foi em mim diagnosticada uma doença incurável. meu intestino produz gases assim que qualquer pedaço de comida, sobretudo as sólidas, entra no meu estômago. os movimentos peristálticos se põem em marcha e a superfície das microvilosidades reage com os sucos gástricos. posso atenuar os sintomas tomando algum remédio em gel ou evitando ingerir alguns alimentos. mas nada existe no mundo que possa curar essa reação do meu corpo. isso significa que eu solto gases permanentemente, ou pelo menos enquanto eu comer. se fizer greve de fome será pior, pois o jejum prolongado provoca aerofagia, o que incrementa aritmeticamente os gases. por conta disso não saio mais de casa. recuso convites para boteco e para jantas. recuso ir a festas, a baladas e a orgias. é inconcebível praticar sexo anal sem me imaginar ejetando-me como um ônibus espacial em direção à lua. vou me separando do mundo e me subtraindo das relações, por pura vergonha.
foi diagnosticada em mim outra doença incurável. as ramificações lombares dos meus nervos que saem da coluna podem eventualmente ser atacadas pelas próprias células de defesa do meu corpo. isso produz fortes dores no abdome transverso e quase sempre acaba numa reação dérmica, cujas marcas acompanham o entorno do meu tórax, como se fossem feridas abertas por sobre as linhas onde os feixes de nervos se espalham. no mais das vezes só sinto dores lancinantes quando a água do banho (quente demais ou fria demais) passa por sobre um desses feixes de nervos - e eu tomo banho duas vezes por dia. as marcas mais severas são provocadas quando me encontro sob muita pressão psíquica, seja pela ansiedade ou pela depressão. às vezes as crises deixam cicatrizes. é como se eu tivesse sido punido com cem chibatadas. vou me separando do mundo e me subtraindo das relações, por pura vergonha.
olho para meu corpo cada dia mais, com mais curiosidade. as costas, todos os cantos do rosto, até a parte de trás dos joelhos. por debaixo da pele corre um líquido borbulhante. em torno da minha pele há uma aura estranha de vento revolto, uivante. a pele engrossa nos pés e torna-se flácida embaixo dos olhos. meu rosto cada vez mais cheio de vincos. será mesmo que já está tudo perdido? será mesmo que já perdi todos os anos, e que de agora em diante haverá um permanente velório pela minha vida que ainda não morreu? estarei eu em luto? desde quando? por que ainda não abandonei o preto da dor da perda? será que não há mais por que estar no mundo deste jeito, nesta forma, com este corpo? devo me responsabilizar estoicamente pelas tristes escolhas que fiz? devo tentar mudar algo em mim para mudar algo no mundo? devo mesmo insistir na vida, na criação de alguma vida que valha a pena; devo deixar de ser egoísta e reconhecer a benevolência do mundo ao me conceder, ou ao permitir que eu conseguisse, uma casa, roupas, comida? devo querer mais? é de mais vida que preciso? devo me fazer menos perguntas? que eu ande mais sob o sol, sob o vento, que eu me exponha mais aos olhares? que eu trabalhe mais? que eu sorria mais tentando parecer integrado, bem-posicionado, satisfeito com o percurso que me fez chegar até aqui? não posso olhar para trás e assumir que errei? posso querer despir-me do meu corpo? posso recusar esta vida sem ser censurado, sem ser criminoso, sem ser louco? posso ser apenas triste? ou tenho que dar razões da minha tristeza? elas seriam suficientes? vou me separando do mundo e me subtraindo das relações, por pura vergonha.