[...]és bem hidratados com superfície pegajosa, camada de
verniz um pouco oleosa, unhas mal cortadas e uma delas, do dedão esquerdo,
encravada na beirada. Havia muy recentemente passado o creme branco e denso na
pele carcomida, ressequida, ressentida pelos anos e anos, e ânus, de pisadas em
falso que lhe torciam o tornozelo. Zelo nenhum, ou pouco, tinha ele pelas
coisas eletrônicas e biológicas. Sua lógica era a seguinte: deixar esvaziar
cada litro em cada linha, em cada cadafalso um pescoço, em cada bala um
coração, em cada modem uma ânsia pela biologia alheia que nunca vinha e que
nunca chegava, que nunca ultrapassava a média. Remediava, assim, um dia com o
próximo e um tempo por todos, por tudo o que houve no tempo sem olhar pra trás
nem pra frente, para que só o olhar existisse mirando o zênite de mau agouro.
Logradouro imundo era onde costuma frequentar, e muito, para compartilhar
momentos de prazer secreto, só dele, com muitos outros e sem que os muitos
outros soubessem que lhe era aprazível. Alguns sabiam. Bebiam, porém, de outra
água amarga que de seus joelhos tiravam, um ao lado do outro, em buracos cavados
nas paredes, cloacas bucais, canaletas. Era de muletas que olhava para o
zênite, e por isso o mau agouro: mão nenhuma poderia tapar o sol para o qual
olhava porque apoiavam-se nas muletas velhas feitas de madeira nobre, pernas de
pau, pés falsos, tocos e lascas de troncos ocos, serragem fina e o cheiro da
madeira raspada e envergada. Sentia que poderia escrever sobre tudo o que havia
em si, mas não. Não se pode escrever, sobretudo. As regras ou as leis do
romance, do conto, dos elementos narrativos: tudo precisa aqui existir e
coexistir em harmonia, em beleza e em inovação. Não poderia, jamais, escrever.
Hidratava os pés brilhantes de madeira que reluziam, oleosos, na raspagem da
luz por sobre a pele. Nem sobre isso poderia escrever, pois não dá romance, não
dá história, não há enredo. Pés de madeira não servem como personagens. Insistia
haver redações livres com belas marcas, letras cursivas e capítulos em números
arábicos – muito mais elegantes que os números romanos – lá, aguardando, capas
duras de cores sóbrias e elementares. Um título musical. Sonoro, queria dizer,
um título melódico. Pouquíssimos sabem ler neste mundo. Seria um bom contador
de histórias não fosse o pendor em colocar-se sempre como anti-herói. Perdia o
interesse em novelas maniqueístas tecnicamente perfeitas. Escrever era um ato
terapêutico, um ato hermenêutico, um instrumento de descoberta das coisas que
ele sabia saber mas que desconhecia. Não haveria, acreditava ele, lugar neste
mundo e nesta época para mais um escritor: reconhecidos talentos são rápidos.
Se não podia escrever, fechava os olhos e imaginava com força uma folha de
papel em branco, uma caneta de tinta infinita, uma mão e um antebraço para um
escritor canhoto. Em sua mente fantasiava escrever. Quando a vida lhe chegava
crua, fantasiava escrever. Fantasiava a mão esquerda deslizando, dançando por
sobre a folha de papel em branco, esvaziando em cada linha a crueza de uma vida
que não se via, nem se lia, nas palavras escritas. “Escritor”, ele murmurava,
com a cabeça enterrada nos travesseiros e com os beiços desencontrados. Quando
doze horas por noite não eram o bastante, nem por três noites consecutivas, e
quando abria os olhos pela manhã e mirava o zênite já desejando fechar os olhos
para dormir novamente, e quando o tempo que existia virava passado e desdobrava
em futuro, quando os pés carcomidos e ressentidos ressequiam-se e rachavam como
terra de deserto: aí, então, o pescoço quebrava no cadafalso e o coração era
furado por uma bala, os beiços desencontrados não murmuravam, e sim gemiam
“escritor”. Todos os cegos o adoravam, o veneravam, choravam com seus contos e
tinham seus romances como livros de cabeceira. Entre os cegos ele era Nobel de
literatura.