O rascunho de Douglas - parte VII

- Eu tenho medo de ficar sozinho. Vai que me acontece alguma coisa, e eu to sozinho em casa? Num presta, não...

Estávamos, eu e Douglas, contemplando já o céu do início da noite. (“Quem haveria de deixar este guri sozinho no mundo?”) Meu braço esquerdo encostava no seu braço direito; peguei a folha de um gerânio ainda vivo, não-seco, da floreira da janela da sala ampla. Cheirei. “Sente este cheiro. É o cheiro da minha infância lá no Sul.” Levei a folha até suas narinas com minha mão direita. (“Como quem passa um mate: sempre com a mão direita.”) “Dá pra sentir o cheiro do pão assado no forno de pedra da minha vó?”, eu perguntei. Ele sorriu, os olhos achinesarem-se. Meus dedos, que já estavam tão próximos de seu rosto, tocaram sua sobrancelha, deslizaram na pele de sua face e pararam no seu queixo. Os dois narizes se aproximaram. Os lábios se encostaram. Pressionei sua nuca em direção a mim. As línguas não se encontraram, pois as bocas não se abriram. Meus olhos estavam abertos e pude ver que os olhos de Douglas estavam fechados. Ele sentiu minha barba cerrada, de pelo grosso e longo. Recuou, assustado, e arregalou os olhos sorriu envergonhado.

Depois de um breve momento de silêncio, Douglas pediu para que eu deixasse o apartamento explicasse aquilo. Desculpou-se dizendo que não era preconceito, que tinha amigos gays, mas que ele próprio não o era Eu disse que ele brilhava, que tinha muita vida. Disse que era bom estar perto dele. Desculpou-se mais uma vez. Alegou que era preciso respeitar sua orientação. Aleguei que Brasília era seca demais, que minha vida era seca demais, que ele me mostrava coisas lindas. “Tu me seduziu, mineirim.” Sorrimos. Os olhos de Douglas achinesaram-se. Eu concordei, desculpei-me também. Brinquei: “O ar seco de Brasília está me enlouquecendo”. Douglas disse que nunca havia beijado um homem antes, que nunca tinha querido beijar um homem antes, que não era gay e que não queria que eu contasse para outras pessoas o que acabara de acontecer. Eu concordei, pedi desculpas pela impetuosidade, novamente responsabilizei minha carência e minha secura. Ele disse que não era preconceituoso, mas que aquilo não aconteceria novamente. Eu respondi que entendia e me desculpei mais uma vez. Houve um momento de silêncio. Tomei a atitude de dizer que voltaria a entrar em contato com ele por e-mail para dizer se tinha me interessado pelo apartamento. Ele concordou. Dirigi-me para a porta do apartamento, Douglas a abriu. Desculpei-me Desculpou-se uma terceira vez. Eu disse: “Desculpa eu”. Saí do apartamento com a sensação de que, talvez, eu não fosse tão seco quanto eu supunha ser.

Passei no supermercado antes de voltar para meu quarto de hotel impessoal. Tive que andar muito entre as quadras da Asa Sul do Plano Piloto, à noite, e vi poucas pessoas também caminhando. (“Esparsas. Distantes.”) Conhecer Douglas foi como experimentar um café raro, e decidi que levaria uma caixa de pó do grão Sul de Minas para ter comigo, em homenagem ao tricordiano. Talvez eu pudesse pedir que passassem o café na cozinha do hotel. Ou eu poderia guardá-lo comigo para cheirá-lo de vez em quando. Ou eu poderia tomá-lo diariamente no meu novo apartamento – que certamente não seria talvez ainda fosse aquele amplo, de lajotas brancas, da quadra quatrocentos e onze Sul, já que Douglas não expressou nenhum veto imediato à minha presença ali. Será que depois Depois do acontecido Douglas não me quereria dividindo o banheiro (“e as cuecas?”) com ele.? Li na embalagem do café que comprei a definição: “Encorpado e com aromas doces de chocolate e caramelo, o espresso do grão Sul de Minas apresenta uma acidez desejada e finalização prolongada e limpa, sem amargor”. Eis o gosto de Douglas em mim: prolongado e limpo, sem amargor. Doce.

E assim foi porque assim será: λ.

História da urina


Quando eu era criança, menos de 5 anos, meu irmão mais velho costumava me dar banho. Era uma aventura. Ele tampava o ralo do box até formar reter água o suficiente ali dentro para eu chamar aquilo de uma piscina. Eu me divertia na piscina de água retida. Lembro de querer planejar o sequestro do meu irmão durante um daqueles banhos. Lembro de premeditar seu sequestro. Daria-se da seguinte forma: depois do banho, eu levaria meu irmão até nosso quarto (dividíamos o quarto) e o deitaria na nossa minha cama. O colchão da nossa minha cama de solteiro viraria num eixo central de modo que sua superfície virasse o teto de uma antessala, de um porão. Nesse porão, onde nós cairíamos, eu praticaria nele todo tipo de experimentação corporal: sexo, tortura, inanição, contemplação, lambidas, beijos, beliscões. Meu irmão era circuncisado. Não obstante, planejava levá-lo para um corredor infinito cuja porta de entrada era o buraco da uretra de um pênis gigante, não circuncisado. Nesse corredor, em ambos os lados, havia homens com pênis eretos nos quais eu passava a mão ao avançar, levando meu irmão pela mão. Meu pai uma vez disse: “tu tens que sentar cruzar as pernas como teu irmão: de pernas cruzadas, mas teu tornozelo tem que apoiar-se nos joelhos.” O olhar de irmão me reprovava, e não terei tempo de explicar aqui a razão disso. Meu irmão se suicidou no dia dos pais, com um tiro no coração, no porão de minha nossa casa.

[...]és bem hidratados com superfície pegajosa, camada de verniz um pouco oleosa, unhas mal cortadas e uma delas, do dedão esquerdo, encravada na beirada. Havia muy recentemente passado o creme branco e denso na pele carcomida, ressequida, ressentida pelos anos e anos, e ânus, de pisadas em falso que lhe torciam o tornozelo. Zelo nenhum, ou pouco, tinha ele pelas coisas eletrônicas e biológicas. Sua lógica era a seguinte: deixar esvaziar cada litro em cada linha, em cada cadafalso um pescoço, em cada bala um coração, em cada modem uma ânsia pela biologia alheia que nunca vinha e que nunca chegava, que nunca ultrapassava a média. Remediava, assim, um dia com o próximo e um tempo por todos, por tudo o que houve no tempo sem olhar pra trás nem pra frente, para que só o olhar existisse mirando o zênite de mau agouro. Logradouro imundo era onde costuma frequentar, e muito, para compartilhar momentos de prazer secreto, só dele, com muitos outros e sem que os muitos outros soubessem que lhe era aprazível. Alguns sabiam. Bebiam, porém, de outra água amarga que de seus joelhos tiravam, um ao lado do outro, em buracos cavados nas paredes, cloacas bucais, canaletas. Era de muletas que olhava para o zênite, e por isso o mau agouro: mão nenhuma poderia tapar o sol para o qual olhava porque apoiavam-se nas muletas velhas feitas de madeira nobre, pernas de pau, pés falsos, tocos e lascas de troncos ocos, serragem fina e o cheiro da madeira raspada e envergada. Sentia que poderia escrever sobre tudo o que havia em si, mas não. Não se pode escrever, sobretudo. As regras ou as leis do romance, do conto, dos elementos narrativos: tudo precisa aqui existir e coexistir em harmonia, em beleza e em inovação. Não poderia, jamais, escrever. Hidratava os pés brilhantes de madeira que reluziam, oleosos, na raspagem da luz por sobre a pele. Nem sobre isso poderia escrever, pois não dá romance, não dá história, não há enredo. Pés de madeira não servem como personagens. Insistia haver redações livres com belas marcas, letras cursivas e capítulos em números arábicos – muito mais elegantes que os números romanos – lá, aguardando, capas duras de cores sóbrias e elementares. Um título musical. Sonoro, queria dizer, um título melódico. Pouquíssimos sabem ler neste mundo. Seria um bom contador de histórias não fosse o pendor em colocar-se sempre como anti-herói. Perdia o interesse em novelas maniqueístas tecnicamente perfeitas. Escrever era um ato terapêutico, um ato hermenêutico, um instrumento de descoberta das coisas que ele sabia saber mas que desconhecia. Não haveria, acreditava ele, lugar neste mundo e nesta época para mais um escritor: reconhecidos talentos são rápidos. Se não podia escrever, fechava os olhos e imaginava com força uma folha de papel em branco, uma caneta de tinta infinita, uma mão e um antebraço para um escritor canhoto. Em sua mente fantasiava escrever. Quando a vida lhe chegava crua, fantasiava escrever. Fantasiava a mão esquerda deslizando, dançando por sobre a folha de papel em branco, esvaziando em cada linha a crueza de uma vida que não se via, nem se lia, nas palavras escritas. “Escritor”, ele murmurava, com a cabeça enterrada nos travesseiros e com os beiços desencontrados. Quando doze horas por noite não eram o bastante, nem por três noites consecutivas, e quando abria os olhos pela manhã e mirava o zênite já desejando fechar os olhos para dormir novamente, e quando o tempo que existia virava passado e desdobrava em futuro, quando os pés carcomidos e ressentidos ressequiam-se e rachavam como terra de deserto: aí, então, o pescoço quebrava no cadafalso e o coração era furado por uma bala, os beiços desencontrados não murmuravam, e sim gemiam “escritor”. Todos os cegos o adoravam, o veneravam, choravam com seus contos e tinham seus romances como livros de cabeceira. Entre os cegos ele era Nobel de literatura.

Quando o vento venta, o pelo sacode. Mas não todo pelo. Somente o meu e o teu. Uma gota te satisfaz, mas não a mim. Um superfície, uma nota de 2 reais, um chip que aprove a transação: mas que corpo obtém e detém? Uma lata de cerveja, e tudo mais: não há nada como isso nos catálogos internacionais. Estar no topo não te faz mais magra, mas mais vista: há de observar bem essa sunga. Nada: na piscinada, muita piscina pra muito nada. Não quis, mas queremos todos. Que loucura, ou psicose, desejar todos os corpos do mundo, todas as bordas, todos os pingos que caem no teclado. Todos os hóspedes que querem atenção. Todas as pessoas bonitas que não trepam. E que ninguém admira. Todas as artimanhas de instagram pra disfarçar que somos infelizes. E todos os filtros: o que sobra dos filtros? E o que queremos dos filtros? Porque amo os filtros e sinto que têm o que acrescentar. Paramos com o saco de cerveja. Mas devemos? Chove pingos, apenas pingos, e será apenas pingos que essa doença do pé te pede? Psicótica e deusa: cousas que não prevemos. Cousas que não queremos. Mas de mim, de mim mesmo: tudo me peça e tudo me tens. Porque serei tudo o que quiseres, com as gotas e com os pingos, e com as lágrimas, e tu serás aquele que me edita. E eu vou. Porque há um longo. Uma coisa longa. Que verte. Verte na parede. E ponto. Eu poderia bem ser esse buraco por onde tudo o que verte escorre. Eu engulo tudo. Mas o lugar de ralo é tão delicado: uma pomba ou abelha, ou mosca: não valida. Um beijo e jamais seria isso, seria outro. Mas esse outro, essa coisa: por mais belo, seria outro. Não há nada além do corpo: essa coisa que mija, que fode, que caga, que desliza, linda, pela minha pele e que é linda: não há nada além dessa lindeza. Nem a superfície da água: há mais dentro. E fora: há tudo no cisto que acontece fora do corpo!
Entendo... às vezes sinto que sim. Outras, já não sei. Dar um passo para fora da pele, olhar-se ao revés. Concordo. Mas não é sempre que podemos. Há momentos em que simplesmente não temos como dar um passo. Não, não estou falando de deixar a vida nos levar. Estou falando de fazermos vida, de fazermos a nossa vida, de estar onde é preciso estar: precisamente onde estamos agora. Exato! Há aqui vida para ser feita? Sempre há, pois estamos aqui. Não apenas isso: mas também a manga solta da camiseta, o cós folgado da calça. Um corpo que se esvai, fino, pela bainha italiana de alfaiataria. Uma pele toda artificial. Uma paranoia dérmica: supondo sempre outra pele por debaixo desta, por vir. Isso, e mais aquilo tudo que falávamos antes: corpo, ética, todos os sorrisos do mundo voltados para ele. E novamente aquilo que falávamos recém: há aqui vida para ser feita, neste lugar onde todos os sorrisos do mundo secaram? Compreendo, mas discordo. Escuto, mas renego. Nenhuma serenata pós-coito me convencerá de que não há um lado B daquela história. Há uma versão pouco conhecida, não autorizada, de todos os fatos - como se fossem anti-fatos, des-fatos. Um silêncio grosso por entre aqueles pelos e do avesso da carne. É ali que preciso chegar, ali está a bagunça e a resposta para tudo que cai no vácuo. Revivo pelo por pelo o que já houve e estranho desde o início. Amanhã, a essas horas, estarei no céu. Afastarei-me, mas voltarei pra casa em seguida. Desde agora desejo não ir. Desde agora desejo que as asas derretam ao chegarem perto do sol. Quero rapidamente estar de volta em tudo aquilo que um dia não mais me pertencerá. Por quê? Por mais que argumentes, nunca houve escapatória: sempre estive por perto. Nunca te abandonei. Jamais te deixei e sempre procurei por ti. Repetindo ipsis literis todos os pelos e pênis. Na distância jamais existiu realmente uma separação. Eu poderia fazer um boneco, um pequeno fantoche dos restos retalhados dos corpos onde te busquei: serias tu, inteiramente tu, ninguém perceberia que jaz em outro lugar senão nesse corpo remendado com trechos de outros onde acreditei te achar. E fugias de mim. Pelas mangas soltas das camisetas, pelo cós folgado das calças. Eu compreendo, eu compreendo... Mas eu serei outro, invariavelmente. Essa pele na qual tocas, essa pele pelada, dela eu já pisei fora. Vejo-me pelo revés. Se tu te repetes nos corpos, eu estou fora do meu.
.... me catapultei para um imprevisto mais insustentável que um não sei.
Cabem seis janelas dentro da minha própria, se olhadas de dentro. De fora, a minha é só mais um buraco na parede do prédio alto. Só a minha está aberta. Fantasio muitas vezes com as pessoas paradas por detrás dos vidros das janelas de fora olhando para cá. Atrás das cortinas. Fantasio homens de pé atrás dos vidros, atrás das cortinas, vigiando o que acontece nas janelas de cá. Em algum momento seus olhares descolam da minha janela e deslizam para outra. Desconectam da minha janela. Desconhecem as paisagens da minha janela. Desinteressam-se pelas cores. Desimportam-se e escapam como gotas, bem lentamente, para outros cenários. Despontam em outras linhas do retrato. Fantasio que eu fico só, bem aqui, com a janela aberta. Nada passa por ela, entretanto: nem olhares, nem vento, nem chuva. Uma janela hermética apesar de aberta.