu não gostaria de ter sido, mas fui um dia. Não, queridinho! Não me sugue pro teu buraco negro porque lá só tem lugar pra ti!

Insônia

Eu tinha insônia quando criança, mas aquela insônia que te arrasta do sono. Não aquela que te arranca do sono. Eu demorava pra dormir... Naquela noite, como em poucas outras, eu fui dormir bem cedo, esperando pela insônia. Porque eu queria chegar nas minhas festas pessoais bem cedo e tarde deixá-las: eu tinha um enredo contigo. Essa mentira grande, essa simulação que eu faço, ela não é uma ameaça, ela não dói nem machuca. Eu vou dando de comer pra minha fantasia, vou incrementando-a, dando corpo a ela – não o meu corpo, mas também ele e outros mais conforme minha fome. Por anos, quando eu era mais ingênuo, isso tudo deu caldo pras horas que eu passava me engalfinhando com os lençóis antes de dormir. Hoje isso me acalenta e me distrai porque sei que o mundo que eu preciso desbravar a cada dia não é aquele das minhas fantasias, mas aquele dos meus medos. Era bonito o meu olhar, sincero: mas eu descobri a mentira e a falácia. Pude continuar a crer em tudo aquilo que fazia minhas festas pessoais, mas o sabor forte da crença de que todas elas poderiam ser verdade foi substituído pelo álcool. Hoje eu creio mais no álcool que nas minhas fantasias. E elas são tão bonitas... Quem se importa. Fato é que comprei uma cama cara, e meus travesseiros são muito confortáveis. Até meus lençóis, onde volta-e-meia me engalfinho, são de linho 300 fios. É que queimei minha mão fritando um ovo: coisa mais cotidiana e real possível. É demais pra mim, muita realidade. Eu preciso de um lugar confortável onde ter minha insônia.

Sem fins nem começos

Para não precisar fazer a arqueologia dos problemas que nos levariam ao ódio e à ojeriza, preferimos fechar delicadamente a porta pela qual entramos naquela sala. Para não ter a obrigação de escavar razões e situações no tempo passado, para não precisar mostrar motivos já mortos, fossilizados, que justificassem nosso desprezo mútuo, preferimos sabiamente dizer ‘até logo’ num momento em que abundávamos (será? não mais...) de admiração e carinho recíprocos. E tivemos sucesso.
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O fim de alguma relação não é identificável por si mesmo. O fim de alguma coisa não remete a si como uma evidência ou fato comprovável. O fim não existe porque, de certo modo, seu começo também é fruto de uma ilusão, ou de uma certa necessidade que temos em pôr uma marcação, erguer um obelisco em algum lugar, assinalar no calendário algum dia que nos faça lembrar de onde e de quando tudo começou. O fim depende do início, mas tal como o começo, o fim também é fruto de uma ilusão.
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O começo nunca é o começo per se porque há condições que nos fizeram estar ali naquele instante, daquela forma, naquele lugar específico. Há condições que nos apresentam escolhas, e só fazemos as escolhas que podemos fazer. Eu, com 27 anos, bêbado, numa festa freqüentada por muitos rapazes da mesma idade e com o mesmo interesse homoerótico são condições que me apresentam algumas escolhas, enquanto que descarta outras. Faço deste dia e deste lugar o começo.
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Mas o começo não é localizável, nem fixo, porque ele é uma circunstância, ele é um percurso, um caminho seguido. O começo que nós vulgarmente chamamos de ‘aniversário’ é apenas um nó em que as condições de escolha se colidem. Isso não o faz menos importante, todavia. Mas sem dúvida, pensar o começo como um certo momento de adensamento de condições faz com que o próprio fim seja repensado: repensado não como um ponto final, mas como uma reticência ou, no máximo, uma vírgula. O fim e o começo repensados colocam um ponto de interrogação (a dúvida) justaposto ao ponto de exclamação (a certeza). Não tendo certeza do começo, portanto, também não temos certeza do fim.
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A incerteza do fim tampouco significa arrependimento ou possibilidade do vai-e-volta. A incerteza do fim não significa necessariamente um ‘eterno retorno’, ou a chance de sempre reatar. O caráter difuso do fim serve mais como agente de transformação que como alternativa de re-estabelecimento do vínculo. O fim insere novas problemáticas nessa relação que termina e oferece novas condições de escolha. Essas, por sua vez, nos levam a novas relações; o fim desta é também o começo da próxima.

Corpos Simpáticos

E se eu choro é porque sou ator, e se eu desejo é porque sou ator também. Eu não posso assim, do jeito que tu quer eu não posso, eu não consigo. O sorriso descarrilhado e os olhos afiletados eu só descobri depois. Mas depois pra mim não é longe, não é inalcançável: eu sei o que fiz, eu sei que eu não quis, e eu não me arrependo. Eu me arrependo, talvez, dessa minha impetuosidade, dessa minha vontade de ser trator.
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Minhas mãos longínquas, com dedos superlativos, te escrevem isso porque estão desocupados. Porque se tivessem outros corpos pra digitar (que não fossem esses tão solícitos quanto são o laptop [nem tão ardentes quanto fossem meus dedos]) elas estariam calmas e dançantes talvez folheando um livro de ti ou um livro de eles, mas de qualquer forma estariam aqui e não aí onde tu lês isso que escrevo. E o que fazes aí? Por que motivo não vais ler, ou estudar, ou dialogar consigo? Por que lês isso? Não há nada aqui: só há imitação e deboche, recalque, repressão, mas tudo com um pouco de doçura.
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Porque sempre lembro de ti e por onde tu andas e por onde tu estás e por onde tu respiras me diga que eu quero saber porque tu me faz falta e teu corpo se encaixa no meu... morreste? Eu pensava que sim. Eu levo comigo um pouco da tua morte? Eu ainda penso em ti, ainda te quero e ainda te procuro nesses outros corpos: cadê teu corpo? Procuro tuas letras iniciais, teus recuos de parágrafos, mas me diz: onde estás? Se soubesses o quanto minhas mãos aracnídeas batem e rebatem nesse teclado negro à tua procura.
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E isso acontece não porque sou bêbado (também porque sou bêbado, mas acima de tudo porque sou uma lâmina, um filete, uma fatia bem fina [uma coisa delgada através da qual passa tudo aquilo que mais desejo], um sopro e um riso, uma cédula ou moeda que cai do bolso, um esquecimento), elas acontecem porque não há nada. Nada. Nunca houve. Cadê você em mim? Não há! Saia já daqui: não há motivo nenhum para eu me enrolar nos lençóis verdes com perfume amadeirado. As veias que cobrem minhas mãos mantêm a aranha que desliza pela teia das minhas confusões. Não te esqueço mesmo assim.
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E aí tu estás, não é?!?! Insinuando-se pelas minhas superfícies e se querendo pelas minhas aderências!!!! Te denuncio!!!! Onde vais querer ficar (fica comigo [fica na minha mão, na minha boca] fica no meu quarto), onde vais querer dormir? Sempre dormes comigo de algum modo, mas nunca de um jeito tão traduzido, tão ligeiro, tão simpático. Saia daqui: não há nada pior que um corpo simpático, por favor, saia agora para sempre.