Diálogo com cães ferozes II

... não, pessoa feia! Tu pra mim não passa de um amontoado de carne com um belo par de olhos. E o que esse par de olhos claros vê? Nada muito além da autocomiseração aliada a um egocentrismo doente – é claro, achar-se o máximo sempre vem de mãos dadas ao achar-se uma merda. Prefiro ficar com a segunda opção. Ao contrário da maioria, que se seduz pelo sorriso fácil, pelos cabelos que balançam, enfim, pelo belo par de olhos, eu procuro enxergar e ouvir mais coisas a teu respeito. E há tantas, né? Uma pessoa que carrega muitas certezas sobre si mesmo só pode ser pesada e absoluta como tu. Alguém que crê demais nas suas próprias qualidades passa por cima dos próprios defeitos, inclusive acreditando que seus defeitos possam ser apenas deslizes momentâneos, mas nunca erros recorrentes. Tu consegues empregos confortáveis, ajudas gordas, afagos macios por quê? Porque és autêntico? Não. Consegues tudo isso porque te vendes, porque vendes teu belo par de olhos - e outros servicinhos sujos que não vou nomear aqui. E se um dia acordares com uma venda sobre esses olhinhos? E se um dia o botijão de gás explodir no teu rosto? E se um dia alguém rasgar tua boca com uma tesoura enferrujada? Tu és muito mais que o belo par de olhos: e tudo além disso é feio, muito feio. Pessoa feia!

Diálogo com cães ferozes

... não, queridinho! Meu corpo não é fantoche daqueles quem desejo, nem daqueles que me desejam. Meu corpo é só meu corpo, uma extensão de mim, uma coisa de mim, um algo qualquer de mim, mas não é eu. Eu sou outra coisa e outras coisas, eu não mereço – nem tu, queridinho, mas tu és velho pra dar-se por conta – ser escravizado por um, por dois ou por três que me desejam. E tu és um deles. Eu não vou me subsumir àquilo que tu desejas de mim, não vou me transformar naquilo – aquilo, aquela coisa, aquela máquina – que tu tanto quer provar. Tu não desejas aquele que sou, tu desejas aquilo que tu pensas que eu possa vir a me tornar. Vai te tratar! Eu não quero ser aquilo que tu queres que eu seja, eu quero ser exatamente aquele sou e aquele que eu me torno no instante seguinte, no dia seguinte, no ano seguinte! Eu me adoro um ano depois, dez anos depois, bem ao contrário de ti que fica mais e mais triste a cada minuto que passa. Triste e sozinho. Eu não sou uma pessoa sozinha, eu não sou único: sou tudo aquilo que os outros pensam que eu sou – até mesmo esse insatisfeito que tu pensas – e sou muito mais: sou o que penso que eu sou, sou o que eu quero ser já de antemão, sou o que eu não gostaria de ter sido, mas fui um dia. Não, queridinho! Não me sugue pro teu buraco negro porque lá só tem lugar pra ti!

Foi bom

Adorei ter estado lá pela enésima vez mesmo quando lá estive pela primeira vez.
Tem um saudosismo, uma lembrança querida, mas também tem uma mesa branca que baixa os espíritos que tu nunca mais quer ver! Tem uma delícia de pisar no mesmo chão, mas também uma repulsa por tudo aquilo que te fez beber o resto da cerveja nos copos abandonados!
Nada te abandona a esta altura: tu só colecionas ou preferes fingir que não viu, que não escutou...

No blógui com a Madonna - parte III

Cena III – A bicha-mirim junta 6 meses de mesada para conseguir comprar um compact disc. Em 1993, ter um cd player era a coisa mais ultra-mega-pós-moderna de que se tinha notícia. E o primeiro que ela compra é Erotica, nada mais nada menos que Erotica. Detalhe: em sua casa, ela ainda não tinha cd player. A bicha-mirim, persuasiva, consegue fazer com que seu pai prometa que dentro de no máximo quatro semanas tenha uma máquina dessas em casa... Mas nossa heróica bicha não sabia que tinha pela frente uma nota 4,6 em uma prova de matemática da quarta série primária. A professora manda que os pais assinem a prova, pra depois ser entregue novamente na escola. A assinatura nunca retornou. Quando descobre, o pai suspende a aquisição do aparelho. A bicha-mirim entra em colapso nervoso.

Com que prazer, meu deus, aquele cd chegou às minhas mãos. E com que ansiedade eu fiquei à espera do cd player para poder ouvir as músicas que estavam ali. Passando um dia pelo quiosque da Praça da República, vi uma revista ‘Showbizz’ edição especial Madonna no Brasil. Ali estavam fotografias do show de estréia em Londres, ainda em setembro de 1993, e todo o set list da apresentação. Dei-me por conta de que boa parte das músicas estava em Erotica, e que algumas músicas estavam também em Like a prayer. De True Blue, apenas La isla bonita. O desespero foi tal que em menos de 2 meses eu dei um jeito de conseguir todos – T-O-D-O-S – os álbuns anteriores a Erotica para poder compor, pra mim mesmo, o set list do show. Isso, é claro, me obrigou a fazer negociatas pouco honrosas com meu pai, e também vendas de gibis duvidosos para meus colegas de aula. Tudo era pretexto para juntar dinheiro e comprar os álbuns, em cd, que naquela época custavam muito caro (talvez não tão mais caro que hoje, mas enfim, pelo menos hoje temos a internet e a pirataria, salve salve!). E ainda havia outra batalha a ser travada: conseguir permissão dos meus pais para ir até o Rio de Janeiro, no dia 6 de novembro de 1993, no estádio do Maracanã, para vê-la ao vivo. Resultado: até o início de novembro daquele ano, todos os cd’s estavam em meu poder, e eu permanecia trancafiado no escaldante interior gaúcho. Obviamente não obtive permissão para ver Madonna, sob a legação – mais que justa – de que o Rio era uma cidade muito perigosa para uma criança de 10 anos, tendo em vista que recém havia acontecido o primeiro arrastão na praia de Copacabana. Alguns soluços e lágrimas desperdiçados nessa tentativa infrutífera não me impediram de transformar quaisquer arames, bolas de golfe e até mesmo cabides, nos icônicos microfones de cabeça, que saíam da parte superior das orelhas e se insularizavam até alcançar a boca da cantora. Sim: já que eu não poderia vê-la, eu passei a imitá-la, a fazer meu próprio Girlie Show doméstico, exercitando coreografias imaginárias que eu pensava estarem de acordo com os acordes das músicas que eu ouvia, mas sem saber se eram, de fato, as que Madonna desempenhava no palco. Era um exercício de imaginação: ouvir Express Yourself e dali extrair um movimento corporal, uma contração muscular, um passo que coordenasse braços com pernas como se eu estivesse num palco. A mais difícil, a mais custosa, a mais árida música era Justify my Love. Totalmente subjetivado por aquilo que a revista Veja chamava de “o furacão Madonna”, se eu não poderia vê-la ao vivo eu criava sua imagem em movimento em mim mesmo, no meu próprio corpo, na minha sala. Nenhum hermafroditismo: apenas imaginação e heterotopia nas experimentações de mim.

No blógui com a Madonna - parte II

Cena 2 – Estou no ‘recreio’ da aula de quarta série primária de um colégio evangélico do interior do estado do Rio Grande do Sul, Brasil. Comento com uma amiga: “Tu viu que a Madonna vem pro Brasil no fim do ano?”. Ela responde, “Sim!! Minha mãe tem um disco dela!”. Eu comento venenosamente: “Sério? Eu não tenho dinheiro pra comprar um...” e faço uma cara de ‘estou desolado com minha condição’. Minha amiga me responde: “Ah, eu te empresto! Ninguém escuta lá em casa”. Sai a bicha-mirim saltitante pelo pátio do colégio.

Depois de ter passado pela Xuxa e por alguns long play de histórias infantis, o álbum Like a prayer foi o primeiro que tive em minhas mãos de uma artista internacional. Antes dele, apenas compilações de trilha sonora internacionais de novelas brasileiras, cujo pretexto para fazer meus pais comprá-las era porque eu precisava ‘treinar a prática da língua inglesa’, não nesses termos, of course, mas caía como uma luva para meus propósitos. Antes de Like a prayer eu só havia tido contato com ‘O canto da cidade’, de Daniela Mercury. Muito axé pra bicha-mirim. Decidi enveredar para as produções da terra do tio Sam, sempre lembrando com pueril satisfação do videoclipe que eu tinha assistido em 1986, de True Blue.
Like a Prayer foi um Fiat Lux na minha vida. Coitado de mim, com 9 anos de idade, preso a um corpo que não era nem de homem, sequer de mulher, eu escutava aquelas palavras – e não as entendia, é claro – envoltas em melodias tão sedutoras, dançantes, mas dançantes de um jeito diferente do axé de Daniela, dançantes de um modo provocativo, desafiador, e por isso mesmo: múltiplo. Na mesma medida que os jornais – ah, desculpe, no Brasil ainda não havia internet naquela época – publicavam cada vez mais notícias sobre a vinda da Madonna ao Brasil, mais o disco tocava no três-em-um lá de casa. Era luxo total.
O próprio nome “Madonna” começou a fazer sentido, começou a ser algo forte o suficiente para que eu o identificasse num texto jornalístico sem que eu precisasse lê-lo. O ‘m’ maiúsculo e os ‘n’ duplicados saltavam aos meus olhos que, já treinados, aprendiam a caçar por qualquer referência àquela mulher que vinha trazer a diferença, o modo diverso de agir e de pensar, modo diverso e controverso de fazer música, vinha trazer cruzes pegando fogo, um cristo negro em quem ela dava um beijo. Essa era a Madonna que eu caçava nos textos e que eu caçava nos sons do long play, alguém que era capaz de me fazer ruborizar.
Era inverno de 1993, e eu tremia ao ver na TV: “Antártica, uma paixão nacional, traz Madonna, uma paixão mundial”. Lembram?

No blógui com a Madonna - parte I

Cena 1 – Manhã de quase-verão no escaldante interior gaúcho, Brasil. É 1986. A então apresentadora da extinta Rede Manchete de televisão, Angélica, tem em sua mão uma fita VHS e diz: “Galerinha, estou aqui com uma música super legal, que vocês vão amar, toda colorida! É a nova música da Madonna! Sentem no sofá e fiquem pra assistir! Roda VT! (ela pega o VHS e “insere” num videocassete imaginário, dando a impressão para os telespectadores de que a fita vai rodar)”. Começo a assistir ao primeiro videoclipe da minha vida, da canção True Blue. Ao término da música, me tranco no closet dos meus pais, visto um belo scarpin branco, ato um lenço de mamãe em volta do pescoço e passo a imitar freneticamente a cantora estadunidense. Sem ainda ter completado quatro anos de idade, me entrego ao bate-cabelo ao melhor estilo anos 80.

Como, então, alguém que ouve e assiste a Madonna há 22 anos pode não ir a nenhum dos cinco shows que ela fará no Brasil depois de 15 anos de promessas falsas? É o que vou tentar explicar aqui.

They tried to make go to see Madonna, and I Said: NO, NO, NO!!

Mais e mais a cada dia

Ainda sigo tentando cooptar os homens que por mim passam na rua:
Quando percebo que eles vêm, fixo meus olhos por toda sua superfície. Sou alguém bastante visual, me espalho pelos seus olhos-nariz-boca, puxo seus cabelos, mordo suas mãos e roço de leve minha barba pelas suas pernas. Absorvo toda sua raiva ou seu deleite, todo seu desprezo ou sua ingenuidade de saberem ser observados, e os converto em delícias a serem relembradas logo em seguida.
Quando nossas camisetas se cruzam, aproveito todos os milésimos de segundo do seu toque e da insinuação de uma sobre a outra. Guardo as faíscas da fricção para serem usadas comigo mesmo logo em seguida.
E quando finalmente eles passam, fecho os olhos - deixo de ser alguém bastante visual - e procuro sentir seu cheiro, procuro me enroscar nele, saber de que parte do corpo ele vem, mastigo o cheiro e o engulo inteiro. Há vezes em que não são tão bons, há outras em que não duram tanto, mas o sabor de cada um que por mim passa eu jamais deixo de provar... Em nenhuma circunstância.
Hoje pela manhã, enquanto eu escovava os dentes, fiquei feliz quando percebi que ainda me dou ao direito de me iludir. Ainda encaro algumas situações com esperança, e a partir delas fico na expectativa de outras que poderiam se desdobrar.
É bonito isso; iludir-se e esperar, com ansiedade de criança, qualquer coisa que jamais viria.