Ouvi fogos ao fundo. Me perguntei quem comemorava o quê. E há? O cheiro da comida ficou na minha roupa e circula, ainda, graças ao ar-condicionado. É uma coisa que fica impregnada na roupa e na pele. E dá vontade de comer, sabe? Um prato imenso, quase sem fim. Falei hoje sobre isso: um prato de comida sem fim; uma carteira de cigarros em que há sempre cigarros; uma taça ou uma garrafa sem fundo; um beque de maconha com uma seda eterna; uma carreira de cocaína que circunda a Via Láctea. Porque desconheço a finitute daquilo que dá prazer. A gente, por exemplo: nós. Nós que procuramos a vida, a vida acima de tudo. Uma coisa qualquer pra nos sentirmos vivos. O corpo é um pouco essa linha, essa coisa que pode matar e ser matada. Ou tudo. Uma cerveja eterna demanda uma ressaca eterna? Quem de nós vive na cerveja eterna ou na ressaca eterna? Temos um pouco de tudo. Mas um pouco pra nós é pouco. Queira fogos ao fundo. A ponta do cigarro que nunca se apaga. A chama, o som do estouro que nunca se desfaz. É uma vontade de durar, um duramento, uma conservação: um prolongamento de tudo que pede mais vida. Manter-se sempre na mais alta estima, na mais alta qualidade, no mais alto apreço: sempre tem o fundo da garrafa. E descemos, na baixa luz do ser. O que há de bom nos corpos, nas coisas das pessoas, nas barbas, nas calças apertadas? O que há de bom, enfim, e há. Assumir o fim, e assumir a ressaca, assumir que não há sempre tudo de bom. Assumir que o pouco é pouco. Eu fiz minha incursão diária na vida, e houve vida. Fiquei nu na janela do hotel fazendo poses para os pedreiros do prédio em obras, em frente: palhaça. O vidro da janela tinha um revestimento espelhado. Os pedreiros viam a si próprios e adoravam. Quem comemora com fogos? É quem se alinha ao fino fio da coisa que pode ser boa. Que pode bem ser má, tem todo o potencial pra ser má (a barba ruiva, a camisa xadrez, o rosto belo), mas que é boa. Eu, eu mesmo, eu duvido ser bom. Mas caminho na linha. Não solto fogos, mas regozijo. Adoro essa palavra, "rogozijo". Lembro das aulas de catequese: "regozijai e cantai louvor!" Cantemos louvor, pois, a quem e a quê? Eu não tenho lugar num mundo no qual regozijamos por um fim. Se o fim é a certeza, eu quero a incerteza: um prato de comida sem fim; uma carteira de cigarros em que há sempre cigarros; uma taça ou uma garrafa sem fundo; um beque de maconha com uma seda eterna; uma carreira de cocaína que circunda a Via Láctea. Aguentamos porque sabemos que haverá um fim? Porque sabemos que a vida terá um fim: e o corpo. Aguantamos! E aguantamos por isto: ficamos nus na janela sem saber que o vidro é espelhado. Porque fazemos pose sem saber que não somos olhados. É crer-se eterno, nu na janela onde ninguém te vê. Penso nas meninas e nos meninos, nas mensagens, nas lembranças de mim e para mim, nas coisas que fiz ingenuamente sem crer nas consequências (de novo, achando que tudo tem um fim). E tudo tem fim. Mais fogos, estouram e encantam. É carnaval, e eu ainda nem sei em que bloco, em qual escola. Cantarei louvor ao fim do carnaval e de todas as coisas.
Dormi contigo noite passada. E pouco dormi: acordei de hora em hora acreditando o dia. Virei umas quantas vezes pra puxar o cobertor até tua nuca, pra cobrir tuas cosas, já que tu dorme de bruços e o vento do ar-condicionado te gelava a pele. Dormi contigo e dormi pouco, dormi cuidando. A cama era grande, mas não nos perdemos um do outro. Tu dormiu rápido, com a cabeça encostada no meu ombro, enquanto eu assistia TV. Resmungou um pouco quando eu te acomodei nos travesseiros e te abracei de lado no momento em que pensei que eu iria conseguir dormir. Teu calor me deixou insone. Tu não roncou; apenas fez um barulho, um zunido, um ronrono de respiração calma e profunda de quem está descansando. Tu te espalhando na cama. E mais pro meio da noite, numa das vezes que eu acordei para te zelar, tu enroscou teus pés nos meus, um pouco sem querer e muito querendo: eu sorri. Quando eu finalmente peguei no sono, durou pouco: pelas cinco horas da manhã eu acordei. Te vi de barriga pra cima, pernas esticadas, uma mão por sobre o peito e rosto voltado pra mim. Tu dormindo. Só vi tuas feições graças à penumbra do amanhecer que brilhava nos cantos da cortina. Não consegui mais voltar a dormir. Tu me encantando, e eu acreditando, acreditando, acreditando: dormi contigo noite passada.
Acontecer pra dentro, se eu pudesse. Costear, margear a pele pelo lado de dentro, acontecendo-me na beirada da pele. Explodir, vez que outra, em buracos da pele, rasgando-me no meu acontecimento - só no meu acontecimento. Curvar a pele em gota, pro lado de dentro, num acontecimento explosivo. Costurar rasgos da pele e dar pontos pelo lado de dentro. Erodir a pele onde um rio poderá passar e desfazer a margem epitelial, a costa de um continente dérmico. Densificar, espessar a pele onde ela tem de mais frágil: acontecer uma carapaça nos buracos por meio dos quais o dentro vaza e pinga. Acariciar ao acontecer, afagar um acontecimento que traga viço à pele, pele sedosa, pele sem vincos. Não parar jamais de lamber a pele pelo lado de dentro, hidratando-a. Pentear a pele para desfazer-se dela: novas peles acontecendo em camadas que crescem em ondas e que se dissolvem na beirada, diluindo a bomba do acontecido em um som quase infinito de explosão. Acontecer vulcões em mim: queimar a pele com a lava do dentro. Sem jamais prestar a atenção na cor da tez, amar a pele. Sem jamais deixar-me enganar pelo desenho da tez, aguardar por outras peles. Viver sempre em dúvida sobre a pele. Acontecendo-me nesta pele, num brilho que a atravessa; nenhuma ferida é necessária para cura. Impedir que a pele se torne translúcida: é função da pele delimitar o acontecimento para mim e em mim. Uma pele invisível destrói a paixão de descobri-la, de afastá-la, de desvelá-la. Eu quero abraçar-me e ter-me por dentro, quero tocar nessa linha, nesse tecido, nessa membrana do meu acontecimento. Estilhaçar o fino cristal da minha redoma e sufocar com a rarefação do fora: matar a pele.
Hoje eu calcei teus sapatos e andei por quilômetros, sem meias.
Soube de todos os teus segredos e das perguntas que tu nunca quis fazer.
Apertaram-me os sapatos, e bolhas doeram nas laterais dos dedos.
Andaria novamente amanhã seu eu pudesse. E posso.
Calcei teus sapatos para andar, para ir até lá, para percursionar, para incursionar nos teus pés.
As bolhas doem, mas não não meus pés.
Meus pés já fazem parte dos teus sapatos.
Tua calçada é outra, contudo.
Contemplo meus pés machucados pelos teus sapatos.
Agora não temos mais como mentir. E não mentimos.
São apenas sapatos e pés, e bolhas, e dores. Diferentes calçadas.
Nossos dedos e nossos calcanhares andaram pelo mundo na mesma sola.
Não há segredo maior do que aquele dos pés doloridos.
A intimidade dos cadarços, das palmilhas; intimidade andarilha.
Eu sei onde aperta teu sapato. E aperta.
Descalcei teus sapatos e os abracei.
Doem as bolhas dos meus pés, mas eu sei das tuas perguntas não feitas.
Quanto tu calça? Tu calça o tamanho dos meus pés sem bolhas.
Hoje foi dia de saudade.

Eu não retornarei, jamais; tampouco pedirei abrigo. Não morrerei assim, bem como todos gostariam. Não voltarei, não pedirei perdão. Não serei eu a dizer que esqueci, que vacilei. Meu erro teria sido de não ter feito doer mais, muito mais, mas nem sempre a dor tem uma só medida. E nunca tem. A gritaria teria sido outra, em outro tom. Manteiga nos meus dedos. Solidão nos vincos, nas juntas, ali onde um azulejo encontra com outro. Uma reta infalível que dá exatamente na tua casa, no teu corpo. Duas virtudes, ou menos. Jamais morrerei como os outros gostariam. Morrerei do meu jeito, tranquilo, leve. Sem alguém pedindo pra eu voltar. Sem alguém querendo me redimir. Jamais voltarei.