[...] tudo o que escrevo é uma carta. pequenos trechos, idas e vindas, pulando nos círculos da espiral: debruçando-me no mezanino do tédio, olhando para o andar de baixo com desprezo. tudo o que escrevo é um fragmento de cartão postal para os amigos. um recado de onde estive, para onde gostaria de ir. e continuo indo, me deslocando, saltitando de uma dimensão a outra. mas quem olha de fora me enxerga mais como um touro pesado, um búfalo enlameado, que se move devagar e sempre na mesma direção, com dificuldade nas curvas mais fechadas. babando e bufando. encarando pesadamente o horizonte. touros não escrevem cartas e búfalos não mandam cartões postais. eu mando. posso estar enlameado, mas não sou lento. a velocidade na qual me transformo é rápida demais para os olhos leigos. e vou mandando cartas aos amigos desde os diferentes pontos de paragem dessa minha viagem louca.

hoje meu coração acelerou. que frase bonita, essa. poderia vir entre aspas, pra posar como início de um romance digno do jabuti: "hoje meu coração acelerou". mas não quero, não posso, enganar meus amigos. eles sabem que meu coração não acelera. a não ser com bebidas geladas, com raspas finas elétricas, fumaças perfumosas. e estou santo, estou limpo; não obstante, hoje meu coração acelerou. poderia ser a primeira sentença de um romance romântico, arrebatador. não o meu romance. meus amigos não se deixariam enganar: eles sabem que eu não amo romanticamente. não caio no engodo do par, do eterno, do complemento. sou como uma frigideira que cozinha melhor sem tampa mesmo. apesar disso, hoje meu coração acelerou. terá sido a cafeína? a caminhada? o peso de um passado que me acorda todos os dias com um estridente grito de fracasso?

meus amigos não seriam tão facilmente engambelados. eles são espertos e conhecem minhas estratégias de disfarce - que são poucas, mas funcionam com os leigos. tudo o que escrevo é uma carta endereçada aos meus amigos, e eles entendem cada linha. victor heringer me entenderia; ele me entendeu, entendeu toda a gente da minha estirpe, e decidiu que já tinha vivido o suficiente. tomou pra si a decisão sobre a vida. nenhum amigo meu faria o mesmo. mando cartas para meus amigos porque eu preciso me explicar, explicar pra eles, tim-tim por tim-tim, pra que eles entendam. não sou bom frente a frente, cara a cara, corpo a corpo. prefiro enviar cartões postais, colar selos com a saliva e jogar o envelope num buraco da parede. a distância eu funciono melhor. escrevendo eu me explico, deixo minha fragrância no mundo: escrevo meu cheiro como aquele perfume que fica na última camiseta usada por um falecido. é sangue com notas amadeiradas. jamais cítricos; florais são um acinte.

os livros fechados na estante, eles aceleram meu coração. os pingos da chuva no vidro da janela, os trovões à noite, saldo da conta bancária com mais de cinco dígitos também. dia ensolarado sem nuvens no céu não acelera meu coração. nem dias quentes. o silêncio do meu apartamento, sem amigos que me visitam, paralisa meu coração. o desemprego acelera meu coração. lembranças do passado paralisam meu coração. as cenouras sobre o fogão, à vista para eu não esquecer de assá-las: aceleram. a louça suja na pia pra eu lavar, à noite, antes de dormir: paralisa. quando há uma história ainda a ser feita, a ser contada, meu coração dispara. mas quando algo retém o tempo ou simboliza o fim de um momento, meu coração para. meus amigos sabem: eu vou morrer num dia de inverno, sobre o asfalto. não sou do tipo que morrerá numa cama, numa maca. no momento antes da minha morte meu coração baterá com força. meus amigos entenderão. [...]

preciso deixar a torneira aberta, senão a água limpa não vem.

[carta aos amigos]

ao dobrar a esquina da avenida joão pessoa e entrar na josé bonifácio, eu quis morar naquela paisagem que vi, pra sempre. as árvores (ipês amarelos?) exibiam folhas e flores robustas, que projetavam sombras discretas por toda a extensão dos canteiros. havia um cheiro leve de ano que se aproximava do fim. era surpreendentemente fresca a temperatura apesar do sol brilhante. havia certa luminosidade inclusive na sombra das árvores. isso porque alguns raios de sol atravessam as flores, as folhas, que caíam em arco por sobre a calçada. um túnel verde, amarelo, resplandecente, fresco, me convidava para atravessá-lo. não havia trânsito pesado naquela ponta da avenida. por isso, só percebia um silêncio que deixava transpassar toda a tranquilidade daquele momento preciso, isolável. uma calma tão harmoniosa que se confundia com o asfalto, os paralelepípedos, o vento ameno, a luz e o verde, o cheiro de final de ano. paz, enfim, entre as coisas vivas e inanimadas que faziam possível aquela paisagem. eu quis morar naquele momento.

porque havia um dulçor, uma frescura naquela sombra. uma vida, então doce e levemente fria. era onde eu queria morar, era como o mundo deveria ser pra mim. fresco e doce. não foi por pressa nem por preguiça, mas minha vida tomou outro rumo. meus ombros queimaram ao sol. ardiam. minha pele converteu-se em pelanca. todo meu perfume ou se evaporou ou virou o cheiro forte que exalam os corpos velhos - a velhice tem um cheiro. rolei pela rua. me vi morto. me arrependi de quase tudo. nenhuma tomada de decisão estava certa. eu estou trancado num momento que não vai acabar, nunca. só mais desespero, só mais choro. antes de vir ao mundo eu desfiz minhas ilusões - para aquilo que seria minha vida, minha pessoa, meu caráter e a estima que as demais pessoas sentiriam de mim. mas agora as decepções passaram de qualquer limite. não há modalidade de rancor, de pena, de lástima que não caiba tão perfeitamente em cada segundo que passei na estrada, à noite, sustentando aquela realidade. eles são a medida do arrependimento que pesa amarrado aos meus pés. eu caí e rolei na rua. ninguém me ajudou.

eu sei, amigos: não é sempre que minha companhia é fácil. eu sei: às vezes dá vontade de não me ajudar. eu sei: dá vontade de me fazer sofrer. eu sei, amigos: inclinam-se para que a vida me ensine, pelo mal, o seu valor para que eu, quebrado, constitua o meu próprio. eu sei. é por isso que os mato quando posso. porque querem me ensinar pelo mal. desculpem-me.

o tempo não me passa, não me atravessa. o tempo pra mim é espacial. habito o tempo como quem habita um quarto, uma sala. o tempo da infância foi um quadrado cercado, largo, amplo - porém vazio, úmido. abri uma porta, passei para outro tempo: de paredes espinhentas, anoitecidas, teto mofado, chacoalhado por terremotos - a adolescência. atravessei um corredor longo, estreito, asfixiante: o tempo na faculdade. desemboquei num grande, imenso balcão que dava para um bosque a terminar no horizonte, um balcão de um palácio no qual ventava e o vento, em curvas, uivava nos meus ouvidos - a jovem adultez. de onde caí em degraus de uma escada que só permitia descida: a adultez em si. e a adultez velha, ou a jovem velhice, é este trecho público da rua josé bonifácio num mês de outubro, com árvores, luzes e sombras radiantes. cada tempo tem sua sala.

tá tudo bem. e ainda não é exatamente isso. não é muito acurado dizer "bem" ou "tudo". nem "estar"; talvez coubesse dizer "é tudo bem", como se estar bem fosse da essência das coisas que me rodeiam. três palavras perfeitas (2-4-3) não acertam o alvo. porque há insetos mortos na lajota branca da sala, porque o vizinho faz reuniõezinhas animadinhas até tarde da noite, porque o sinal da internet cai o dia inteiro, porque tomo muito café e sinto dor de estômago. mas tá tudo bem. e não é verossímil. vizinho bom é vizinho invisível, inaudível, inodoro e insípido. os meus não são, mas eu tento ser. é o meu ideal de vizinhança. é como meu ideal de família: está tudo bem, mas não se trata de estar tudo bem. se trata de ir, vir e contornar os valores morais, de dar dois pesos para duas medidas, de esquecer estrategicamente aqui e ali qualquer coisa que para o outro é fundamental. e é de amor que falamos o tempo inteiro? não. portanto: não se trata de estar tudo bem. esse é meu ideal de família. pois tá tudo bem, e isso ainda não convence. não se trata de uma reuniãozinha animadinha. se trata de dizer algo, ou de não dizer algo, e estar sempre errado. ser sempre distante e, por ser distante, ser mau. ser sempre inadequado, sobretudo quando se tenta a ironia. se trata de ser mal-quisto, porém necessário. se trata de não ser bem-vindo, mas ainda assim convidado. não sei como será a visão do velório dos meus pais. não sei o que de fato eu enxergarei nesse dia, nessa paisagem. o que haverá de volumes e cores que povoarão a cena. não sei sequer se haverá dois corpos ali a serem incinerados, ou se eu já o terei feito desde agora. de como o luto me chegará, de como a falta se acomodará nos cantos ou bem no centro da sala-de-"estar". de como eu me livrarei deles mais que eles da vida, mais que eles de mim. de como a inveja pelas suas mortes substituirá, em mim, a melancolia pela perda dos cuidadores. de como o desamparo pela morte dos pais não me é estranho, nem o desprezo que suas mortes podem eventualmente significar ("como vocês podem me deixar sozinho no mundo?"). disso nada sei, mas estou atento. pois é um conjunto de sentimentos intoleráveis. por tal razão, nada está bem de fato, e isso é perfeitamente verdadeiro.

 [...]ência da criação. às vezes eu sento e escrevo, menos por necessidade e mais como um exercício. ou como uma massagem que destensiona um feixe muscular. como um mergulho no qual não respiro, envolto num silêncio submerso. e volto à vida. mas enquanto escrevo estou morto. escrevo do meu túmulo. chegou ao fim um domingo precioso. há 51 anos meus pais se casavam. se eu pudesse, se eu lá estivesse, interromperia o ritual. mostraria fotografias minhas e dos meus irmãos como evidências do porquê aquele casório não poderia acontecer - ou melhor, poderia, mas ao custo de 3 ou 4 vidas. e de fato eu estava lá, virtualmente: eu estava no casamento dos meus pais há 51 anos num porvir. ali, e talvez um pouco antes ainda, eu comecei a me fazer. tenho 51 anos hoje, talvez um pouco mais velho ainda. o domingo termina com chuva. com o apartamento limpo. com a geladeira cheia. com uma garrafa de vinho pela metade. com certa dor de estômago. me sinto pobre: nos remanejos da mudança de apartamento, fiz de uma fruteira meu criado-mudo. e o fogão está atravessado na cozinha, impedindo a passagem para a área de serviço. o sabonete que passei a usar é dos mais baratos e deixa um cheiro fino, frágil, sobre a pele. era o que eu poderia pagar para continuar tomando 2 banhos por dia. preferi diminuir a quantidade de comida a racionar as chuveiradas. faço 3 refeições simples por dia, sem transbordamentos e sem repetições. a manteiga se espalha discretamente sobre a torrada. a granola é medida na balança. sim, geralmente me deito com fome e pego no sono com a barriga roncando, aguardo até o próximo dia para o café da manhã. sonho com comidas variadas. mas ou diminuo a compra de comida, a ingestão de comida, ou tomo menos banhos por dia. no meu orçamento não cabem igualmente o litro de leite e o sabonete glicerinado. o nome disso é desespero e é o que entretece o fio confuso da vida por esses dias. o desespero de racionar a comida e o sabonete para manter-se vivo, para manter-se limpo. me sinto pobre. [...]

 [...]pre me vi como uma ficção que se atualizava a cada dia. e eu nunca era verdadeiramente aquele personagem que eu criara. acabava sendo um outro, mais desgastado, mais puído, aparentando ser mais velho do que eu era. eu produzia um script para ser um e dava sempre noutro.

eu era sempre uma versão mais perseverante de mim mesmo do que eu alardeava. eu pensava em morrer, em desistir da vida... e, ao mesmo tempo, eu tomava dois banhos por dia e escovava os dentes quatro vezes ao dia e me preocupava com a taxa de glicose. não me parecem atitudes de quem estivesse aguardando a morte. do que adianta o enxaguante bucal no momento de bater as botas?

porque quando tudo dava errado eu queria comer doces. ou tomar um café com leite ao sol, se fosse inverno. ou um pote de sorvete importado, se fosse verão. eu era este tipo de farsante: a vida me dava uma rasteira, e eu lambia os beiços com açúcar. eu não me deixava abater, mas vivia escrevendo textos tristes para comover os amigos. com qual objetivo eu queria convencer alguém de que eu era um coitado?

obcecado por limpeza. por desinfetantes de toda ordem, por aromatizadores; doido por borrifadores de álcool para desinfecção de superfícies, por escovas e esponjas de limpeza pesada; aficcionado pela água sanitária para jogar nos ralos. eu queria mesmo era viver num reino pequeno e salubre onde eu pudesse espalhar minha história discreta. nenhuma cor gritante nas paredes e pouquíssimos objetos de decoração. mas a disposição dos móveis nas peças, o brilho das superfícies, a ventilação e iluminação dos espaços e o cheiro - sobretudo o cheiro - de chão e teto limpos, saudáveis, refrescantes. seria esse um túmulo higienizado que eu organizava para meu fim?

domingos eram dias especiais: necrodays de pura tristeza e, simultaneamente, o momento da semana em que eu trocava as roupas de banho, cama e os panos de prato da cozinha. lava cada um deles com produtos específicos e esterilizava todos. era de toalhas novas que meu velório precisava?

 [...]ua de cabeça baixa. olhando diretamente pro chão, no máximo mais alguns metros para me certificar de que não esbarro em alguém. mas bem que eu queria bater em alguém. de qualquer modo, tenho olhado muito o chão, e hoje especialmente foi um dia de chão. quando dobrei numa esquina levantei a cabeça, só pra confirmar que não esbarraria em alguém. mas bem que eu queria bater em alguém. eu vi um senhor em situação de rua sentado na calçada, escorado num muro, cuja posição fez doer minha coluna cervical. um pouco mais adiante, uma senhora idosa empurrava um triciclo no qual pedalava um rapaz com síndrome de down. naqueles poucos metros de chão havia tanta realidade, concretude crua da vida sem banho de glória (sem banho, simplesmente). eis o movimento lento do triciclo, que se movia um pouco pela força nos pedais e um pouco pelo mão que empurrava o banco, observado do chão pelo senhor deitado numa posição dolorosa. havia um pouco de dor e um pouco de cinismo nessa cena. tudo se ligava por uma resignação seca: esses personagens eram o que eram, e eram o que suas vidas permitiu que fossem. será que na sua posição dolorosa o senhor em situação de rua sabia que era um refugiado em seu próprio país, expulso da esfera cidadã, sentenciado a perambular sem casa por um crime que não cometeu? será que a mãe-natureza, tão correta em seus caminhos misteriosos, havia presenteado um corpo com um cromossomo a mais sem que nenhuma revolta ou preconceito lhe viesse investir desde já? esses corpos testemunharam histórias de quê? continuei a caminhar e baixei a cabeça. eu não resolveria os problemas que só eu pensei ter encontrado nessa cena. tampouco eu estava certo a respeito da dor, do cinismo e da resignação. talvez só em mim esses sentimentos habitassem. mais adiante, dobrando outras várias esquinas, ia à minha frente um rapaz que teve algum tipo de paralisia. ele andava, mas o fazia com esforços do corpo todo, movendo braços e cabeça. a cadência do seu passo era mais marcada pelo pisar, batendo a sola do tênis no chão. e ele avançava pela calçada, sabendo onde queria ir. ele sabia-se todo, estava presente em si em cada passo, em cada pisada, em cada esforço para ir onde queria ir. seu veículo parecia atrasá-lo. mas ele não se importava, ou não parecia se importar: olhava ora para a calçada, ora para o horizonte. cuidava a superfície por onde passava e calculava com a vista o quanto mais faltava para alcançar algo. era alguém se movendo. mover-se é cuidar por onde passa e saber onde chegar. e o rapaz era tão bonito. ele parecia sorrir. talvez pelo fato de eu tê-lo achado bonito, eu diminuí a velocidade da minha caminhada para preservar-me no seu encalço. talvez por eu tê-lo achado confiante eu quis zelar por ele, como numa fantasia de apoio para que ele seguisse seu caminho mais seguro ainda. de repente fui tomado por um delírio: estremeci ao pensar no risco de que ele pudesse tropeçar em algum buraco ou pedra ou paralelepípedo e cair no chão, machucar-se. de repente inventei para ele uma fragilidade que, embora real (de fato havia buracos e pedras e paralelepípedos soltos pelas calçadas, que poderiam fazê-lo tropeçar), subtraía dele autonomia. ele parecia depender totalmente de mim para não cair naquele momento. eu já queria carregá-lo, salvá-lo de todas as pedras do seu caminho. com isso eu confiscava do rapaz aquilo que por primeiro eu havia nele admirado: sua autenticidade irreverente de se mover, de estar no mundo. canibalmente eu fantasiava engolir (incorporar) aquilo que de belo eu havia encontrado naquele ser. baixei a cabeça, olhei para o chão, apressei o meu passo. distanciei-me do rapaz, ainda agarrado ao som dos seus pés batendo no chão. enunciei mentalmente "não tropece, não tropece...". e fui eu quem tropeçou na escadaria do prédio. [...]

tive pensamentos sombrios. não foram sobre a sombra, nem se esconderam por trás da luz. foram pensamentos sombrios porque me cobriram com um manto escuro, frio, e se enrolaram pelos meus braços e pernas até me convidarem a parar de me mexer, e enveloparam minha cabeça em muitas voltas, revoltas, como se um turbante em chifre cinzento. eram pensamentos tristes. eram pingos vagarosos e intermitentes, amargos. não eram translúcidos, não havia lucidez; eram opacos, sem brilho. pensamentos melancólicos de uma textura grudenta, de aspecto denso e pesado, que se derretem lentamente e carregam o que estiver a sua frente com sua aderência morna, incômoda. tive pensamentos doídos que andaram pela minha cabeça como panos velhos reutilizados, manchados, furados, fedorentos. pensei de sombria-mente, de triste-mente, de doída-mente. eram moscas nas minhas narinas.

daí me vi andando pela calçada úmida, um pouco limenta, e o céu bem carregado de nuvens cinzas, aquele cinza brabo de quem quer brigar, e batia um vento frio, e a rua estava vazia. só eu andava naquela quadra, e uma ou duas outras pessoas dispersas nas demais. havia um silêncio quase de cidade fantasma. naquele momento eu me senti sozinho e me doeu um pouco o coração. porque sozinho é, sozinho foi, sozinho será. e ontem, ou antes, estava lendo um livro do Caio no qual consta um conto que me irritou muito. porque reconheci na estética da sua escrita a mesma que quis imprimir num parágrafo lindo que escrevi uns anos atrás, sem nunca ter lido o tal conto. acho que o título é "Visita". odiei esse conto, e por uma única razão: não fui eu quem o escreveu. eu achava que eu era autêntico ou que havia sido, pelo menos uma vez. porque cópia é, cópia foi, cópia será. pois eu disse que não queria grandes valores, queria somente o que era do meu direito, da minha alçada. e aquilo que era meu por direito era pouco, talvez não uma miséria, mas algo pagável. e disse também que eu não precisava justificar o porquê de eu reivindicar esse valor. era ele quem tinha que argumentar sobre sua razão de não querer me pagar o que devia. uma dívida é uma espada. muitos me devem, muitos usaram meu dinheiro em benefício próprio. para muitos eu emprestei por ajuda, num momento de necessidade. e muitos não têm intenção de quitar o débito contraído. porque enganado é, enganado foi, enganado será.

[...]ool. pude sentir o dia todo vibrando na casa, inclusive depois de o sol se por, quando a luz das lâmpadas de led atraíram pequenos insetos esvoaçantes que contrastaram com as paredes branco-aluguel do meu imenso apartamento de dois dormitórios com aberturas para o norte e para o leste em cujo piso os raios de sol se deitam no inverno e também o pó da construção de edifícios ao redor e os pelos que caem do meu corpo e renascem, renascem, renascem. eu senti o sol, a luz das lâmpadas de led, o redemoinho do bater das asas dos pequenos insetos, percebi os tons de branco das paredes, o peso do valor do aluguel, a amplitude dos quartos, senti o norte e o leste como se fosse bússola, beijei o piso, arrepiei de frio no inverno, juntei com os dedos o pó, acompanhei o crescimento dos meus pelos - no dia em que completei uma semana de regeneração hepática. descobri que posso cozinhar bebendo água. descobri que posso enfrentar o domingo encarando-o, desafiando-o, sem a covardia de maquiar alegria onde não há olho para colar um cílio postiço. penteei meu cabelo todo pra trás, contra a raiz, e me senti como elvis, ou cruella de vil. visitei ruas onde ergueram-se prédios nos quais eu gostaria de morar e que sei que jamais morarei porque não terei condições financeiras ou porque sequer estarei morando aqui ou porque morrerei semanas depois de assinado o contrato de compra daquele apartamento que reformei inteiro depois de admirá-lo da calçada. sem um pingo de vinho. não tive medo do domingo. descobri que, talvez, meu ranço seja mesmo com a terça-feira, a enjeitada, enjeitadinha, que não é nem tão pesada quanto a segunda-feira e nem tão arrastada quanto a quarta-feira: é só um intervalo insosso de vinte e quatro horas entre a impotência de ter de assumir o início da semana e a demora em atravessar a sua já metade rumo ao final de semana. nenhuma saudade da minha juventude, quando eu era bonito e não sabia. hoje sou feio e sei, e me prefiro hoje. até tenho uma garrafa de vinho, mas ali está para servir de tempero enquanto cozinho - não penso nela com furor, com desejo, com intenções escusas de bebê-la até cair sem memória ou, um pouco antes disso, até conseguir dizer algo ou pensar algo que me faça chorar. não penso em descontar na garrafa de vinho, em responsabilizá-la. fui comedido e parcimonioso, um pouco preguiçoso porque não fiz faxina, mas lavei roupa, lavei louça, cozinhei maravilhas, e trabalhei!, e produzi intelectualmente!, e fiz exercícios e tentei higienizar minha mente contra os mofos do coração. bebi muita água, água mineral e na forma de chimarrão com chá de boldo - um agrado e um estímulo à regeneração hepática. em minha defesa: fiz de tudo com harmonia, prazer, e pouca relutância. e pouca culpa. pouca culpa por não amar, pouca culpa por ter dispensado quem dizia que um dia me amou, pouca culpa por não me ver amando e sendo amado no futuro. pouca culpa por ter perdido oportunidades de morar no estrangeiro e por ter gastado em dezembro $179,90 numa garrafa de espumante que veio sem nenhum perlage. só sinto rastejar dentro de mim a lacraia da culpa, pequena, por eu ter tomado muito café gelado da prensa francesa, com pedras de gelo, e umas três colheres de sopa de açúcar. muito açúcar. shame on me. terminei o domingo sem medo dele, com pouca culpa e com uma maçã e debussy aos berros. sem um pingo de álc[...]
[...]ez em que eu gritei e cuspi em ti. nunca pedi desculpas por isso, mas peço agora. de boas. entendo... mas acho importante de dizer que eu suportei muita coisa e me impedi de dizer e fazer muita coisa por ti, para ti. eu sabia que tu não era apaixonado por mim, mas eu era. e eu assumi que era e vivi essa paixão no lugar e tempo que podia. o fato de eu não poder te ligar, mandar mensagem, encontrar pro chimarrão; de não poder fazer cobranças por ciúmes, de não poder chorar na tua frente de saudade; de não fazer planos de viagens de verão; de não dividir a mesa, o vinho, o enxaguante bucal; de não poder te convidar para o banho; de não poder adormecer do teu lado e nem demandar que isso acontecesse: foi tudo uma grande lição. dominar um sentimento tão selvagem não é para amadores. os meus shows dramáticos de puro enamoramento, eu os fiz em casa, a sós. houve uma vez em que chorei observando o fogão - tão somente o fogão no escuro já era o suficiente para me fazer chorar por ti, de falta de ti, de saudade de ti, de esperança de ti: desesperando de ti. penso hoje que não queria que alguém me visse chorando em frente a um fogão no escuro. e durou uns seis anos. e até hoje eu considero que essa foi minha única paixão; nunca mais senti isso por outra pessoa. não é algo do qual tu deva te orgulhar e, certamente, nem eu. até que um dia as coisas fazem sentido, ou os sentidos fazem as coisas. num certo ponto algo se encaixa, se adere. e todo o resto se organiza. não é algo racional, do tipo "agora eu entendi tudo". eu não consigo explicar por que razão a vida parece menos pesada agora - esse é o sentido. não é um paraquedista que cai na consciência. é só um brilho morno que sinto emanando das coisas. não é minha salvação, também. minha vida vai continuar sendo meio merda. acho que nunca vou conseguir comprar minha própria casa. acho que nunca vou me apaixonar como eu me apaixonei por ti. talvez seja por isso que, hoje, eu esteja apaixonado pela paixão que senti por ti: desejando-a, fantasiando-a, desesperando por ela. de fato, a paixão que senti por ti não fazia nenhum sentido, e mesmo assim eu sentia um brilho emanando das coisas... hoje, porém, vejo uma luz opaca porém constante de mim a ti, de ti a mim. uma cumplicidade de quem soube o que houve, fala sobre isso se for necessário, mas respeita o silêncio geral que paira sobre essa memória. te quero sempre per[...]
[...]ença, o corpo sentado ao meu lado: me recolocou perguntas cujas respostas me têm sido confiscadas. o modo como avisou que vinha, como entrou em minha casa, como me olhou, como me ouviu, e pediu para ver meu sexo, tudo isso atualizou experiências já tidas com outros homens - tristes. em parte, tentei não vacilar nos mesmos erros do passado, embora minha atitude 'bela, recatada e do lar' não seja a mais adequada para quem pretende conviver com o animal selvagem do desejo, nem seja a mais performática para quem se traveste de o-outro imaginando-se o-único. mas tenho respeitado o silêncio e a distância nesses dias que se passaram. não sem expectativa de alguma palavra, qualquer que seja, uma tal que não demorarei para responder com acolhimento. (será que agindo assim estarei incorrendo em outro erro? a ver.) não foi somente pelos cabelos ou pela barba, nem somente pela roupa. pode bem ter sido, entre outros, pela voz. e a história que aquela voz contava, isso sim me reaproximava dos trechos inacabados de encontros pregressos com homens. alguns dizem: "gostou da postura de homem..."; não se trata de postura, mas da forma como ele narra a própria história, escolhendo quais palavras e dando quais entonações, impondo becos sem saída a certas frases; lacunas daquilo que ele me contou dele mesmo, foi nelas onde me grudei e me enganchei. nas duas horas em que ele esteve aqui, eu adiei tocá-lo. e quando toquei durou quinze minutos - vinte, no máximo. para agora repetir as imagens e cheiros, e evocá-los, colonizando o que poderá ser uma segunda vez: a expectativa é que a vontade dure semanas. não tenho como garantir que haverá segunda vez. nem ele. nem ele verdadeiramente quer ter segunda vez. nem verdadeiramente ele quer. sou apenas eu quem quer verdadeiramente: respostas às perguntas que faço, um alinhavo mais consistente com os pedaços de homens que conheço. montar uma figura, senão acabada, pelo menos agregada a ponto de ter uma voz que me conte suas histórias sem becos, nem atalhos. que seja, eu aceito, o contorno vazado, furado, de um homem: mas de um homem que também me dirija perguntas. sem essa de caminhos sem saídas, sem essa de dead ends. meu toque foi feito para durar horas - que ele volte e exp[...]
[...]inuei crescendo, mas não parei de fantasiar. talvez tenha sido esse o problema. não entendia o porquê de cessar a imaginação sobre quem eu poderia ser, sobre quem eu poderia ter sido. ativamente, eu criava mundos, e pessoas habitantes desses mundos, e histórias de vida para as pessoas habitantes desses mundos. grandes ficções. em vários momentos sinalizaram que eu não era mais criança e que, portanto, aquilo deveria parar. passei a fantasiar escondido; passei a falar sozinho. da transição entre a brincadeira de criança para a argumentação de vida adolescente, mantive essa alça imaginativa que funcionou por anos como um corrimão. falava sozinho com a mesma fecundidade com que ouvia músicas e criava cenas para os sons. não me recordo de ter tido um corpo desconexo, desajeitado, mas lembro de comentários sobre minha voz. é isto: não ouvia o som da minha voz, mas os outros ouviam e a detestavam. não porque era feia, mas porque não era apropriada a um jovem adolescente. esperava-se do jovem adolescente que fosse mais decisivo em seu gênero, em sua masculinidade - tarefa difícil mesmo pra nós, hoje com quarenta. pensando melhor: talvez detestassem minha voz não pelo seu tom, mas porque eu a gastava falando com pessoas que não existiam. eu falava sozinho porque estava sozinho, porque me sentia sozinho. e esse era o problema, propriamente, e não o fato de falar sozinho. eu criava mundos, e nesses mundos eu tinha muito pra dizer, havia muitos pra me ouvir. não cessei, nunca - pelo menos não até às portas dos quarenta - de fantasiar: fazer o exercício de querer outra vida. não nego que talvez essa brincadeira tenha se alongado por anos demais ou que de brincadeira não tenha nada. talvez seja mesmo um traço patológico. não tenho medo ser doente. tenho medo de me encontrar já na segunda metade da minha vida e ainda depender do vintém do seu olhar. eu não cessei de fantasiar outras vidas porque a pura imaginação era o melhor aprendizado que tive na infância, porque era a forma como alguma cor poderia sobressair no morno quadro de natureza morta do dia a dia do interior do brasil da década de noventa. eu imaginei, eu fantasiei, eu falei com meus personagens por anos. continuo falando com eles, com gente que não existe. essa gente que não existe ainda se desdobra em torno de mim, essa gente se coloca ao meu redor como personagens que são. olho para elas com carinho e as escuto em suas demandas, essa gente que não existe, e pra elas dirijo perguntas sobre por que da sua gargalhada e por que do seu nervosismo. um monte de gente que não existe, das quais não tenho medo nem quero me ver livre, com quem mantenho diálogos e sobre quem construo razões para serem bobas, tímidas ou desonestas. nada é estranho ou doentio. enquanto imaginação, enquanto fantasia, é mais inocente do que men[...]
[...]ei se foi o meu ferro quente demais ou se tua pele muito jovem, mas deixei em ti uma marca que não vai desaparecer tão fácil, tão cedo, por completo. tu sabe disso. os açoites que te deram no dia em que nos conhecemos, nem eles são mais marcantes do que eu na tua vida, no teu corpo. eu permaneço fiel àquele homem que chegou carregado por três amigos, aquebrantado e torcido, com a pele das costas em lascas finas, com a carne dos músculos lacerada e com alguns ossos das costelas à mostra. tu foi jogado na cama inconsciente, envolto num lodo de terra, urina e sangue. nós te banhamos, limpamos de ti a sujeira cruel que te tinha abatido. eu, especialmente, me esmerei por horas para fazer os curativos na imensidão do teu corpo, da nuca às nádegas, de ombro a ombro, tentando costurar o que ainda poderia ser costurado dos nacos pendurados. os pedaços ainda vivos de ti: tu os deu, eu os recebi e eu os retribuí. eu reuni teus estilhaços e velei tua convalescença por mais de um mês, trocando os curativos uma vez ao dia, ritualmente, com respeito pela tua dor, pela tua revolta. era um homem forte, robusto, que eu tinha nas mãos; entretanto, devastado por uma brutalidade repulsiva. tua pujança estava opaca, deitado de bruços, uivando de dor. eu tratei de incendiar essa centelha que, toque após toque, gemido após gemido, visita após visita de limpeza das feridas, cresceu nos teus olhos a cada momento em que tu me via chegar. por mais rude e grosseiro que tu fosse comigo, exasperado com este estranho inserido na tua privacidade, o que é compreensível, eu sei que teus olhos e teus ouvidos gravavam na mente e no coração o rosto e a voz deste que te cuidava. quando recuperado, ao se por de pé novamente, habilitado a cuidar das vacas, cavalos e porcos, e da horta, e do jardim, as cicatrizes monstruosas não haviam diminuído fresta sequer do grande paredão que é teu orgulho. pelo contrário: tu suportou ser flagelado até cansar o carrasco porque não renunciaria àquilo em que acreditava. e eu sei, pelo modo como tu me acompanhava andar pelo quintal, à distância: havia acrescido na tua estima pelo mundo o amor que tu começou a sentir por mim. nem o teu cenho franzido despistava esse sentimento de proximidade, de comunhão, de fusão que tu já via emergir com força dentro de ti - à noite, deitado no feno do estábulo, um pouco antes de dormir tu te perguntava sobre mim e te perguntava sobre o porquê de te perguntar sobre mim, e nem o sono me afastava de ti, pois eu passei a habitar teus sonhos (o lugar mais poderoso onde já morei, no qual meu ferro quente chegou e permaneceu). instalei-me em ti muito antes de eu realmente te penetrar. e aos poucos, como felino desconfiado mas interessado, tu te acercou de mim, às vezes sozinho solicitando onde estavam o jardineiro, o cocheiro ou a cozinheira, às vezes junto com teus amigos rindo do meu corpo magro e esguio com piadas jocosas. naqueles primeiros meses, tu nunca me agradeceu pelo cuidado leal que dediquei a ti na cura dos teus ferimentos. talvez porque tu já soubesse que o verdadeiro cuidado e a verdadeira cura, ou que o cuidado e a cura mais importantes, eu ainda operaria em tempos porvir: na tua história, no teu sentimento de si, nas tuas memórias, nos modos como tu passaria a te narrar e a te apresentar para o mundo. foi somente depois de um amigo teu vir a mim aos gritos com um dedo decepado, e de eu ir até um amigo teu que delirava de uma febre misteriosa, e somente depois de eu cuidá-los e curá-los, que tu passou a trocar comigo frases curtas com teu sotaque acentuado. nós dois, um face ao outro, nos entregávamos lenta mas firmemente à força gravitacional que havia nos colocado um sob a mira do desejo do outro. até que tu inventou uma ferida infeccionada em uma das cicatrizes do açoite, próxima ao teu ombro esquerdo. tu coçava com as unhas longas e sujas um pedaço de carne ainda não fechado. te dei um sermão ríspido, relembrando-o do tempo e energia que eu havia dedicado a limpar e cuidar dos teus ferimentos, ressaltando as orientações expressas que eu havia dado sobre tua higiene: deveria passar a ser diária e meticulosa, coisa que tu não tinha seguido (pelo menos não com tanto afinco). e te avisei que a punição seria severa: tu teria que me suportar por mais catorze dias, ao longo dos quais eu te encontraria ritualmente de novo para fazer e refazer curativos com bandagens de panos fervidos, com whisky para desinfetar o buraco purulento. tu riu e disse que me aguardaria. um pouco surpreso e, sem dúvida, feliz, senti que eu havia escorregado com delicadeza para dentro de ti, e que algo em nós começaria: os amanheceres que testemunharíamos sentados lado a lado na varanda, pequenos fragmentos de dias frios e ensolarados que passaríamos juntos cuidando da horta, gotas de chuva e de suor que trocaríamos cortando lenha, as respirações contínuas e quentes que sentiríamos de nossos narizes se tocando, adormecendo juntos. uma partilha sensível de tempo, de espaço, uma experiência de amor que, por mais proibida que fosse naquela época e naquela sociedade, nós não deixaríamos de cultivar e goz[...]
[...]á tirei os panos e as coisas porque tu viria aqui em casa pra rasgar então rasga essa merda e veja bem o que a natureza meteu não há nada de mais ou de menos é apenas o que eu tenho é o corpo na extensão que me foi dada eu não tenho como alongá-lo e nem quero fazê-lo prefeito vomitar na tua cara a saber-me devedor de uma parte de meu ser que deveria ser maior quer centímetros pois os tenho 18 181 818 181 818 818 81 1 1 8 18 meça à vontade seu monte de lixo tóxico que tem uma entra da usb do tamanho daquilo que tu espera do outro rasga mesmo essa porra e veja se quer pegar pega pega pega nessa porra e não queira maior porque tu não vai ter maior nem grande nem roludo e não chora porra viajado não chora nessa merda de sofá que eu comprei com para porra de chorar e sai agor e leva essa foda de cueca rasgada que nem quero para eu poder dormir de graça na minha própria cama saia você também dessa boa casa que nada mais quer que um silêncio e um pouco de espaço sem a rola dura que se diz imensa e nada mais é que uma entrevista de emprego simpática do meu c[...]
[...]arei uma lista com nomes e um "muito obrigado" no final, bem simples. os nomes serão estampados com fontes de impressora; a minha assinatura será a mão, cambaleante, pois estarei sob efeitos de remédios. penso eu. não é muito óbvio pra mim se farei de consciência nua. agora, pensando naquilo que a vida pode se transformar, tendo a achar que pode ser. tem uma dor fundamental - não porque é importante, mas porque é iniciante: está em mim desde sempre. pessoas me deixam. e me deixam porque sou algo ruim, ou feio, ou inútil. buenas, trata-se de uma experiência báááásica de quem está no mundo, e não configura crise pra uma parte dos indivíduos no mundo. pra outra parte, é o estopim pra o "foda-se". pra outra, a chave da cadeia. para a maior parte deles, suponho, trata-se de um descolamento do mundo lá onde o mundo deveria suturar-se às pessoas. lá onde o mundo deveria magnetizar os seres, há algo que os repele e que os expulsa do âmbito do vivível. um chamado a vivermos aqui, mas sem nós. é bem verdade que o mundo precisa de gente ruim, feia e/ou inútil para que as boas, belas e enérgicas sintam-se isso e mais que isso. acredito, porém, que há outros ganhos em estimular os indivíduos a surfar na maré de merda. porque a dor é fundamental: é estruturante da relação com o mundo, com o trabalho, com os amigos. é indicativa da forma de término: sempre radical. a onda que quebra, turbulenta, da qual queremos sempre sair, é ainda acrescida do péssimo gosto e cheiro. não tenho suficiente formação e informação para saber se tal experiência fundante modifica ou não a estrutura do cérebro, genes, relações entre as células. enquanto estiver aqui, contudo, saberei que me foi dado um script. não sou alguém que segue ordens, o que significa que posso ser feliz. ou apenas leve - é o meu sonho. ser alguém diante de quem não há elemento que puxe, que cole, que magnetize. não quero entrar pra história - quero apenas sair dela com o mínimo de dignidade. há uma dor fundante: querer-se, estando no mundo, menos. não porque o mundo não seja bom o bastante, mas porque apenas não se quer. não se tem vontade de estar nisso que foi feito do mundo.  e então não é mais problema o mundo em si, mas as práticas que o tornam o que é. entendo, mas não me chame para ser militância pró-salvação-do-mundo: digitar a palavra "militância" é próximo de digitar a palavra "satânica" e "militono", e acredito que tais atos-falhos devam ser incorporados. quero um mundo vivível não apenas por ser belo mas por ser razoável: que ouça minha razão. suponho um mundo corpóreo, organísmico (novamente): um mundo que vê, que ouve, que sente, que processa os sentimentos; um mundo sensível. penso que este é um mundo sensível, este no qual vivemos, o mundo que é. mas a sensibilidade geral que o faz, que o organiza, apenas não deixa tempo para que minhas partes côncavas se alinhem às suas convexas: como se fossem engrenagens, elas passam muito rápido por mim, desabilitando quaisquer acoplamentos. e ignoram que eu tenha parte convexas que poderiam contribuir para esta paisagem (triste) que vejo, na qual vivo. o fato é: este espaço vacante que tenho, e no qual as coisas do mundo se enganchariam em mim, se torna inútil; e aquilo que tenho para dar, eventualmente a quem puder, não é julgado relevante: sou uma engrenagem cujas vilosidades (sou um intestino?), cujas dentições (sou um boca?) são permanentemente desgastadas e apagadas. torno-me uma roda solta, reprodutora de si mesma num perpétuo movimento. não como nem cago nada. não sinto a dor e o gozo das outras dentições me penetrando. não me encaixo, afinal. e é isto que toda a maquinaria objetiva: que sejamos mais uma roda infértil girando dentro do motor. mas a dor fundamental não permitirá que isso aconteça. é próprio de que se sente ruim, feio e inútil que haja estremecimento, choque, vibração, atrito: entropia. haverá sabotagens. quis-me livre e cá estou implo[...]
[...]ogou o corpo do homem no mar. ele estava sem vida. mas ela lembrou de quando o conheceu, de quando ele assim chegou, de quando ela aceitou, de quando eles pegaram o barco e foram a alto mar. ela pôde beijá-lo e dar despedidas da vida aqui, homenageá-lo. pergunto-me se falta um pouco de homenagem na vida hoje. se falta um pouco de reverência, de silêncio frente ao corpo que não fala mais, que não age mais. se falta um pouco de solidariedade na nossa perspicácia de saber-nos mortais e findáveis. toda luz, toda rua e esquina, e o chão por onde passei não teriam sido o espaço contraído de um belo amanhecer no qual eu e os cheiros do lixo com vermes poderiam ter vibrado de modo a transmutar o resto em tudo? não terá sido isso toda a história da natureza? perdoe-me, mas ajoelho apenas para aqueles que despem-se. perdoe-me, mas gozo apenas para aqueles que estão nus no luar. queira-me, e te condeno a navegar. cuidado com o mar, com as lagoas e com os barcos em geral. eu os uso para matá-lo. e o mato. te quero silencioso como fumaça, adentrando meu quarto. te quero móvel, doce, macio. te mordo. quero tudo da grama, e me ajoelho nela, para tirar de vós aquilo que há de mais vivo. quero que saibas que estou aqui, ajoelhado. e que me queiras. e que a burka e a vergonha sejam apenas a alegoria para tu me querer mais. e não quero casar. nem te trazer pra minha casa. quero que tu esteja exatamente onde estás, encostado na árvore com a bermuda nos pés, seminu, convidando a mim e o mundo para estar entre as coisas que produzem arrepios. quero tudo que há em ti, e as pequenas canecas e os panos de prato, os bolos de pó debaixo da tua cama: quero tudo de ti, os sons de quando tu acorda e peida, o mijo espirando na água do vaso, o cuspe desnecessário para dizer que ocupa um mictório. quero tudo. danço e regojizo nas saliências da tua camiseta, que apontam para uma tristeza e que sei dúbia. tu não és infeliz; és apenas sozinho. verte de mim uma água morna radiante. piso no chão de madeira marchetada: levanta o taco secular, beija a árvore morta. sapateio em milhares de anos de seiva grossa. agora tenho uma dívida histórica com a natureza e preciso drenar qualquer coisa (seiva, saliva, lágrima, esperma) que me permita saldar o débito. pode ser qualquer secreção do corpo - mas terá de ser daquele que amo. a única breve informação que poderia dar a meu respeito, para qualquer marciano ou extraterrestre que aqui pousar, é que eu não extraio coisas de quem eu amo. eu produzo a partir do quem eu amo, eu monto e manufaturo o mundo junto de quem eu amo. não traga sua vergonha para habitar tudo isso que construí para mim e para quem eu amo (embora seja difícil e demorado dizer quem eu amo). se deus existisse, ele me quereria como seu embaixador. mas como ele não existe, continuo andando pelo canal de São João Del Rei achando-o lindo. mas como ele não existe, eu continuo bebendo cerveja até perder a noção de espaço (e cair de boca aleatoriamente). mas como ele não existe, eu permaneço na dúvida: com isso eu sou verdadeiramente mau? eu sou. sei que sou. suaves são as tintas pintadas por alguém que desconheço: não há coisa alguma de mim nelas. razão pela qual não penduro luminárias na minha casa. venha comigo e habite-me: invada e esteja-se: faça sua inteira adesão ao espaço que sou, às palavras que digo, ao cheiro que tenho: deite-se em mim: fale com minha língua, roçando nela: durma comigo. dormir é o ato mais puro. quede-se com sono. cheira-me o pescoço e durma. sinta-se livre para estar em minha presença. prove-me que não sou um monstro. ronq[...]
[...]vre-me desta baboseira que é viver. imagine você que hoje recebi uma "visita". [atente para as aspas, pois sempre que uso aspas eu quero dizer algo diferente do que digo. é uma suspensão de sentido.] a "visita" chegou, me encheu de conversinha sobre a mulher: "ela monitora meu celular", "ela quis separar porque recebi uma ligação de outra mulher", "ela decidiu que quer ter filhos", "eu preciso dar satisfações o tempo inteiro", "eu estou indo à academia todos os dias". acachapante para qualquer tesão, pois tive dificuldades de ereção. mas, de fato, ele estava bem melhor fisicamente que eu - meu corpo deformado em 2020 depois de 3 garrafas de vinho diárias entre sexta e domingo por longos meses de intensa tristeza devido a todas as decisões merda que tomei desde 2014. enfim, estou velho e gordo - eu diria "flácido", mas prefiro simplesmente dizer flácido mesmo porque não quero dizer nada diferente do que digo de mim mesmo. ele tirou primeiro a camiseta. ok, ótimo. mais conversinha: "ela fica mandando mensagens o tempo inteiro", "incomoda principalmente depois do horário comercial". [como deve ser chato ser incomodado depois do horário comercial, quando supostamente deveríamos apenas e tão somente descansar.] ele tirou a bermuda jeans. parabéns. [parece que andou malhando a perna.] começou a se tocar por sobre a cueca cinza de tecido sintético, marca Lupo. eu mandei tudo às favas e tirei a regata, abaixei a bermuda. tá tudo aí, meu filho, não se acanhe. ele discretamente abaixou a parte superior da cueca, mas não a tirou. seria um sinal de não ter gostado do que viu? sim, estou "flácido" e flácido, "gordo" e gordo. talvez tenha sido o "filminho" de DP hétero de rolando na televisão Qled da Samsung, 55 polegadas, que surtiu efeito em algum momento. perguntei se eu "poderia descer até lá". [são elegantes linguagens oitocentistas sobre práticas sexuais escusas.] cerca de 1 minuto depois de "chegar lá", ele diz: "melhor que mulher". pergunto-me agora se essa frase não deveria ser registrada na minha lápide e com as devidas aspas: "melhor que mulher". ou no meu obituário, no meu curriculum vitae. no meu cartão de visitas. "olá. sou 'melhor que mulher'", suspendendo o sentido, é claro. só duas vogais de diferença de uma palavra para outra, e todo o sentido muda. por que precisamos de aspas se um boquete revela toda a filosofia de linguagem necessária para viver?
temos um acordo: aceitamos a presença um do outro somente na medida em que nos tolerarmos. somente na medida em que nos calarmos. somente na medida em que permaneçamos imóveis, catatônitos. ou não temos acordo: uma coroa duradoura de espinhos sobre nossas cabeças ou recheando nossas bocas. cuspindo ameaças mútuas.
não temos acordo, e não porque quero espinhos, mas porque não há critério possível de concordarmos com isso que chamamos de amor. não estou convencido de que há amor entre duas pessoas que não se conhecem para saber, enfim, quem elas são. para saber, enfim, das suas memórias, compartilhá-las, preservá-las. desconhecemo-nos e, por isso, não há acordo.

não há verniz que se possa jogar por sobre amor quebrado, nem que seja para exibi-lo para as visitas no vestíbulo, de passagem.
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a experiência de desamparo devido a nossa distância desfaz qualquer esperança.
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enquanto ele tem medo da morte, eu ainda sigo com o medo infantil da imensidão da vida.
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sozinho no mundo, sem laço forte o suficiente que garanta guarida.
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faço muito esforço para estar junto das pessoas; elas, no entanto, não o fazem na mesma medida.
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há algo a se aprender com a recusa, ou esquecimento, das pessoas em se esforçarem para estar comigo.
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há algo a se aprender com o esforço que faço para ser reconhecido em meu esforço de estar com as pessoas.
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no final, terá sido vã a tentativa de colonizar cada hora do dia, todos os dias, com a promessa de paz?
o dia bonito e quente poderia terminar com uma/várias cervejas geladas! mesas na rua, olhares solícitos, vento, conversas do grupo de trás e ao lado entrecruzadas com as nossas. a confusão é agradável, estimulante. tudo pode acontecer num fim de dia belo e quente. é possível até mesmo estender a mão e tocar em corpos disponíveis. se isso não acontece, é hoje permitido imaginar essa cena, sonhar com ela: tocar em corpos, deslizar a mão sobre eles. ainda não conseguiram impedir que imaginemos as línguas roçando, o que já é um alívio. mas está chegando a hora de uma censura algorítmica cuja interdição nós receberemos sem compreender e, portanto, sem questionar (nenhuma censura é totalmente compreensível e nenhuma é inteiramente questionada). essa censura estará presente até na mesa do bar, até no final do dia bonito e quente, até na cerveja gelada. e as ruas já não serão mais que passagens; e os olhares já não serão mais que meros reconhecimentos faciais; o vento, uma brisa individual e costumizada, controlada por aplicativos; e as conversas serão "conversações em rede", comportadamente técnicas. apagar-se-ão a confusão e o caos, e o babelismo com o qual brindamos o final de dias quentes e bonitos será substituído por uma organizada alocação de corpos cujas interações obedecerão lógicas paralelas e diagonais, de ponto a ponto, criptografadas. sem mais toque, sem nenhuma disponibilidade dos corpos em serem tocados randômica e inesperadamente, acostumados de forma triste à frieza técnica da "conversação em rede", nem mais a imaginação das línguas roçando será viável. essa cena terá desaparecido das lembranças, memórias, tradições, mitos e lendas. por que imaginar algo que já não estará na borda daquilo que é possível acontecer? aí, então, a cerveja será substituída pelo relaxante muscular.
mudei todas as senhas - de email, de internet banking, da única rede social da qual participo, dos serviços profissionais online. escolhi um símbolo que, para mim, remete à transformação em corpo celeste de quem me deixou. todos, em bem da verdade, me deixaram; mas esse foi o primeiro. teria sido diferente se ele ainda estivesse aqui. eu não seria mais feliz, tampouco ele. eu apenas me satisfaço em me angustiar com pensamentos sobre o quão diferente seríamos. quero descrever precisamente isto: a satisfação da angústia em pensar ser diferente, em reconhecer que poderia ter sido de outra forma - que não é agora, que não será depois. mas que poderia ter sido. talvez a descrição mais perfeita seja precisamente verbal: poderia ter sido, o passado bifurcado, não realizado, daquilo que já aconteceu. o futuro de um passado abortado por escolhas de minha quase inteira responsabilidade. a descrição não pode se dar por adjetivos. não há palavras - ou há muitas, difusas, que só cobrem parte do imenso significado do que sinto - que possam caracterizar o esvaziamento provocado pelo fracasso em assumir as escolhas improdutivas que me separaram daquele que eu poderia ter sido. o poderia ter sido é angustiante e é de minha quase inteira responsabilidade o fato de não ser e de nunca vir a ser. esse lugar verbal do não ser, do poderia ter sido e do nunca vir a ser é morno como coisa média sem serventia, sem utilidade, objeto ordinário desprovido de franja alguma que permita e estimule a criatividade do mundo da vida. a tristeza derretida, lânguida, de quem escora a cabeça em paredes para não cair desmaiado de impotência no chão, de quem arrasta os dedos esticados como chicletes velhos grudados na sola do sapato porque não se mantém em pé. encosto-me em qualquer coisa que me pareça firme, nem que seja por alguns segundos, para não soçobrar. não cabe a pergunta "mas, agora, o que se é?". tal pergunta não cabe neste cadinho, nesta maloca, nesta grutinha escura e úmida do que eu sou agora. sou pequenino e esmagadinho, coisa diminuída e rebaixada pelas curvas tangentes às boas escolhas, nas quais me acomodei. de minha quase inteira responsabilidade. pressionado pela pressão atmosférica do mau encontro, puxado pela atração gravitacional da farsa escandalosa. por meio de quais demônios eu me conecto com o mundo? essa é uma pergunta que cabe na minha cela. a resposta sai fininha, espremida entre as paredes deste cubículo de vida que se fecham e comprimem meu corpo todo a ponto de macerar meus pulmões e extrair das minhas cordas vocais apenas sons felinos:
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