Google No-Maps

Não vou te dar meu CEP. Meu corpo não precisa de um CEP. Eu só quero poder caminhar nas ruas sem ter esses números ou esses títulos: 27 anos, doutor em Educação, 21 centímetros de pau, 89 centímetros de cintura, quinhentos reais negativo no banco, três estantes de livros, olhares de deboche e um mestrado. Adianta? Nada. Só traz mais cobrança.

Não me identifique, não saiba onde eu moro. Não saiba quem eu sou, não procure meu rosto, não seja feio e me critique (não os dois ao mesmo tempo). Não duvide de mim. Não me desacredite. Eu posso querer rasgar teus tímpanos e tuas bochechas com o fio do vidro da taça de champagne. Sou cruel. Diga o que eu quero, ou a morte te espera...

Não me identifique, não diga quem eu sou. Não me acuse, não use meu nome em vocativos. Não fale de mim, não me cite: assino como “olhos castanhos”, ou “barbudo”. Assino esse texto como “magricelo”, ou “barriga-de-vermes”. Assino como “triste”. Deu pra me pegar no close? Ai, obrigado, eu fico melhor pelo lado direito mesmo! O nariz ficou grande e o botox vazou pela bochecha esquerda. As câmeras agradecem. Mas eu sou feliz, eu adoro o que tu diz de mim, acho que te amo.

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filmes pornôs não são recicláveis.


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Ou tu já refez um a partir daqueles mesmos gemidos?

Espinhas

Não suspeitava, mas tinha uma espinha por debaixo da minha pele, bem no nariz. Eu a pressenti hoje quando alguém lavava meu cabelo pra depois cortá-lo. Esperei o momento adequado pra apertá-la, para fazê-la espirrar. Acho sua purulência purificadora.
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Eu fui me insinuar madrugada dessas por uns matos aqui perto de casa. Assim, na calada da noite. Eu e os corpos. Ou o meu corpo e os outros corpos, pois não sei se as pessoas levam seus eus junto com elas quando se insinuam por aqueles matos. Naquela madrugada eu levei meu eu pra dar uma volta lá pelos matos. Aproveitei que o dia já nascia e fiquei sentado por ali mesmo, vendo mais uma data se inaugurar. Quantas doses de silêncio ainda estão por vir entre aquele sol que se levantou atrás de mim e todos os outros eus, ou todos os outros corpos que estão na minha frente?
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Essas palavras pobres e esvaziadas que ainda nos fazem crer “lá longe tem o coração de mais alguém” são iscas que colocam na nossa frente, para que nós corramos atrás delas sem nunca alcançá-las. Fantoches. Qual a mentira que vale a pena ser dita, e qual a mentira na qual vale a pena acreditar? Caminhar pela rua e ir arrecadando olhos, bocas, mãos, barbas, pernas, cotovelos e tornozelos dos homens que por mim passeiam pra deitar a cabeça no travesseio, à noite, e construir um Frankenstein daquele que desejo é construir uma mentira. Ela vale a pena, me mantém vivo? Convencer os colegas de que palavras não são apenas sons, mas que são rochas bem concretas que ora usamos para construir pontes e ora usamos para arremessar uns contra os outros, e para este convencimento ter de usar elas mesmas, as palavras, seja para desconstruí-las ou para reforçá-las, isso me parece um jogo que é em seu próprio funcionamento esquizofrênico. Há muito ainda que precisa ser dito, muito ainda sobre o que escrever: mas não mais sobre os mesmos sentimentos, nem sobre as mesmas pessoas.
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Não quero a minha vida transformada num filme pornô onde os corpos, os orifícios, as posições, as frases, os olhares e as secreções são repetidos à exaustão claustrofóbica. Não quero sempre o mesmo franguinho assado, o mesmo “oh, yeah, fuck me”, a mesma ordem beijo-oral-anal-porra. Não quero vida convertida em filme pornô.