eu não sei se está chovendo lá fora. gostaria de dormir com chuva, com o som dos pingos na janela, nos carros e nas árvores. sinto um aconchego tremendo ao saber da água no lado de fora. dou-me conta de que essa sensação de aconchego é inseparável da segurança e proteção que sempre gozei. sempre tive casa, sempre tive quarto, sempre tive cobertores. sempre tive uma pele sedosa, que só agora começa a enrugar. cogito me levantar e ir até a sacada para verificar se chove mesmo. quero a comprovação. mas do que me servirá a comprovação - de que chove ou de que não chove? decido não ir até a sacada. escolho acreditar que está chovendo. se eu eventualmente verificasse que não está chovendo, eu teria de lidar com a frustração. é um pouco este o exercício geral: desistir da verificação, escolher acreditar no que aconchega e evitar a frustração. já tenho rugas demais para ter que aceitar que não chove, e que não posso fazer chover.
a descida espiralada da negação e as rugas ríspidas da rua; o que deixei hoje no assento, caindo do sacolejo do ônibus; por onde andei, me pergunto, como cheguei aqui; por quanto tempo houve a esperança de que tivesse sido diferente, a esperança de que ainda será; por onde deixei tudo que aqui agora me falta, que nunca foi meu e que sempre julguei de minha propriedade; como não percebi que era aqui afinal, o fim, a última etapa, o degrau por todos considerado o mais alto - que é para mim apenas o primeiro; e eu já cansado da escada; sinto pena profunda de mim; em qual escolha decidi torto, decidi enviesado; em qual espelho eu olho, em qual espelho curvado; não haveria será nenhuma chance de vida outra; não quis a sorte de nada perguntar e de apenas viver; eu, macabeia que se crê pensante, que não se salvará da ironia do asfalto; no asfalto acabará a descida espiralada: nas rugas ríspidas da rua.
Desde ontem experimentamos o feriado. Nas beiradas do sábado com o domingo, diminui a culpa de levantar da cama às 14 horas.
Mas eu estaria mais tranquilo com chegada de mais uma semana, a tal semana, se eu pudesse contar com um apoio que não viesse estritamente de dentro. Hoje escutei minha própria voz somente às 16 horas, quando eu lavava uma panela. Estranhei. Não costumo ficar tanto tempo calado na minha própria presença. Tenho ficado, contudo. Um apoio que não viesse de mim mesmo, que não se sustentasse por esse solo flácido que sou eu. Há algo que me cala na vida, na coisa toda viva. Não me considero à altura do empreendimento de viver. Todas as semanas são cruéis.
Se saio da cama às 9 horas, todo o meu dia se confunde. Os ponteiros do relógio se dobram, os números se esvaziam. Tamanha é a necessidade de produção, rastejo até a meia-noite. Horas produtivas é o que eu mais custo a ter.
Fico em silêncio, às vezes, na sala. Com as janelas abertas, geralmente à noite. Só escuto o som da geladeira. Fico em silêncio e deixo tudo me invadir: a geladeira, o vento, o céu, o calor e o frio. Quando estou fortalecido, permaneço em pé na sacada apenas deixando o tempo passar em mim. O tempo é tudo. É uma grandeza que se apropria de nós, à revelia.
As pontas dos meus dedos, onde mais tocarão?