Não há mais nada

[...] e eu disse bem alto ‘pois eu acho um absurdo a senhora ter um carro. Porque um carro polui muito mais do que esse saco que eu tou comprando! A senhora que vá vender seu carro, comprar uma bicicleta, e depois vem discutir comigo a poluição dos sacos pra lixo! Sua velha!’ E saí com meus sacos pra lixo, lindos, negros, de cem litros. Fiquei revoltado com a velha me censurando, me taxando de ‘anti-ecológico’. Cansei dessa gente que posa pra foto, que sorri pra estranhos, que acena pra crianças, que dá moedas e bolachas pra mendigos. Me entristeci lá pelas tantas, fui murchando e implodindo. É demais pra mim, eu faço muitas coisas e penso muitas coisas, vou fazendo e fazendo, repetindo. Em toda coisa repetida – tirar o lixo, limpar o vaso, escovar os dentes, passar desodorante, comer – tem o correspondente de uma coisa vazia – um olhar que atravessa a tela da TV, a tela do computador, uma frase que não faz sentido algum, um corpo que pesa sobre a cama, de ressaca. Não há mais nada nas coisas que faço. Secaram e dissolveram-se, evaporaram-se alguns dos sentidos que eu as dava. Não sobrou nada. A grande dúvida da noite não foi ‘fumo ou não fumo’, nem ‘bebo ou não bebo’, nem ‘saio ou não saio’. A questão que eu me coloquei, o que me fez vacilar, foi justamente ‘dou a cara ou não dou’. Pro tapa mesmo. ‘Ofereço a face ou não ofereço’. ‘Exponho ou não exponho’. Lá pelas tantas resolvi continuar sendo espectador da vida, desisti. E desisti muito fácil, o que me soou um tanto ‘velho’. Pessoas ‘velhas’ desistem fácil, já não estão mais dispostas a desafiar as crenças que as constituem. Pessoas ‘jovens’ estão sempre negociando, sempre provocando, perguntando o porquê. Pessoas ‘velhas’ dizem que já sabem, dizem que devem ser motivo de fé, dizem que ‘já passaram por isso, acredite em mim’. Pessoas ‘velhas’ compactuam com os grilhões e te querem prisioneiro junto com elas. Pessoas ‘jovens’ lutam para desamarrar-se, mas na primeira oportunidade que conseguem de se desvencilhar preferem soltar o outro a si próprias. Eu sei que eu tou seguindo todo o caminho pra ser velho. Nasci velho, gostando das coisas prontas e belas. Rejuvenesci em algum momento, mas me cansa ser ‘jovem’, porque ser ‘jovem’ demanda energia. É mais cômodo ser ‘velho’. Desci uma escada. E lá debaixo eu vejo o povo todo lá em cima, e o povo lá em cima me vê aqui debaixo. Uns toleram a diferença, outros me jogam papel mastigado. Uns me chamam lá pra cima, outros passeiam e nem me veem. Uns me fazem companhia. O fato é que vejo todos – os lá de cima com a cara pro lado de baixo, os aqui debaixo com a cara virada lá pra cima – como distantes e absurdos, profanos, dissimulados. Nunca, nesses anos todos, vi alguém subir e descer a escada. Todos ficam em seus lugares, como se fossem camarotes de castas, imóveis, porém risonhos. Não sinto falta de acordar com alguém, não sinto falta de um corpo na minha cama, de uma respiração na minha nuca, de pensar no meu par quando eu planejo a janta e o café da manhã. Sou egocêntrico. Sinto falta, isso sim, de quem me arranca, de quem me rodopia. Sinto falta de dançar e sinto falta do meu par no passo do salão, na pista. Por tudo isso, acho que esqueci de ser tenro, esqueci que é necessário perdoar as pessoas, que é uma boa alternativa ser gentil. Embruteci nesses últimos anos. Esqueci que eu já fui sensível. Sou feito de inúmeros pontos de esquecimento, muitos vácuos de memória, esqueci que fui bom filho, que chorei na frente dos meus pais, que pedi colo, que senti medo – e que chorei por isso – esqueci que acreditei nos amigos, nas amizades e no prazer do sexo. Esqueci. Hoje são só corpos que manipulo, marionetes. Coisas sem vida, talvez um pouco como eu, um pouco como tu. O que me deixa irritado, muito brabo mesmo, é o fato de eu pegar a estrada amanhã e saber que o ônibus vai por um caminho que eu detesto [...]

Revirando os cantos

[...] e não tive grande problema em acordar e abrir a porta pros caras. Eram três, um mais lindo que o outro, um mais trabalhador-braçal que o outro. Uma manhã bem atípica: há meses não acordo com três belos homens na minha casa - independente do que estão fazendo aqui. Não ficaram muito tempo - nenhum belo homem fica aqui por muito tempo - só fizeram seu trabalho e foram alegrar outra casa, de outro homem solitário, de uma viúva, não sei. Daí eu voltei e olhei bem na frente da minha porta de entrada aquelas revistas empilhadas. E abri uma gaveta, só uma, pra ver se achava um texto... não, não era um texto, era a letra de uma música, de uma ária, na verdade, em francês. Ópera do século XIX. Encenada mais de 1.478 vezes no La Scala. De uma mulher que morre no final. E não é que achei?!? Cruzes, achei! Rasguei na hora! E fui rasgando, rasgando. A Bíblia Sagrada, rasguei todinha. Uma delícia de rasgar aquele papel-seda, ver aquelas letrinhas pela metade, empilhadinhas pra ir pro lixo. E rasguei também umas fotos, umas cartas e uns cartões "de amor". É, pessoas já me mandaram algumas cartas de amor. Fui rasgando essas coisas todas que já passaram, que de certa forma contribuíram pra eu estar aqui hoje, mas que não fazem mais nada agora do que ocupar os cantos das minhas gavetas. E eu preciso dos cantos das gavetas pra guardar essas lembranças pequenas: uma frase, um perfume, um acorde. A cena de um clipe. Rasguei tudo: agendas de quando eu tinha quatorze anos. Aquilo já não é mais eu, entende? Na minha agenda mais antiga, uma moradora: uma traça imensa de gorda! Bom, todo o drama que eu insistia em escrever naquelas páginas fizeram bem a alguém. A não ser a traça, mas nada de vivo por ali, nem nas fotografias, nem nos textos, nas ideias dos textos, na caneta grudada junta à agenda não havia mais tinta. As únicas partes que fiz questão de rasgar em miúdos foram os "dados pessoais" das agendas - com número de conta bancária, passaporte, endereço, tipo sanguineo - e as cartas de amor. Ah, e a Bíblia, que para alguns não deixa de ser também uma carta de amor. Cansei o dedo de rasgar. Recuperei muitos cantos em várias gavetas, muitos ângulos retos onde posso acomodar mais sussuros ditos à beira da praia, se houver. Vou ganhar um sofá novo. Pensando bem, acho que até da minha coleção de rolhas eu vou me desfazer, pois rolhas não afundam. Elas nunca afundam, ficam boiando, não morrem afogadas. É o símbolo de algo que resiste. Não sei se quero tanta resistência, às vezes vale mais a pena se deixar ir no fluxo, no movimento. Mas com essa história toda eu vou ter que comprar mais saco pra lixo porque usei o último, imagina [...]

Coisas à toa

[...] e daí a gente vai guardando um rancor aqui, sufocando uma palavra ali. E vai deixando tudo se amontoar, empilhando cenas ranzinzas. Acho que foi um pouco isso que senti quando eu li as revistas. Imagina, havia sete edições que eu sequer tirei do plástico, numa pilha bem na frente da porta de entrada do meu apartamento. Daí resolvi passar os olhos por elas, uma por uma em ordem cronológica. Não entendi muito bem porque eu comecei a ficar nervoso folheando as páginas, porque eu estava ansioso, desconfortável. Quando eu terminei, eu tinha lido não mais que três reportagens, uma dúzia de linhas ao acaso. Tinha visto dezenas de fotografias, todas muito bonitas. Mas o desconforto e a ansiedade eu só descobri depois. Acho que eu guardei essas revistas por muito tempo, e quando eu as tirei do plástico e as folheei pela primeira vez – imagina, tinha uma edição de agosto do ano passado que estava sendo manuseada pela primeira vez – eu fui me dando conta que eu estava amontoado por sobre um sofá todo sujo e velho. Eu fui me amontoando e me empilhando... e me separando, me dividindo. Uma coisa eu tenho que admitir: só me dei conta disto porque a TV a cabo estragou. Porque senão eu continuaria pulando de um canal pra outro sem precisar pensar na minha rabugice. Acho que minhas chances vão escasseando a cada dia, menos possibilidades por hora que passa. Mais e mais sozinho no próximo final de semana que no anterior; progressão geométrica. Mas é assim mesmo, uns que conheço se unem e se aliam, uns são chamados a servir e servem. Uns passeiam. Outros se dividem, se apartam, se separam. Divorciam-se daquele lugar de onde vieram, tornam-se outros no exílio. E nós vamos nos espalhando por aí. E também é verdade que sinto vontade de dizer, de escrever o que não pude lá no começo, naquela hora exata. O problema é que, como eu disse, as chances e as possibilidades vão diminuindo; progressão aritmética. Eu já me sinto bastante constrangido. Acho que lá pelas tantas de mim, eu não tenho mais muita esperança. Parece que simplesmente não dá: NÃO DÁ. A pouca disposição da minha parte faz uma perigosa combinação com a pouca oportunidade do lado de fora – ambas intimamente relacionadas, eu diria. E daí eu vou amontoando esse rancor um pouquinho em cada canto, empilhando mais rabugices pra pegar pó e pra atrapalhar a luz que entra, ou que devia entrar. Uns que conheço vão indo pra fora, extravasando, cada vez mais do avesso. Outros vão fechando. O problema todo é que sábado eu vou ter que acordar às oito da manhã... [...]

Cartas a uma jovem bicha - Por que odiar a chuva?

Tu me escreve dizendo “fez tempo ruim as férias inteiras” e termina a argumentação das razões do tempo ruim afirmando que “a chuva me obrigou a ficar trancado no apartamento, no máximo ir até um shopping”. “Não deu praia”, tu ainda comenta, “voltei com a pele tão branca quanto a que eu tinha quando saí”.

Eu não entendo bem como se consolidou essa nossa ideia – minha, tua, de todos nós – que ‘tempo ruim’ é sinônimo de chuva. Mas não vou dizer aqui que tempo ruim, pra mim, é tempo quente com sol bombando câncer de pele – na minha, na tua, na de todos nós – porque isso é óbvio, tu já devia saber. O que me irrita é outra coisa: é a culpa que tu põe na chuva por tu ter sido obrigado a te trancafiar a sós com tua interioridade. Não é isso que tu vive me dizendo que tem? Uma interioridade? (se ainda fossem várias, mas nem... aff!) Não é pra isso que tu pratica yoga, que tu te submete à terapia? “Pra trabalhar e fortalecer minha interioridade”, tu me diz, como se ela, a interioridade, fosse algo que já estava lá dentro desde sempre, toda dada de antemão, apenas enfraquecida por um pé na bunda domingueiro ou flácida por uma tentativa de conquista mal sucedida. “Equilibrar meu eu interior” é o mantra. Ou pior: “encontrar meu eu interior”. Pois certamente ele, o teu eu interior, saiu correndo quando te ouviu dizer que odeia gente gorda, descompensou-se quando tu sentiu vergonha em ser pobre.

Tudo bem, vá lá, tenha uma interioridade se é isso que tu tanto quer. Pra quais lados ela aponta? Ela pesa pra dentro, tensiona pro interior como uma dobra? Sim, mas somente com uma condição: esse teu eu interior vai tão mais dentro quanto puder se projetar e se visibilizar pra fora. Não é pra isso que tu pratica yoga? Pra deixar o corpo rijo, duro, saudável, com uma carne feliz e natural, super geração saúde. Trabalhar, fortalecer, equilibrar e encontrar a interioridade, sim, mas só e exclusivamente se ela puder ser jogada pra fora, projetada na pele. Agora começo a entender os motivos pelos quais tu não admite perder uma sessão de musculação, sob pena de terríveis ressacas morais, mas falta à sessão de terapia com uma displicência que não te incomoda tanto. A terapia não tem efeitos diretos, visíveis e comprováveis pelos sentidos tão irrefutavelmente quanto a prática do yoga e da musculação. “Correr é um jeito de fazer terapia, faço terapia comigo mesmo”, tu retruca. Concordo em parte justamente por entender tua lógica: correr é terapia pra quem acredita que a gordura é uma neurose, e só faz ‘terapia consigo mesmo’ quem acredita que lá dentro de si há um eu interior para o diálogo. Parabéns, a esquizofrenia agora tem uma utilidade.

Então ficou trancado no apartamento por causa da chuva. Junto com teu eu interior? Qual o problema, não entendo. Teu eu interior não está sarado o bastante? Ou está gordo – ahh, deve estar gordo. E já que tu detesta gente gorda, ele fugiu de ti. E vai ver é por isso que tu pratica yoga, pra encontrá-lo. Mas, na falta do instrutor, compreendo bem teu ímpeto de ir ao shopping. Talvez tua interioridade estivesse fazendo umas compras, gastando o limite de cartão de crédito de papai? Não. Porque tua interioridade talvez seja pobre – além de gorda. Segundo motivo pelo qual ela precisa ser fortalecida.

E tu ainda queria ir à praia. Queria, mesmo mesmo, desfilar de sunga? Não entendo o porquê. Pobre e gordo, teu eu interior voltaria de férias aos frangalhos, pois muito provavelmente encontraria os eus interiores dos outros – como tu – que não o perdoariam por ser pobre e gordo, só pra citar duas características que te incomodam. Debaixo do sol, mais nus do que o necessário, ou pelo menos mais nus do que no resto do ano, os eus interiores dos outros são mais cruéis. Quanto menos roupa, mais perversos. É muita interioridade pra pouco ‘dentro’, sabes.

Eu reescreveria isso que tu me mandaste. Diria que fez um tempo ótimo nas tuas férias, que a chuva foi linda e fértil. Que tu fez uma viagem dentro de si que te rendeu vários insights, fincando tua interioridade – com raízes, tronco grosso e copa frondosa – lá no fundo do teu ser. E me daria por muito satisfeito ao argumentar, simplesmente, que tu voltou com a pele mais branca do que quando saiu porque usou filtro solar fator 50, o que te deu uns 2 anos a mais sem rugas quando tu chegar lá pelos 35. Acredite: esse teu eu interior vai suplicar por mais 2 anos sem rugas quando tu – quando vocês dois, tu e teu eu interior – chegar lá.

Cartas a uma jovem bicha - Desobedeça

Escolhi um evento ao acaso do dia de hoje. Uma imagem que se fixou na minha memória e a partir dela voltei a percorrer os caminhos que me fizeram lembrar. Não me interessei tanto por essa genealogia quanto me fascinou a função da memória – daquilo que lembramos e daquilo que somos lembrados, o tempo todo, desde todos os aspectos – para que a gente possa dizer “eu sou eu” a qualquer momento que sejamos questionados nesse sentido.

Por que eu sou eu, ou como alguém se torna (e continua sendo) o que é são perguntas que grandes filósofos já se fizeram, inclusive já sugeriram respostas ou pelo menos indicaram bons indícios para pensarmos sobre elas. Não tenho a pretensão de tentar responder essas perguntas novamente, tampouco fico envaidecido de suscitá-las. O que me interessa nelas, o que me interessou na imagem que se fixou na minha memória, é que lembrar de nós ontem é um exercício tão fundamental para nós vivermos quanto respirar. Respirar nos mantêm vivos, mas lembrarmos de nós ontem nos mantêm vivos ainda enquanto aquilo que somos. Pois, ora, posso estar vivo mesmo não sendo mais quem eu era - doce delícia de quem pode esquecer de si mesmo.

O problema é que esquecemos, por angústia ou falta de atenção, muitas imagens, sons, sentimentos, cheios e sensações. Perdemos muita coisa, há memórias que vão ficando no caminho. E não é que há vezes em que somos – eu pelo menos sou – surpreendidos por essas memórias que ficaram lá atrás e que, não obstante, ainda dizem que nós somos quem somos hoje? E foi essa imagem que me tomou. Num assombro, num assalto, num arroubo de lucidez de algo que aconteceu há... quatorze anos. Senti muita vergonha desta minha lembrança, vergonha de ter feito, de ter dito. Eu peguei o telefone, liguei e disse um monte de bobagens, mas não liguei pra falar, liguei pra ser ouvido. Porque o que eu mais queria naquele momento era ser notado, ser visto. E fui, de fato, mas com um reticente desprezo. São esses três sentimentos que hoje ainda restam em mim, lá na minha camada mais sedimentada, me compondo de algum modo: a vergonha, o desprezo e a vaidade.

Corri vinte minutos na esteira hoje, ao cabo de uma hora e meia na academia. Por isso fui elogiado. Minha relação com o meu corpo – com este meu corpo, não com os outros mais que tive – é tal que condensa a vergonha, o desprezo e a vaidade. Talvez seja por este motivo que me interesse tanto em estudá-lo, em analisá-lo: quero sugerir pra mim mesmo saídas deste tríplice labirinto. Não é exatamente terapêutico o estudo que faço, não quero simplesmente analisar a mim mesmo, como numa relação narcisicamente insularizada. Como a vergonha, o desprezo e a vaidade se inseriram tão fortemente, cromadas, àquilo que sou? Como elas se acomodaram no meu corpo?

Pra escapar desse círculo, me proponho uma espiral. O centro do círculo ou o ponto de equilíbrio da espiral seria aquilo que nós somos, o que pensamos que somos, o que nos tornamos. Através do ato de escrever eu acho que me desobedeço, me desautorizo, me torno ilegal perante as leis que eu criei. Acabo me tornando um criminoso porque nessa desobediência espiralada de escrever, nesse exercício de ir lá pra minhas bordas, acabo pulando pra uma outra dimensão da trajetória que me fez chegar onde estou. É isso que é a espiral: não é fazer o mesmo caminho, nas exatas coordenadas de antes (isso é o círculo), mas é fazer e refazer o caminho em outra dimensão, num outro fluxo, desde referências outras, diferentes das de antes. Não apenas subindo ou descendo, mas subindo e descendo e pra direita e pra esquerda e pra frente e pra trás e em curva e em ziguezague. O pulo de uma dimensão para outra do círculo, constituindo, então, uma espiral, talvez possa acontecer exatamente quando nos vêm à memória essas lembranças que não são lembradas por muito tempo, que estrategicamente estão postas de lado, fora do caminho do círculo, que nos provocam vergonha (ou medo, ou exasperação, ou dúvida). Elas desobedecem e violam o caminho do círculo porque o redimensionam. Considerá-las pertinentes e aceitá-las (ou seja, refletir sobre sua vergonha, sobre seu desprezo, sobre sua vaidade no meu caso) é uma relação ética consigo porque podem – ou não – espiralar o angustiante círculo ensimesmado no qual frequentemente nos colocamos.

Cabelos

Meus cabelos de Bozo foram a melhor parte daquela noite. Nem a quebra do jejum de álcool foi tão maravilhosa quanto a horizontalidade dos pelos da minha cabeça. Eu dancei, suei, bebi, gargalhei, os fios ficaram úmidos e incharam pros lados. Cabelo de Bozo.

Eu achava que não fosse conseguir, mas eu consegui. Se há dez anos alguém me dissesse que eu estaria onde estou hoje, eu não acreditaria. Ou melhor, acreditaria sim, e ficaria orgulhoso de mim. Hoje, entretanto, não me orgulho tanto quanto eu supostamente me orgulharia há dez anos. E continuo não acreditando. Chego do trabalho sempre por volta das cinco e meia da tarde, dá tempo de ir ao supermercado pra comprar algo pra janta sem me deter no congestionamento de carrinhos e de cestinhas. Um horário civilizado. Chegando cedo do trabalho em casa, em tempos de horário de verão, dá até pra fazer um chimarrão e ir sentar na grama do parque pra pegar os últimos e menos quentes raios de sol. Dá pra voltar pra casa, jantar, estudar, ouvir música, e nos dias marcados na minha agenda eu consigo inclusive assistir aos meus seriados favoritos na TV. Isso porque eu tenho uma grade de canais bem completa, em que são exibidos muitos filmes de razoável qualidade. Se mesmo assim eu não ficar satisfeito, posso escolher algum filme entre os cinquenta e três DVD’s que eu comprei e posso tomar banho ouvindo Debussy ou Madonna. Hoje eu posso me deitar lá pelas onze da noite e ler um livro, de literatura ou filosofia, porque comprei vários livros ao longo dos anos. Mas a melhor parte disso é que além de poder comprá-los, eu posso também lê-los e entendê-los. Eu posso compreendê-los. E posso dormir numa cama king size com quatro travesseiros, acordar relativamente tarde na manhã seguinte e ir pra academia. Afinal, estou matriculado na academia que eu desejei frequentar por anos e anos, mas nunca tinha dinheiro pra isso. Minha vida é boa, mas apenas boa.

E tenho vários amigos, inúmeros, que se encaixam nas mais variadas programações. Posso agendar muitos e diferentes eventos com eles. Meus pais estão vivos. Eu moro sozinho, minha saúde vai bastante bem. E mesmo assim eu tenho cabelo de Bozo.

Não me orgulho, não acho que isso é o bastante. Pode ser ambição demais ou ingratidão com minha trajetória. Eu às vezes bloqueio o medo e consigo me movimentar melhor. Às vezes eu não consigo. Às vezes eu sequer respiro, nem me olho no espelho. Outras vezes passo horas procurando cravos na minha pele, machucando-a. Quase toda a noite eu acordo, ainda um pouco sonhando, e sinto que há alguém no meu quarto ali sentado na minha escrivaninha me observando. Sinto um certo pavor, puxo o lençol e me cubro. Nas noites de verão isso se traduz num verdadeiro inferno porque sinto muito calor, mas o pavor de haver alguém me observando enquanto durmo é maior. E puxo o lençol. Nas noites de inverno não sofro tanto. Mas nas noites de verão eu sinto medo de acordar e me saber observado. E puxo o lençol. Como se um lençol fosse me proteger de qualquer ameaça.

E quando acordo pela manhã, antes de ir à academia, tenho que molhar meu cabelo. Porque ele é muito ondulado, como se o torvelinho de ideias que guardo na minha cabeça fosse o responsável por encrespar meu mar capilar. Meu mar capilar revolto. Acho que meu cabelo de Bozo é assim porque tenho muitas ideias na cabeça. Talvez se eu tivesse cabelo liso eu desejaria ser mais criativo.