Aniversários

No primeiro ano de namoro, comemoramos todos os meses. Meses como se fossem anos. Cada noite de cama compartilhada, cada dia amanhecido, cada reinado da escova de dentes de um na casa do outro, cada briga, cada gozo têm um aspecto de elefante. No primeiro ano de namoro, cada reconciliação é um novo começo e não um remendo mal feito numa roupa já puída pelo tempo, absolutamente demodê. Cada pedido de desculpas tem a mesma função de uma nova roupa estendida no varal: limpa, cheirosa, quase pronta e esperando para ser usada. No primeiro ano de namoro, o corpo de um jamais será uma formiga para o outro: é uma serpente, uma jiboia que enrosca, que sufoca, que aperta – mas não mata. Cada almoço ou café da tarde precisa ser detalhado, cada telefonema não pode ser suspeito. Não pode haver comunicação anônima, comunicação oculta, códigos e simbolismos. Tudo precisa ter uma vontade de transparência, ou ilusão de sinceridade, porque a proporção de uma semana, de um dia e de uma hora é de uma baleia para um verme. E a primeira noite separados, e o primeiro dia de mau humor, e a primeira agressão e a primeira lágrima, tudo pesa mais que rinocerontes. A metade de um ano nunca é só a metade; é sempre mais, sempre mais importante, mais densa, sempre significa mais que as próximas metades dos próximos anos. Os próximos seis meses talvez serão, aí sim, seis meses. Mas não os primeiros seis meses. Os primeiros seis meses são tigres albinos. No dia de aniversário do nosso namoro, são dois burros que assopram velinhas?

Escatologias indizíveis

Sentei no vaso sanitário e senti uma satisfação irrefutável. Entrei no elevador e precisei soltar um: alegria desconcertante. Feitas de pequenos prazeres, as escatologias indizíveis dessa minha vida de doente incurável se rebuscou com momentos de silêncio constrangedor em torno dos fluidos, gases, secreções e excrementos que meu corpo processava. Havia horas de vergonha profunda, quando eu ainda andava, quando eu ainda falava, e as outras pessoas ainda poderiam objetar que era falta de educação, insensibilidade e indelicadeza arrotar no restaurante depois do primeiro copo de cevada. Mas depois que me foi negada a possibilidade de usar meu corpo como todos os demais usam (para andar elegantemente, para sorrir de um modo polido, para cumprimentar, beijar e dançar), decidi, então, usá-lo como todos os demais jamais gostariam de fazer. Por experimentar umas outras experiências corpóreas. Comecei soltando gases, freneticamente um em seguida do outro, debaixo dos lençois e dos cobertores. Ninguém percebia até que algum movimento dos tecidos deixasse escapar alguns centímetros cúbicos do ar pesado que por baixo me esquentava – de fato, essa estratégia me foi útil nos dias de inverno rigoroso. A defecação também foi bastante proveitosa: a pressão do bolo fecal na última porção do intestino misturava uma certa ansiedade com a alegria do descarrego, da liberação. Sentir as fezes ultrapassando o corpo, tensionando o corpo, sentir o corpo expulsando as fezes é mais do que o último movimento da digestão. É um exercício de desapego, já que passei a não mais me preocupar com o cheiro, nem com os vestígios que isso deixa. O vômito também foi bem-vindo, mas exigiu maior maturidade, pois é exatamente o inverso da defecação. Precisei entender que às vezes é fazendo o caminho inverso que posso me sentir mais leve. Assim foi com o suor e com o hálito. Também com a urina. E não me preocupei com limpeza, pois pra mim tornou-se importante apenas a limpeza do meu corpo a contar da pele para dentro, e não da pele para fora. Da pele para fora, a limpeza do meu corpo só interessa a quem comigo está. Da pele para dentro, ela só interessa a mim mesmo. Resolvi deixar de atentar para o que os outros diziam sobre meu corpo. Da pele para dentro, meu corpo estava leve, mesmo tendo sido privado dos gracejos mais comuns e dos galanteios mais sedutores. Gracejos e galanteios são da pele para fora, e da pele para fora não há limpeza possível de apagar as marcas dos nossas escatologias.

Assassinos que há em mim

Tem por aí um cheiro forte de tarde que termina, um cheiro de cansaço do fim do dia, de gozo esquecido desde a manhã entre os lençois. Não chega a ser nauseante, nem é delicioso. É mais um dia já do segundo semestre de um ano ímpar que faz o sol se por.

E não haveria de ser? Pela manhã me satisfiz em arquitetar pequenas vinganças, mil vinganças pululantes para meu futuro próximo: um olhar de desprezo, um riso irônico, umas palavras cortantes (It’s word, its sword), dezenas de facas lançadas em velocidade cortante sem alvo algum. Fazem, todas essas, parte da minha bagagem – e da minha munição – para dar mais um passo além sem ter que baixar a guarda para nada.

À tarde me ocupei dos socos, dos tapas e dos pontapés que desejo dar, das grandes violências e dos assassinatos por estrangulamento que sonho em cometer – justamente por estrangulamento, de modo que minha vítima não fale, não sussurre, não seja capaz de pronunciar palavra sequer; ou seja, morte pelo silêncio. Entretive minha mente no planejamento dos espancamentos que anseio: pegar pelos cabelos e bater com força sua testa contra o marco da porta, reincidir uma cadeira em suas costelas, jogar pela escada e ver suas pernas e seus braços darem nós enquanto rola degraus abaixo. Jamais torturaria, pois gosto de agressões explosivas e agudas, nunca seria capaz de sofrimentos crônicos e requintados.

À noite, depois que o cheiro do fim se desprenda e depois que as pessoas esquecerem que lá se foi mais uma quarta-feira, acho que vou investir nas decepções e nas mágoas. Nos dramas que farei quando eu for trocado por um corpo mais rijo e mais enxuto, nos textos teatrais que vão misturar culpa e rancor, que vão se perguntar “por que eu não sou melhor?” – e cuja resposta será sempre um vácuo anônimo. Depois de assassinar, violentar e me vingar, vou lamentar tudo isso. Pra poder recomeçar do zero na manhã seguinte.