eu simplesmente não posso mais pagar pelo serviço. eu sinto muito, mas essa asserção é franca e direta. sim, é provável que se trate de uma forte recusa em narrar tudo que há de errado, de equivocado ou de sofrido. eu não me importo de me recusar a falar do meu sofrimento. eu me importo em falar do meu sofrimento sem ter condições de pagar para que alguém me ouça. e mesmo que eu não me importasse, não é de todo impossível que outros gatilhos (conversações mínimas, insights durante tomar banho ou ao dirigir na estrada) me permitam, com certo atraso, entender o que no mundo há de mim, e o que desejo do mundo e se desejo algo whatsoever. há uma revolta fundamental: gostaria de continuar falando dos meus equívocos. não para corrigi-los, não para passar a acertar; porque são o que há de mais meu, de mais sinceramente eu. minhas fendas, meus pedaços de história mal dobrados, meus tecidos amarrotados de memória. é claro: será um espaço a menos no qual eu tenho a chance de recontar os vários modos pelos quais cheguei até aqui hoje e assim. porque, no final dos contas, é só disto que se trata: testemunhar a própria vida, reconhecer-me como aquele que caminha (e não aquele que domina o caminho). não insista, por favor; um ser caminhante tem dificuldades com o divã. ainda sobre a recusa, sobre a resistência, penso que funciona como uma moratória: assumo, não nego, resolvo quando puder. talvez neste momento eu precise caminhar um pouco mais. não insista.
já fui mais aguerrido, é verdade. mais inconformado, mais revoltado e, por isso, mais ativo. por vários momentos, reativo; ainda assim, mais móvel e inquieto. hoje valso mais na reticência. não estou empacado, nem regredindo. estou sendo puxado pelo tempo presente, por ora no redemoinho do presente contínuo. é um estranho fluir sem pressa ao qual estou e sempre fui pouco afeito. em setembro, Porto Alegre ganha cores lindas com o florescer dos jacarandás e ipês. me sinto um pouco como a cor das flores dos jacarandás e dos ipês: um instante que não age para deslocar-se e que desliza num agora duradouro, caindo das árvores e reaparecendo em intervalos mais ou menos calculáveis. não sei se essa forma de existir é mais conforme aos trinta e seis anos que adquiri há pouco; afinal, são os jovens que buscam. eu parei de fazer projetos e de querer coisas do futuro - de ver coisas no futuro. tenho dificuldades em retomar o curso da vida ao projetar objetivos, estabelecer metas para alcançá-los ou, simplesmente, imaginar-me em outro país ou em outra cidade, com outra profissão. em outro corpo. eu não busco mais, nem sou buscado. desisti, em dois momentos, de mudar de vida, de cidade e de país. talvez minhas chances esgotaram, e nunca fui bom em ter chances - ou eu de fato aos aproveitei quando as tive. chances não são renováveis. chances não são créditos que uma ou várias boas ações compram ou fazem acontecer. as minhas chances foram flores de ipê ou de jacarandá que floresceram apenas uma vez, e eu as contemplei com a cabeça apoiada em uma das mãos, sorrindo, até que caíssem intocáveis no chão. é uma tranquilidade triste de um permanente por-de-sol de um domingo frio.
de dezesseis de setembro a quatro de julho, pouco menos de dez meses de pura afonia escrita. houve de tudo, do céu ao inferno, da direita à esquerda, do sono à vigília. marcas tristes no decorrer de uma vida um pouco estreita de mais, brilhante de menos. entretanto, se eu voltar a escrever depois de dez meses é provável que eu não tenha mudado tanto os temas sobre os quais penso e escrevo. pois faço curvas e curvas, subo e desço, às vezes eu paro, mas alguma impregnação - como uma imantação - me mantém estreito e opaco. depois de onze anos, não é anacrônico e, quem sabe, moralmente reprovável manter um weblog no qual a única narrativa é a minha própria sobre o mundo? é o mundo e as pessoas a partir de mim? é desde esse perspectivismo que tudo se desdobra? há outra narrativa possível? sou chato, mas um chato calado, diferentemente do homem sentado agora ao meu lado em um café, num dia frio, que não para de falar nos estados unidos (sobre "como lá o atendimento em bares é melhor", sobre "como o transporte lá é melhor", sobre "agora foi comprovado nos estados unidos que o ovo faz mal", sobre "eu vou voltar pros estados unidos, só estou esperando o momento certo"). seu tema é irritante e seu sotaque arrastado de portoalegrense descolado contribui para o cultivo de um desprezo por aquilo que fala e como fala. o fato de ele não ouvir, absolutamente, a mulher com quem ele divide a mesa, só reforça o que seu monotematismo grita: o mundo se desdobra a partir dele próprio, e a sua narrativa é a única que importa. não quero ser ele, e seu eu for, prefiro ficar meses em pura afonia.