"Uma pessoa intelectualmente ruminante"

- Que tal um Jogo rápido? Te digo uma palavra e vamos fazendo associações.

- Não sou muito afeito a jogos rápidos, sou uma pessoa intelectualmente ruminante. Mas aceito, a título desafio.

- Azul...

- Azul calcinha, azul pastel. Nunca muito forte.

- Perda...

- Infância, fui uma criança perdida.

- Infância...

- Morte. Dando significação à perda estava a morte.

- Família...

- Moldura grossa e velha.

- Conteúdo...

- Tempo. Também poderia dizer “paciência”, mas prefiro tempo.

- E paciência?

- Só com conteúdo!

- Sexo...

- Exercício diário.

- Trepar todo o dia?

- Sim, todo o dia um pouquinho: através do olhar, da imaginação, das palavras, das imagens e do silêncio.

- Dinheiro...

- Descontrole.

- Álcool...

- Descontrole! (gargalhadas) Minha relação com o álcool é a mesma que tenho com o dinheiro. De destempero, de excesso, de uso e abuso. Ambos, se existem, não param na minha mão nem na minha boca.

- Beleza...

- (silêncio) Tempo e paciência.

- E conteúdo também?

- Não necessariamente. Só tempo e paciência pra poder sentí-la.

- Sentí-la?

- Sim. Não vejo muita beleza, eu mais sinto beleza.

- E sentes recentemente?

- Mais do que eu sentia no passado, menos do que sentirei amanhã - não é isso que dizem os romances de autoajuda? Ela cresce voluntariosamente, explode onde eu julgava árido.

- Em que pessoas?

- Não em pessoas, pelo menos não ultimamente. As pessoas têm se mostrado feias. Sinto beleza em sons e paisagens, menos em pessoas.

- Por quê?

- Porque sinto pessoas muito iguais umas às outras. Não sinto beleza na identidade.

Não é mais fácil lidar com um vibrador que com um homem “inteiro”?

- E há dor nessa experiência?

- Há dor em toda a experiência, inclusive nessa. Tenho me empenhado na tentativa de estilhaçar o corpo. Porque sei que ele não funciona mais como um estado geral, como uma gestalt. Não há mais as partes que, se somadas, excedem o todo. O que há agora são partes, e as partes dizem de si próprias. Ainda não conseguimos ir a fundo pra escavar as ligações, as bases, as condições e as verdades que contribuem pra essa repartição do corpo. Mas sabemos que estamos recortados, separados da nossa integralidade. Não que essa integralidade tenha existido em algum lugar do passado... Mas sugerimos que há algo de utilitarista na relação do corpo com suas partes separadas. Não é mais fácil lidar com um vibrador que com um homem “inteiro”? Não é mais fácil lidar com uma vagina de plástico que com uma mulher “total”? Esses são apenas alguns toscos exemplos de como é preferível reduzir e simplificar a aumentar e complexificar. Porque sabemos que a redução do corpo de “homem” ao pênis não é tão simples – um homem não se resume ao seu pênis; no entanto parece ser tudo aquilo que o define, e assim também funciona para a mulher. Mas é óbvio que não é só essa característica corpórea de nos define e nos fixa, até porque a definição e fixação do que é um pênis ou um clitóris não parece tão clara. Há outras definições que nos são importantes, há outras medidas que nos fixam, e que junto com o gênero vão nos fazendo ser quem somos. Se eu pudesse estender a mão e pegar em todos os homens que excitam, eu não estaria aqui te dando este entrevista. E eu não posso. O corpo vai se comunicando com outros corpos, e alguns deles são colocados como impossíveis dentro do possível – porque todo corpo que existe em sua materialidade é possível –, e daí se forma essa gosma pegajosa que se insinua pelo ventre e pelo peito. O suor também desempenha seu papel aglutinador nesses casos. E nós ficamos sem nenhuma “aderência” a esses status. Porque nosso corpo se comunica – troca informações, permuta e comuta – não pelo peito nem pelo abdome, mas pelo rosto e pelos olhos, ás vezes pelas pernas. Sempre pelos cabelos.

- E tem tido sucesso?

- Não (risos).

- Isso não te dói?

- Doía há um tempo atrás. Hoje parece mais uma condição. Porque quando fiz 25 muita coisa pareceu mudar nessa concretude que é meu corpo: pelos começaram a nascer no nariz – na sua superfície e dentro das narinas, se confundindo com a barba – pelos começaram a nascer nas orelhas. Quando fiz 26 minha barriga começou a exceder minhas calças. Com 27 eu quis morrer, e com 28 eu me sabia uma bosta. Com trinta vi alguma luz possível, mas com 33 nem a cruz me salvou. O tempo não cura, o tempo agrava. E vamos nos insinuando pra ele, com dor e com delícia, esperando um arrego: toma uma brochada na cara! Toma uma miopia! Uma calvície! Uma gordura, uma sinusite! Porque isso é o tempo correndo pelo corpo, mas também é a história marcando o corpo. Porque nosso corpo diz da nossa história. Está tudo gravado ali. Há uma delícia na superfície das minhas mãos que não sei bem como descrever... Talvez seja essa a experiência mais gratificante: a de me perceber envelhecendo e me saber melhor que quando mais novo. De sentir minhas mãos ásperas onde antes reinava a ingenuidade.

"Não nos importamos nenhum pouco em sermos confundidos com aqueles que nos atropelaram de tal maneira tão intensa"

- Eu não sabia que tua avó tinha sido alguém tão importante pra ti.

- Mas eu não disse que minha avó foi importante pra mim. Apenas sublinhei que quando eu era criança, por causa da chuva que caía, ficava temeroso que sua casa viesse a baixo. Havia, sim, uma certa compaixão pela fragilidade daquela senhora idosa. Mas nunca disse que ela foi importante pra mim.

- Então ela foi apenas uma metáfora de fragilidade?

- Pode ser que sim. Nosso pai, filho dela, também nos foi uma metáfora de fragilidade, mas a seu modo específico. Mas não queremos manter as nossas lembranças nessa polaridade entre profundeza e superficialidade, dividindo aqueles que foram de fato importantes daqueles que funcionaram apenas como metáforas para a experimentação e sedimentação de alguns sentimentos. Há na nossa história uma série de experiências com pessoas tão distintas que não podem ser classificadas em categorias separadas e hierárquicas; não podemos classificar hierarquicamente essas experiências nem essas pessoas. Mas de um modo geral fazemos uma distinção sutil entre elas, mais a título de precaução e de segurança do que propriamente de hierarquização: houve e haverá aquelas com as quais simpatizamos, com cujos corpos ou palavras nós flertamos, pessoas mais ou menos admiráveis e que se mantêm num estado de reserva discreta nas nossas lembranças. Houve e haverá outras, um pouco mais sagazes, que de fato nos conquistam: nos tomam num átimo ou lentamente, nos cativam em velocidades diferentes, em tempos diferentes, vão nos entendendo e nos analisando, dialogando conosco, eventualmente propondo cortes e mudanças naquilo que somos. As pessoas que nos conquistam introduzem essa força diferencial, esse processo de diferir, mas ainda assim não borram a fronteira entre o ‘eu’ e o ‘outro’. Mas aí houve e haverá aquelas pessoas que nos rasgam, que se jogam contra nós como cavalos se lançam contra uma falésia, ou mais que isso, como asteróides que colidem contra planetas; são pessoas que não pedem licença, que nos arrombam – às vezes no sentido literal da expressão – que se chocam contra aquilo que nós somos com uma violência tamanha, empurradas por forças que são às vezes as mesmas que nos fazem estar em sua rota de colisão, ou que às vezes nos fazem delas fugir, forças que nos fazem por elas transpassar e entrecuzar. Essas pessoas são aquelas que, de fato, nos constituem: a força do nosso encontro, violento ou não, faz com que nos amalgamemos, faz com que se imploda a diferença entre o que era ‘eu’ e o que era ‘o outro’, que por sedimentação, choque, rasgo, integração ou assimilação fazem com que os limites definidores do ‘eu’ sejam suspensos. E passamos, então, a fazer parte destas pessoas às vezes tanto quanto elas fazem parte nos nós, sem que uma distinção essencial entre o ‘eu’ e ‘o outro’ seja necessária – isso porque não nos importamos nenhum pouco em sermos confundidos com aqueles que nos atropelaram de tal maneira tão intensa.

- E por que essa distinção serviria como precaução ou por motivo de segurança?

- Porque é destas últimas que nossas lembranças serão pra sempre povoadas. Porque estas últimas serão, provavelmente, aquelas cujos nomes vamos sussurrar segundos antes da morte, pois de alguma forma elas estarão ali morrendo um pouco junto conosco. Porque essas últimas são aquelas que num intervalo mínimo de tempo, com o carro parado na sinaleira, esperando na fila do caixa do supermercado, mijando no banheiro, são elas que vão emergir das brechas do nosso ‘eu’ e então diremos: "lembrei dele" ou "lembrei dela".

- E isso é tão ruim para que tenhamos que nos proteger dessas pessoas?

- Não sei se é ruim, mas certamente é perigoso.

"Só a chuva faz isso por mim"

- Mas e a chuva? A chuva não era algo que te fazia bem? Pensei ter lido isso em algum artigo seu publicado numa dessas revistas menos criteriosas, de nível reflexivo mais rasteiro...

- (risos) Sim, é verdade. Publicamos muitas ideias nessas revistas mais baixas, que rastejam lá onde o lugar comum reina, ou pelo menos onde elas margeiam o trivial. Nunca nos incomodamos, nem eu, nem ela, nem eles, de pensar junto com o comum. É que pensar comum, pensar sem requintes, pensar linearmente nos dava a doce sensação de não ter te arcar com a responsabilidade dos rococós filosóficos que levam alguns a abraçar cavalos. Abraçando cavalos seremos notáveis? Abraçando cavalos seremos dignos de publicações mais elevadas, hosana nas alturas, dos l'enseignement supérieur? Sobre a chuva fizemos algumas reflexões, sempre muito secas – pra não perder o trocadilho –, nunca muito profundas. Nossa questão nunca foi a chuva em si, mas a água e a maneira como que ela se manifesta. Sempre detestamos água: mar, rio, chuveiro, cachoeira, lago, banheira, balde, ribeirão, torneira. Consideramos a água traiçoeira. Mas a chuva em especial era algo que experimentávamos com o fervor do romantismo. A chuva sempre nos aparecia com camisas molhadas, transparentes, grudadas ao corpo e com gravatas encharcadas, com cabelos encaracolados pingando água sobre a barba rala. Nunca experimentamos com a chuva qualquer tipo de privação: toque de recolher ou estado de emergência. Acredito que tu estejas te referindo a uma outra chuva, que não tem a ver com água nem com umidade, mas que é igualmente traiçoeira: chuva de críticas, chuva de desaprovação, chuva de incompetência, chuva de insuficiência, chuva de não. Bem... essa chuva nunca nos fez bem, mas sempre nos catapultou para um outro patamar na espiral. Com uns ferimentos no ego aqui e ali, mas nunca nos acomodamos, nunca permanecemos inertes com essa chuva. Porque desde sempre essa chuva de incompetência nos desabrigou, nos soterrou, nos desalojou. Nunca voltamos pro mesmo ponto onde habitávamos depois que ela passou por nós. E, de fato, mesmo não sendo úmida, ela nos afogou muitas vezes. Mas acredito que lá nesse artigo que tu leste, nessa revista menos criteriosa, margeamos um pouco a ideia de que o que subjaz na nossa existência enquanto autores e autoras que somos é desde sempre uma profunda inconformidade com o que já está e um sincero desejo de multiplicar o que virá. Nenhuma novidade até aí. Mas é que me lembrei de quando eu era criança, de quando caíam tempestades tremendas lá na cidade onde nasci, eu ficava ansioso olhando pelo vidro da porta dos fundos e velando a casa onde morava minha avó. Porque era uma casa de madeira que ficava no terreno contíguo ao nosso, e lembrei que de lá onde eu zelava pela casa da minha avó eu pedia pra que a chuva não derrubasse a casa onde ela morava. Supunha a chuva forte e a casa da minha avó, frágil. Porque já desde essa época nós sabíamos que a chuva, qualquer que seja, nunca deixa as coisas onde se encontram, nenhum macaco permanecia em seu galho, nenhum morro mantinha-se intacto, nenhuma vida era poupada. E com chuva também eu me dei por conta de que esse ou aquele não poderia mais seguir sendo meu companheiro; assim como eu tinha sabido, não sem dor, que a chuva tinha a potência de arrastar a casa da minha avó, eu também sabia que quando eu chorasse – que quando eu chovesse – por causa de algum deles, quaisquer deles estavam fadados a soterrarem-se em mim, a desalojarem-se. Se havia chuva em mim, havia desabrigo – de algum deles talvez, mas certamente de mim mesmo. Minha concepção de masculinidade inclui, isso se já não supõe desde sua matriz, uma certa feiúra. Aqueles homens que não se tornam feios ao longo do tempo não têm condições de permanecerem ao meu lado sem que sejam deslizados do alto de seus morros. Minha concepção de corpo pede, isso se já não exige como pré-requisito, uma certa dimensão de fragilidade. Aqueles homens que nunca adoecem ou que jamais se machucam estão fadados a serem abandonados como carros enguiçados pela lama em ruas inundadas. Só a chuva faz isso por mim: me cinde, me incorforma e termina, mais tempo ou menos tempo, por me multiplicar. Talvez nessa revista menos criteriosa esteja publicada essa simples confissão.