Assim, de repente, uma lucidez

[...]asa e tinha aquelas ligações. E pra mim ficou tão claro o abismo, o penhasco do qual me joguei. Queda livre. Voltei pra casa sozinho naquela noite, fiquei no bar levantando o copo de plástico cheio de cerveja. Não dancei, não circulei, não compactuei com aquilo. Eu estava incluído naquele espaço para ser dele excluído: para servir de exemplo daquilo que não poderia ser possível ali dentro. Exemplo daquilo que seria rechaçado ali dentro. Eu era um limite: meu corpo era uma fronteira. Um monstro. De mim ninguém poderia passar. Não! Claro que não! Não dói nem cheira mal. É só um lugar estreito, não dá pra se mexer muito. Tem que controlar a respiração pra não colocar muito ar pra dentro dos pulmões, senão quebro os ossos da costela. Nem posso piscar muito, senão meus cílios roçam nas paredes e caem. Não dói nem cheira mal: só tenho que ficar quiet[...]

Interstícios

[...]ei no quarto e senti um cheiro forte de cigarro. Pode ser da noite anterior? Não sei. Eu não fumei, mas os outros fumaram bastante. Eu só bebi bastante, como se isso fosse “apenas” algo, “tão-somente” beber. Beber já é muito. Fiquei pensando: voltei sozinho. Era de manhã cedo já. Dobrei a esquina e nem tinha mais luzes acesas na rua. Só aquela luz natural radiante do início do dia. Lembro de trechos da noite passada, pequenos e curtos trechos, pessoas aleatórias. É isso que quero? Lembrar de recortes das pessoas? Talvez sim, porque lembrar de tudo sempre, viver sóbrio, isso é muito chato. Ainda sinto o cigarro. E sinto também aquele peso de saber que a próxima semana é dura, cheia de trabalho, cheia de leões pra matar, e mato. Matar um leão já é muito, mas mato vários. Tem que escrever, pensar, falar, comandar, açoitar, dizer “sim”. Não sei se concordo com a Clarice quando ela escreve que “tudo no mundo começou com um ‘sim’”. Um “sim” bem dito também fecha portas – as minhas estão a sete chaves, eu vivo a dizer “sim”. Dia desses eu disse um “não” bem sonoro, e a partir dele todo um mundo novo se abriu. Encontrei teus olhos ontem andando pela rua. Acho que eles não me reconheceram. Concordo com a Clarice quando ela escreve que “desistir é uma grande responsabilidade” – e bebo, bebo muito. Já bebi menos, mas eu fumava. Desisti de fumar e ainda não desisti de beber – porque ficar sóbrio o tempo todo é muita responsabilidade. Meu ponto ótimo pro álcool é quando começo a esquecer. E esqueço. Esqueço porque desisto. Quanta responsabilidade, né? Ele só balançava a cabeça concordando com tudo, quanta superficialidade, ali ninguém se afoga, ele é muito raso. E foram nesses pequenos vacúolos, lagunas vazias, que desisti e quis recomeçar. Quanta responsabilidade essa, a de recomeçar. Éramos tão bonitos juntos. Mas fui muito além, lá onde o ar é rarefeito, e ele não pôde me acompanhar. E haverá alguém pra ir até lá comigo? Eu vou andando e não levo as pessoas pela mão junto comigo. Acontece de elas se perderem. Não, eu não me perco das pessoas, eu nunca as encontrei de verdade, com sinceridade, com vontade de estar com elas. Nunca quis estar com as pessoas, portanto eu nunca desisti delas. Vivo nadando nessas lagunas vazias, nesses interstícios vazios. Talvez seja por isso que bebo tanto: porque são lagunas demasiadamente vazias. E foi-se embora tudo que de novo havia em mim: mais uma ressaca, mais uma dor de cabeça, mais um domingo vestindo pantufas e moleton velho, Bach com suas suítes para cello, silêncios entre as cordas: minhas lagunas vazias. Tudo o que há de melhor em mim está escondido, submerso nas lagunas. Nas lagunas vazias e nas ilhas desertas. Longe dos grandes continentes. Era só jogar um beijo, escrever uma carta, dar um sorriso: me escorar na parede, ou na porta recém fechada, e ir escorregando até o chão, me deitar em posição fetal, pedir pra nascer de novo. Não há iceberg que consiga existir nas lagunas vazias. O horário da minha morte será 20:43 – sempre olho no relógio e vejo esses números. Se eu puder programar minha morte, planejá-la, desejá-la, eu queria que ela me chegasse às 20:43. A morte não é o total assujeitamento ao poder, mas sua mais radical resistência: uma desistência radical, um partir, um abrir ou fechar de portas, pequenas mortes com a cabeça escorada no teu peito e tu me dizendo “vai ficar tudo bem”. Eu poderia morrer ali mesmo, encostando na tua camiseta branca de ontem à noite. A palma da minha mão na tua barba cerrada, e eu te dizendo “isso vai ser ruim pra minha autoestima”. Só precisa de autoestima quem não tem uma. Se eu for dormir às 22:00, acordo amanhã às 06:00; se eu for dormir contigo, te prometo um sono tranquilo e sonhos de conforto. Não precisaremos acordar nunca mais. Eu queria um beijo, um teu e outro dele, e dos dois, tão grandes e tão altos, tão bonitos, e eu ali entre os dois um pouco envergonhado por ser o mais baixo e o mais magro, por ser o mais represado. Tão altos e tão bonitos. E se a gente fosse caminhando até ali, ó, onde tem uma curva e um escurinho, ali num canto da casa, será que ali vocês não me dariam um beijo onde ninguém mais vai ver, além de nós? Vocês esqueceram que quiseram me beijar? É um direito que vocês têm. Eu vou procurar cultivar e preservar pra sempre a proximidade da minha cabeça ao teu peito, a proximidade do meu antebraço ao dele. E os pelos se roçando, as barbas se eletrizando. Toda a vez que clico em “entrar” aparece a frase “não há mensagens novas”: não há nada de novo, nenhum corpo, nenhum beijo, nenhum peito onde eu escorar minha testa. Às vezes o toque me satisfaz mais que uma jura de amor ou um presente caro. Vem dormir comigo? Se eu te chamar tu vem? Talvez só nascendo de novo, né, talvez só morrendo com hora marcada e renascendo. Porque eu nunca vou ser assim. Talvez só ocupando esses espaços todos, preenchendo os interstícios vazios, afirmando e encarnando o corpo; talvez só dizendo “sim” a tudo aquilo que sou e que nego, que escondo, do qual me esquivo; talvez só assim pra eu chegar a um ponto próximo da altura de vocês. Talvez só odiando o corpo, torturando o corpo, mutilando o corpo. Ninguém visita, ninguém comenta, ninguém curte. Talvez só fumando, ou bebendo mais[...]

As razões porque sou mais feliz sem ti

[...]é sobre os porquês de eu ser tão mais feliz sem ti. Hoje eu estava no ônibus e vinha pensando nisso: sobre como eu sou tão mais feliz sem ti. Tu foi só o pó que eu espanei de cima de mim.

Não precisar discutir assuntos circulares que acabam retornando sempre para o mesmo ponto inicial, sem alterações de rota. Colocar sempre os mesmos questionamentos, e escutar de volta sempre os mesmos argumentos. Tudo vindo de ti é sempre a mesma coisa, tudo vem sempre da mesma forma. Tudo emana de um mesmo centro desequilibrado e instável, nervoso e ansioso, perturbado com as coisas do passado. Não ter que debater sobre as possíveis traições que tu vê em mim, mas que na verdade são as tuas próprias que tu cospe e cola em mim como sendo minhas por excelência. Não ter que me satisfazer com frases que encerram uma discussão com um ponto final que tem peso de bigorna, peso de verdade, e uma verdade que é tão tola quanto tu: “nós somos muito diferentes”.

Não ter que achar justificativas discrepantes para explicar o que não precisa ser explicado, mas que tu exige que seja unicamente porque tu é um poço de insegurança e infantilidade. Porque tudo e todos te ameaçam, inclusive eu e minha roupa, eu e meu perfume, eu e meus olhares, eu e meu rosto, eu e o tom da minha voz, eu e meu sorriso. É preciso justificar sempre a razão pela qual tu acha que eu estou bonito, e daí é preciso sempre esconder ou dissimular essa suposta beleza para que ela não chame a atenção dos outros. Pois, do contrário, sou eu que estou me oferecendo, e isso é insuportável pra ti. Minha simples existência já é uma ameaça para todo esse mundinho pobre no qual tu vives, e eu não vou me desculpar por ter chegado até aqui da maneira com que cheguei. E te lanço um desafio: vou muito mais além ao ponto de tu me perderes no horizonte magro da tua vida.

Não ter que achar engraçadas tuas piadas, simpáticos os teus amigos, amáveis os teus familiares. Porque eventualmente o são, mas também às vezes não. E porque toda a realidade na qual o teu corpo vem envelopado não é feia nem bela, nem pior nem melhor que a minha: é outra e de uma outridade tão radical que eu sequer entendo o que faz possível eu escrever isso tudo – como se eu pudesse entender a tua realidade, como se eu pudesse analisá-la para apontar aqui e ali e isto e aquilo como sendo as nossas discrepâncias. E não posso. Não tenho acesso à tua realidade, e pra mim a tua realidade não é nem material. A tua realidade não importa e não importa porque meus parâmetros para aferir algo como sendo “realidade” simplesmente não se encaixam nisso que tu chama de “teu mundo”. O “teu mundo”, isso que pra ti é a realidade concreta na qual tu vive, é pra mim o mesmo que um pé de alface, o mesmo que um avião cruzando o céu num dia aberto de sol, é uma nota musical ou o sentimento de desolação por passar cotidianamente pelo morador de rua que dorme ao relento. Isso que tu chamas de “teu mundo” não é mundo pra mim. É outra coisa.

Não ter de elogiar teu corpo repetidas vezes como fazemos com um bebê que recém aprende a falar, ou como fazemos com um cão que está sendo adestrado. Porque no teu caso não é uma pedagogia da recompensa, mas uma pedagogia da alienação voluntária. O teu corpo, assim como o meu, já está em processo de degradação – e vê-se pelas rugas, o tempo está sendo implacável contigo – e não há o que fazer contra isso. A tua obsessão em obstaculizar a passagem do tempo só te dá um aspecto mais anacrônico do que tu já tem. Cansei de dizer ao pé do teu ouvido, na cama, com a luz já apagada, que eu te achava lindo e que era feliz ao teu lado. Sim, eu menti. E menti porque queria que desse certo. A gente mente quando quer que algo dê certo, e eu não vou cometer mais esse mesmo erro. Só não menti quando eu disse que não era pra sempre, que eu não queria passar o resto da minha vida contigo. Porque o resto da minha vida é demais pra te dar. O resto da minha vida é só meu e é muito precioso, não quero dividi-lo com alguém que precisa de fraldas psicológicas diárias, de drágeas de elogios para poder se medicar contra o horror do tempo que toma conta da carne e que faz envelhecer.

Não ser obrigado a fazer fechar horários de agenda com as ligações ao meio-dia. Não ser obrigado a encontrar teu corpo toda a noite. Não ser obrigado a sorrir quando tu achar que eu devo sorrir. Não ser obrigado a conviver com pessoas que pra ti são importantes e que pra mim são apenas mais corpos no mundo que me roubam espaços, oxigênio, água e comida – veja, pra mim eles não são nem “alguém”, são apenas “corpos”. Não ser obrigado a beber de forma comedida, a falar como homem, nem a recusar viagens. Não ser obrigado a fazer escolhas em nome de um “nós” que se resume às tuas vontades e que jamais me contempla. Não ser obrigado a acreditar e a promover um “nós”. Não ser obrigado a abrir mão do “eu” - que por mais dócil e governado que seja, ainda sim é isso que sou e é a única "coisa" que vai ficar comigo até o fim morno da morte.

Pensar que não estou mais contigo e sentir um alívio feliz e reconfortante por não estar mais contigo: já vale a pena ter dito “chega”[...]

Frio e cruel

[...]edo, medo frio e cruel. Psss! Não posso falar alto, eles vão me escutar. Eu tô com medo, e é frio e cruel. Eu ouço estampidos surdos, assim, POC, de rolhas desprendendo de garrafas de champagne. Escuto a noite toda – será que eles brindam o meu medo? São frios e cruéis! Não, não chama ninguém! Não chama, e fala baixo: eles podem escutar. Mas não é isso que me dá mais medo: o que me assusta é o som do balanço, balanço de ferro de parque de diversões, indo e vindo indo e vindo indo e vindo. Sempre, como se tivesse alguém ali se balançando. É. E há gotas, em algum lugar aqui tem uma goteira, uma torneira que não tá bem fechada. Que pinga. PLIC, PLIC, PLIC. Não, todos se foram, todos já foram pegos, só sobrou eu aqui. Ninguém voltou. Fala baixo porque eles podem estar aí também. Eles são frios e cruéis, esses sonhos que tenho, esses meus mundos, meus personagens: frios e cruéis. Psss! Eles falam alto! Sorriem, e os olhos deles viram apenas riscos nos rostos quando sorriem. Eu tenho medo deles, acho que eles me trancaram aqui. Eles me dão medo, um medo frio e cruel. Como é que pode terem saído de mim? Escuta, escuta! É uma chave em alguma fechadura! São eles, eu sei que são, estão vindo pra me pegar! Não chama ninguém, não. Eu vou tentar me fingir de mor[...]