temos um acordo: aceitamos a presença um do outro somente na medida em que nos tolerarmos. somente na medida em que nos calarmos. somente na medida em que permaneçamos imóveis, catatônitos. ou não temos acordo: uma coroa duradoura de espinhos sobre nossas cabeças ou recheando nossas bocas. cuspindo ameaças mútuas.
não temos acordo, e não porque quero espinhos, mas porque não há critério possível de concordarmos com isso que chamamos de amor. não estou convencido de que há amor entre duas pessoas que não se conhecem para saber, enfim, quem elas são. para saber, enfim, das suas memórias, compartilhá-las, preservá-las. desconhecemo-nos e, por isso, não há acordo.

não há verniz que se possa jogar por sobre amor quebrado, nem que seja para exibi-lo para as visitas no vestíbulo, de passagem.
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a experiência de desamparo devido a nossa distância desfaz qualquer esperança.
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enquanto ele tem medo da morte, eu ainda sigo com o medo infantil da imensidão da vida.
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sozinho no mundo, sem laço forte o suficiente que garanta guarida.
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faço muito esforço para estar junto das pessoas; elas, no entanto, não o fazem na mesma medida.
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há algo a se aprender com a recusa, ou esquecimento, das pessoas em se esforçarem para estar comigo.
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há algo a se aprender com o esforço que faço para ser reconhecido em meu esforço de estar com as pessoas.
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no final, terá sido vã a tentativa de colonizar cada hora do dia, todos os dias, com a promessa de paz?
o dia bonito e quente poderia terminar com uma/várias cervejas geladas! mesas na rua, olhares solícitos, vento, conversas do grupo de trás e ao lado entrecruzadas com as nossas. a confusão é agradável, estimulante. tudo pode acontecer num fim de dia belo e quente. é possível até mesmo estender a mão e tocar em corpos disponíveis. se isso não acontece, é hoje permitido imaginar essa cena, sonhar com ela: tocar em corpos, deslizar a mão sobre eles. ainda não conseguiram impedir que imaginemos as línguas roçando, o que já é um alívio. mas está chegando a hora de uma censura algorítmica cuja interdição nós receberemos sem compreender e, portanto, sem questionar (nenhuma censura é totalmente compreensível e nenhuma é inteiramente questionada). essa censura estará presente até na mesa do bar, até no final do dia bonito e quente, até na cerveja gelada. e as ruas já não serão mais que passagens; e os olhares já não serão mais que meros reconhecimentos faciais; o vento, uma brisa individual e costumizada, controlada por aplicativos; e as conversas serão "conversações em rede", comportadamente técnicas. apagar-se-ão a confusão e o caos, e o babelismo com o qual brindamos o final de dias quentes e bonitos será substituído por uma organizada alocação de corpos cujas interações obedecerão lógicas paralelas e diagonais, de ponto a ponto, criptografadas. sem mais toque, sem nenhuma disponibilidade dos corpos em serem tocados randômica e inesperadamente, acostumados de forma triste à frieza técnica da "conversação em rede", nem mais a imaginação das línguas roçando será viável. essa cena terá desaparecido das lembranças, memórias, tradições, mitos e lendas. por que imaginar algo que já não estará na borda daquilo que é possível acontecer? aí, então, a cerveja será substituída pelo relaxante muscular.
mudei todas as senhas - de email, de internet banking, da única rede social da qual participo, dos serviços profissionais online. escolhi um símbolo que, para mim, remete à transformação em corpo celeste de quem me deixou. todos, em bem da verdade, me deixaram; mas esse foi o primeiro. teria sido diferente se ele ainda estivesse aqui. eu não seria mais feliz, tampouco ele. eu apenas me satisfaço em me angustiar com pensamentos sobre o quão diferente seríamos. quero descrever precisamente isto: a satisfação da angústia em pensar ser diferente, em reconhecer que poderia ter sido de outra forma - que não é agora, que não será depois. mas que poderia ter sido. talvez a descrição mais perfeita seja precisamente verbal: poderia ter sido, o passado bifurcado, não realizado, daquilo que já aconteceu. o futuro de um passado abortado por escolhas de minha quase inteira responsabilidade. a descrição não pode se dar por adjetivos. não há palavras - ou há muitas, difusas, que só cobrem parte do imenso significado do que sinto - que possam caracterizar o esvaziamento provocado pelo fracasso em assumir as escolhas improdutivas que me separaram daquele que eu poderia ter sido. o poderia ter sido é angustiante e é de minha quase inteira responsabilidade o fato de não ser e de nunca vir a ser. esse lugar verbal do não ser, do poderia ter sido e do nunca vir a ser é morno como coisa média sem serventia, sem utilidade, objeto ordinário desprovido de franja alguma que permita e estimule a criatividade do mundo da vida. a tristeza derretida, lânguida, de quem escora a cabeça em paredes para não cair desmaiado de impotência no chão, de quem arrasta os dedos esticados como chicletes velhos grudados na sola do sapato porque não se mantém em pé. encosto-me em qualquer coisa que me pareça firme, nem que seja por alguns segundos, para não soçobrar. não cabe a pergunta "mas, agora, o que se é?". tal pergunta não cabe neste cadinho, nesta maloca, nesta grutinha escura e úmida do que eu sou agora. sou pequenino e esmagadinho, coisa diminuída e rebaixada pelas curvas tangentes às boas escolhas, nas quais me acomodei. de minha quase inteira responsabilidade. pressionado pela pressão atmosférica do mau encontro, puxado pela atração gravitacional da farsa escandalosa. por meio de quais demônios eu me conecto com o mundo? essa é uma pergunta que cabe na minha cela. a resposta sai fininha, espremida entre as paredes deste cubículo de vida que se fecham e comprimem meu corpo todo a ponto de macerar meus pulmões e extrair das minhas cordas vocais apenas sons felinos:
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