Retrospectiva da década - fim

São imaginações intangíveis que se materializam, e materialidades que antes habitavam a ordem do inimaginável. São surpresas, dobras inesperadas: doenças que eu ainda não tenho mas que estão vindo, postas num lugar e momento virtuais que me espreitam num dia após o outro; são um vir-a-ser que eu não intuía pra mim mesmo mas que hoje tem uma existência e uma história; são um homem idealizado que eu jamais supus (nunca quis supor) que pudesse existir mas que está ali, atravessando a rua, pedindo pra que eu toque seu interfone. São, talvez, o poder da fantasia, do poder da criação. São, quiçá, a confiança no curso da vida que nos levará ou nos trará aquilo e aqueles que estão lá desde sempre. Sem romances, nem truques aqui: são responsabilidades sobre o que falo aqui.

Retrospectiva da década - continua

Toda a vez que pego um ônibus para fazer alguma viagem intermunicipal eu desejo muito intensamente que eu sente nas poltronas mais afastadas, lá nas últimas já perto do fundo, que ninguém divida o assento comigo e que logo cruzando o corredor do veículo, numa distância não maior que dois braços, um homem bem sexy e safado se sente ali. Nas minhas fantasias, é interessante a impossibilidade do contato físico e o total voyeurismo da cena: os nossos olhos (os meus e os desse homem fictício que adquire tantas feições e carnes quanto minha imaginação é capaz de produzir) se tocam desde a espera pelo ônibus, ainda em terra, seguem durante o rápido embarque e se enroscam quando a viagem começa, numa lascívia à moda de Sade. Suamos sexo e prazer; sexo e desejo, lânguidos. Mas hoje, justamente hoje, peguei o ônibus e me sentei ao lado de uma senhora com sua neta. Esse é pior pesadelo pelo qual eu sempre nutri aversão de um dia viver. E vivi hoje. Mal o ônibus deu o arranque, eu me mudei para uma das 4 poltronas vagas. Amaldiçoei quem está no além escrevendo meu destino. Duas horas depois, já chegado ao meu destino, a surpresa: o homem com quem eu sempre fantasiei viajar junto no ônibus, o homem que construí pelo por pelo, dente por dente, músculo por músculo, sorriso por sorriso na minha imaginação depravada, esse homem já estava aqui me esperando, morando no edifício em frente. Ele surgiu pela porta da frente sem fazer barulho, foi entrando, e me surpreendeu tanto quanto pareceu ser surpreendido por mim: ele arregalou os olhos quando me viu e, em seguida, riu um riso malicioso ao ver meu corpo se erguendo logo atrás da bancada, ali onde ele não me suspeitava. Estendeu sua mão, enorme e com dedos grossos, gesto ao qual eu retribuí com a minha mão também grande, mas com dedos longos e finos: “Olá, prazer, eu sou o ...”. Apertaram-se as nossas mãos, riram-se as nossas bocas, lamberam-se as nossas fantasias. Será pouco dizer que ele se encaixa sem vazios ou apertos, com sua voz e com sua cor, nessa figura estreita e sufocante que minha imaginação criou? Porque se criei esse homem com tantos detalhes que não vem ao caso fazer desfilarem aqui, com tantas tessituras e sabores, com uma história e com um corpo tão específicos (e sempre sem rosto), fiz isso para que esse homem jamais existisse senão no interior mesmo das minhas demandas pessoais, como se ele fosse uma espécie de autossabotagem bem peculiar que habitasse minhas sessões de masturbação cotidianas. Mas se, por uma traquinagem daqueles que escrevem meu destino e que eu outrora amaldiçoei, esse homem de repente se exilasse das minhas fantasias e tomasse vida, num átimo; se ele se materializasse com força e opulência entrando silenciosamente pela porta da frente, usando como passaporte de ingresso apenas seu sorriso de dentes ordeiros; se esse homem estendesse sua mão, que é bem como eu a imaginei, para a minha, essa não é uma responsabilidade assustadora para com ele?

Retrospectiva da década

Acordei com o ronco do meu estômago. Não era apenas fome, mas saudade e nostalgia. Doíam um pouco minhas amígdalas, talvez por causa de uma recente infecção que poderia mudar toda minha vida. Era sempre assim: eu criava doenças pro meu corpo, elegia momentos infecciosos, de desprevenção, mergulhava nesses líquidos e secreções fantasiosas cheias de vírus de todas as cepas e densidades. Saía delas renovado, como que vacinado contra qualquer sanidade. Eu seria sempre um doente em potencial, um hipocondríaco. Mas será mesmo que esse é só mais um caso de hipocondria, ou será algo mais perverso e insidioso que me faz crer que se colocam uma ou outra doenças no meu destino como inexoráveis, necessárias, somente por eu ser quem eu sou?
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Era fim de ano, fim de década. Fiz uma eletrizante e ultrarrápida retrospectiva, não deu outra: me surpreendi com o caminho, com as esquinas dobradas, com os esforços e com os perigos. Acho que, dez anos atrás, se tivessem me apresentado numa bola de cristal o que e como eu sou hoje, eu-ontem se apaixonaria por eu-hoje. Nada narcísico; é que hoje eu sou algo tão diferente, tão inusitado, tão inesperado e inimaginável que eu-ontem se fascinaria com facilidade por eu-hoje (é preciso considerar que o eu-ontem era ansioso e inexperiente, caía facilmente em ciladas e engodos. Talvez eu, eu-agora, esteja projetando nele, no eu-ontem, o que eu-hoje sente por ele próprio: paixão avassaladora). Fui muito mais longe do que eu previra, me espraiei muito mais pros lados, alarguei minhas margens, cresci e adensei. Nunca consegui me ver no futuro, sempre programei meus objetivos a médio prazo. Como um touro, pesado e preguiçoso, fui dando um passo de cada vez – mas quando dava, dava com segurança e vontade. Não me vejo daqui dez anos, não me projeto pro futuro. Talvez essa dificuldade seja um pouco o produto da incapacidade que tenho de me ver como sou hoje. É raro eu parar pra pensar nisso. Eu só vou indo, como touro, aos poucos e com segurança, fazendo minhas medições cuidadosas pra não descansar demais, nem ir muito rápido. Eu daqui dez anos é uma bruma, uma imagem desfocada, um brilho fosco; ainda bem que já consigo me conceber, ao menos, como um brilho. Eis minha principal mudança de dez anos atrás.

O lugar do rei

Há alguma uma realeza, alguma majestade? Sem dúvida, há um reinado esperando seu monarca. Um trono vazio e uma coroa pousando sobre ele, sem cabeça. Uma coroa sem cabeça; um trono sem bunda.
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Uns vacúolos se tornam bolhas e vêm subindo, rompendo a pele. Estouram na superfície e vazam lava feita de sangue. Isto não é um corpo, mas quer tornar-se um; isto não tem vida, mas a deseja. Esta é uma existência que tem desejo, mas que ainda não alcançou a vida.
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Era um desfile macabro: torsos com as vestes arrancadas, pernas seccionadas do tronco, quase nenhum deles tinha mãos ou dedos e suas peles exibiam a mesma ferida em forma de flor, profunda e purulenta. Pedaços ocos desarticulados. Era a composição de um Frankenstein pulverizado em milhões de fotos repetidas. Mas havia uma opulência ali, uma pulsação... Não é certo que tenha sobrevivido.
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O vazio do trono era o próprio rei; erradamente supúnhamos que ele tivesse abdicado da sua coroa, mas estava ali o tempo todo, nos controlando, reinando, governando.

Anjos

No meio do caminho havia uma encruzilhada. Havia uma encruzilhada no meio do caminho. Tomei a esquerda. "Vai, Tadzzio!", me disse o anjo de uma asa só, "Vai ser gauche na vida!". Mesmo sem poder voar com graça, o anjo de uma asa só foi capengando para longe em busca de outro abraço. Na minha barriga, borboletas.
Nos meus olhos, suor.

Aprisionado

Ai, não, dessa fantasia não estou liberto, mas também dela não quero fugir! Não me tire essas fantasias todas, não me subtraia o poder da imaginação. É tão lindo e tão gostoso. A ponto de eu ir dormir mais cedo e acordar mais tarde somente pra ficar no sabor, no gosto, no exercício de fantasiar. Não me liberte disso. Liberte-me dessa merda de ciúme que verte de ti, ou da insegurança que secreta tua personalidade; mas não confisque os momentos em que eu não sou eu, momentos em que eu sou uma outra coisa que eu fantasio, que eu crio e parodio! Não me tire o momento de falar sozinho, de argumentar com meu-outro-eu: esquizo, porém feliz e inteligível. Não sinto falta de ti. Hoje, sentado no vaso sanitário, dei graças a deus por não te ter mais por perto. Não porque tu sejas menos, porque tu sejas ruim, porque tu sejas mau. Mas porque não quero, não combino, não sou da mesma raiz que tu. Me deixe ir, preciso andar. Não me aprisione nessa gaiola que tu criou pra ti. Eu tenho as minhas: elas sempre estão de portas abertas pra quem quiser entrar q pra quem quiser sair.

É, queridjeenho!

... não, queridinho! Meu corpo não é fantoche daqueles quem desejo, nem daqueles que me desejam. Meu corpo é só meu corpo, uma extensão de mim, uma coisa de mim, um algo qualquer de mim, mas não é eu. Eu sou outra coisa e outras coisas, eu não mereço – nem tu, queridinho, mas tu és velho pra dar-se por conta – ser escravizado por um, por dois ou por três que me desejam. E tu és um deles. Eu não vou me subsumir àquilo que tu desejas de mim, não vou me transformar naquilo – aquilo, aquela coisa, aquela máquina – que tu tanto quer provar. Tu não desejas aquele que sou, tu desejas aquilo que tu pensas que eu possa vir a me tornar. Vai te tratar! Eu não quero ser aquilo que tu queres que eu seja, eu quero ser exatamente aquele sou e aquele que eu me torno no instante seguinte, no dia seguinte, no ano seguinte! Eu me adoro um ano depois, dez anos depois, bem ao contrário de ti que fica mais e mais triste a cada minuto que passa. Triste e sozinho. Eu não sou uma pessoa sozinha, eu não sou único: sou tudo aquilo que os outros pensam que eu sou – até mesmo esse insatisfeito que tu pensas – e sou muito mais: sou o que penso que eu sou, sou o que eu quero ser já de antemão, sou o que eu não gostaria de ter sido, mas fui um dia. Não, queridinho! Não me sugue pro teu buraco negro porque lá só tem lugar pra ti!

Insônia

Eu tinha insônia quando criança, mas aquela insônia que te arrasta do sono. Não aquela que te arranca do sono. Eu demorava pra dormir... Naquela noite, como em poucas outras, eu fui dormir bem cedo, esperando pela insônia. Porque eu queria chegar nas minhas festas pessoais bem cedo e tarde deixá-las: eu tinha um enredo contigo. Essa mentira grande, essa simulação que eu faço, ela não é uma ameaça, ela não dói nem machuca. Eu vou dando de comer pra minha fantasia, vou incrementando-a, dando corpo a ela – não o meu corpo, mas também ele e outros mais conforme minha fome. Por anos, quando eu era mais ingênuo, isso tudo deu caldo pras horas que eu passava me engalfinhando com os lençóis antes de dormir. Hoje isso me acalenta e me distrai porque sei que o mundo que eu preciso desbravar a cada dia não é aquele das minhas fantasias, mas aquele dos meus medos. Era bonito o meu olhar, sincero: mas eu descobri a mentira e a falácia. Pude continuar a crer em tudo aquilo que fazia minhas festas pessoais, mas o sabor forte da crença de que todas elas poderiam ser verdade foi substituído pelo álcool. Hoje eu creio mais no álcool que nas minhas fantasias. E elas são tão bonitas... Quem se importa. Fato é que comprei uma cama cara, e meus travesseiros são muito confortáveis. Até meus lençóis, onde volta-e-meia me engalfinho, são de linho 300 fios. É que queimei minha mão fritando um ovo: coisa mais cotidiana e real possível. É demais pra mim, muita realidade. Eu preciso de um lugar confortável onde ter minha insônia.

Sem fins nem começos

Para não precisar fazer a arqueologia dos problemas que nos levariam ao ódio e à ojeriza, preferimos fechar delicadamente a porta pela qual entramos naquela sala. Para não ter a obrigação de escavar razões e situações no tempo passado, para não precisar mostrar motivos já mortos, fossilizados, que justificassem nosso desprezo mútuo, preferimos sabiamente dizer ‘até logo’ num momento em que abundávamos (será? não mais...) de admiração e carinho recíprocos. E tivemos sucesso.
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O fim de alguma relação não é identificável por si mesmo. O fim de alguma coisa não remete a si como uma evidência ou fato comprovável. O fim não existe porque, de certo modo, seu começo também é fruto de uma ilusão, ou de uma certa necessidade que temos em pôr uma marcação, erguer um obelisco em algum lugar, assinalar no calendário algum dia que nos faça lembrar de onde e de quando tudo começou. O fim depende do início, mas tal como o começo, o fim também é fruto de uma ilusão.
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O começo nunca é o começo per se porque há condições que nos fizeram estar ali naquele instante, daquela forma, naquele lugar específico. Há condições que nos apresentam escolhas, e só fazemos as escolhas que podemos fazer. Eu, com 27 anos, bêbado, numa festa freqüentada por muitos rapazes da mesma idade e com o mesmo interesse homoerótico são condições que me apresentam algumas escolhas, enquanto que descarta outras. Faço deste dia e deste lugar o começo.
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Mas o começo não é localizável, nem fixo, porque ele é uma circunstância, ele é um percurso, um caminho seguido. O começo que nós vulgarmente chamamos de ‘aniversário’ é apenas um nó em que as condições de escolha se colidem. Isso não o faz menos importante, todavia. Mas sem dúvida, pensar o começo como um certo momento de adensamento de condições faz com que o próprio fim seja repensado: repensado não como um ponto final, mas como uma reticência ou, no máximo, uma vírgula. O fim e o começo repensados colocam um ponto de interrogação (a dúvida) justaposto ao ponto de exclamação (a certeza). Não tendo certeza do começo, portanto, também não temos certeza do fim.
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A incerteza do fim tampouco significa arrependimento ou possibilidade do vai-e-volta. A incerteza do fim não significa necessariamente um ‘eterno retorno’, ou a chance de sempre reatar. O caráter difuso do fim serve mais como agente de transformação que como alternativa de re-estabelecimento do vínculo. O fim insere novas problemáticas nessa relação que termina e oferece novas condições de escolha. Essas, por sua vez, nos levam a novas relações; o fim desta é também o começo da próxima.

Corpos Simpáticos

E se eu choro é porque sou ator, e se eu desejo é porque sou ator também. Eu não posso assim, do jeito que tu quer eu não posso, eu não consigo. O sorriso descarrilhado e os olhos afiletados eu só descobri depois. Mas depois pra mim não é longe, não é inalcançável: eu sei o que fiz, eu sei que eu não quis, e eu não me arrependo. Eu me arrependo, talvez, dessa minha impetuosidade, dessa minha vontade de ser trator.
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Minhas mãos longínquas, com dedos superlativos, te escrevem isso porque estão desocupados. Porque se tivessem outros corpos pra digitar (que não fossem esses tão solícitos quanto são o laptop [nem tão ardentes quanto fossem meus dedos]) elas estariam calmas e dançantes talvez folheando um livro de ti ou um livro de eles, mas de qualquer forma estariam aqui e não aí onde tu lês isso que escrevo. E o que fazes aí? Por que motivo não vais ler, ou estudar, ou dialogar consigo? Por que lês isso? Não há nada aqui: só há imitação e deboche, recalque, repressão, mas tudo com um pouco de doçura.
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Porque sempre lembro de ti e por onde tu andas e por onde tu estás e por onde tu respiras me diga que eu quero saber porque tu me faz falta e teu corpo se encaixa no meu... morreste? Eu pensava que sim. Eu levo comigo um pouco da tua morte? Eu ainda penso em ti, ainda te quero e ainda te procuro nesses outros corpos: cadê teu corpo? Procuro tuas letras iniciais, teus recuos de parágrafos, mas me diz: onde estás? Se soubesses o quanto minhas mãos aracnídeas batem e rebatem nesse teclado negro à tua procura.
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E isso acontece não porque sou bêbado (também porque sou bêbado, mas acima de tudo porque sou uma lâmina, um filete, uma fatia bem fina [uma coisa delgada através da qual passa tudo aquilo que mais desejo], um sopro e um riso, uma cédula ou moeda que cai do bolso, um esquecimento), elas acontecem porque não há nada. Nada. Nunca houve. Cadê você em mim? Não há! Saia já daqui: não há motivo nenhum para eu me enrolar nos lençóis verdes com perfume amadeirado. As veias que cobrem minhas mãos mantêm a aranha que desliza pela teia das minhas confusões. Não te esqueço mesmo assim.
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E aí tu estás, não é?!?! Insinuando-se pelas minhas superfícies e se querendo pelas minhas aderências!!!! Te denuncio!!!! Onde vais querer ficar (fica comigo [fica na minha mão, na minha boca] fica no meu quarto), onde vais querer dormir? Sempre dormes comigo de algum modo, mas nunca de um jeito tão traduzido, tão ligeiro, tão simpático. Saia daqui: não há nada pior que um corpo simpático, por favor, saia agora para sempre.

Z's e S's

Meu primeiro nome é Luiz. Com ‘z’. Sou feito de coisas tolas, coisas poucas que foram se justapondo durante vinte e sete anos, coisas tolas e poucas que foram acumulando como pó e aqui ficaram, a pesar para baixo, formando uma gota. Como, por exemplo, a letra ‘z’ do meu primeiro nome, que é uma tolice. A letra ‘z’ ou a letra ‘s’, a priori, não fariam nenhuma diferença para que eu me apresentasse, mas de qualquer modo todo um processo administrativo foi levado a efeito junto ao cartório em que fui registrado para que se trocasse a letra ‘s’ do primeiro registro do meu nome – o escrivão tinha uma personalidade forte e não deixara que eu fosse Lui’z’ – para transformar-se na letra ‘z’. Te convido para analisar a forma destas duas letras: ‘s’ é suave e curvilíneo, é uma dança no papel e nos dedos de quem escreve, é um caminho sinuoso. ‘S’inuoso. A letra ‘z’ radicaliza as dobras do ‘s’ e cria ângulos onde antes havia curvas. Radicali’z’a. Como disse Deleuze: “Z é uma letra formidável que nos faz voltar ao A”. Ele explica que ‘z’ é o movimento brusco, angular, que deveria preceder ou substituir o Big Bang. “Você gosta de ter um Z no seu nome?”, pergunta a entrevistadora. “Adoro!”, responde o velho com longas unhas.
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Eu também adoro ser Lui’z’. Mas não me incomodaria em ser Lui’s’. Me pergunto, e acho que isso é importante para ti, que não me conhece, se eu seria fundamentalmente diferente se eu fosse curvilíneo. Se eu chegasse numa noite toda negra, em que corpos interagissem e se lambessem publicamente, ou se eu me insinuasse pelos bosques, pelas matas, pelos matos e pelos parques noturnamente, individualmente (eu e os outros corpos, individuais), se eu bebesse e se eu me deleitasse, se eu gastasse o tempo e o dinheiro que tenho e que não tenho, se eu me vestisse e ainda assim me envergonhasse do meu corpo, se eu tentasse e sofresse, se eu tentasse e não conseguisse, se eu fosse o que não sou... Eu seria o quê?
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Não sei, mas definitivamente eu não seria Lui’z’. Viste quantos ‘s’ constam no parágrafo acima? Demasiados ‘s’. E eu não sou ‘s’, sou ‘z’, sou Luiz com ‘z’. Eu vou seguindo por um caminho que muda bruscamente, para outro lado. Não me curvo, não 's'uavizo. É o choque que o ‘z’ causa na escrita do meu nome que me permite chegar a dizer “eu sou”.
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Mas, como eu dizia, sou feito de coisas tolas e poucas. De todo modo, coisas que foram criando tensão sobre a superfície do meu corpo e, então, chegaram ao ponto de dizer “tu és lui’z’”. Não sou eu quem diz, e sim as coisas que me fazem ser quem sou. Tu te interessas por isso? Não sei bem em que momento comecei a te admirar, a te erotizar ou a te desejar. Acho que o verbo é exatamente esse: desejar. De’s’ejar, porque o que sinto vem em curvas, em intensidades de onda, em movimentos curvilíneos por ti. Não sei se é teu nariz em ‘z’, ou teus olhos negros profundos – de cigano? Oblíquo? Dissimulado? – ou se sou eu que me engano. Aposto no meu engano e gosto de acreditar na beleza dos ângulos do teu nariz, de noventa graus, cento e oitenta, nariz de triângulo, de Báskara. Eu ouço uma música que me faz lembrar muito do teu nariz, mas também dos teus olhos e sobretudo das tuas mãos. Oh!, tuas mãos me apaixonaram por primeiro. Quando elevaste teus braços à altura dos ombros, eles em arco na frente de teu rosto, as mãos em frente aos teus olhos – negros, buraco-negro – e os dedos indicadores (direito e esquerdo) encontraram os polegares com uma suavidade que os impediam de se tocar, me apaixonei. Posição de balé clássico. E uns dedos longos, uns dedos alvos, umas unhas bem cortadas, opacas. Dois olhos de buraco-negro entre um nariz triangular e protuberante. E sorriste.
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Teu corpo dançou em ziguezague. A letra ‘z’ em teu corpo e a letra ‘z’ no meu nome. E é impossível que não tenhamos nada a viver um com o outro. Talvez tu com o meu corpo, e eu com teu nome.

as verdes noites do fundo dos teus olhos

Eu sei que não era bom que eu tentasse, que eu insistisse, mas eu pensei “por que eu deveria ficar angustiado por não ter chegado lá na borda, lá no limite?”. E eu vim. Mas agora me arrasto como pano de chão, rasgo como um caco de vidro. Estes foram os melhores e piores dias da minha vida, sem mágoas. Dos melhores e piores não sei se o que restou de mim é o que tenho de mais forte, de mais bonito, de mais duro ou de mais inútil. Isso que sobrou de mim depois dessa patrola, isso não sou eu... sou? Aqui no limite não mora muita gente, mas eu. Alguém mora na borda? Ou a borda foi feita para que seja experimentada sempre do seu lado avesso, sempre como estrangeiro, como forasteiro...
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E aqui mais uma borda e mais uma tentativa, mais uma insistência. E eu penso “por que eu deveria ficar angustiado por não ter virado estrangeiro e forasteiro?”. Vou lá revirar a borda, pôr do avesso o limite (as minhas, os meus [e de arrasto levo dos outros] que eram tão curtos e próximos e hoje se alargam). Mas esse estrangeiro que me tornei, esse exilado – é bem verdade – ele é a parte dura de alguém que já foi mais agradável, porém bem menos aventureiro. Gosto desse exílio, desse estrangeiro, mas o viajante no qual me tornei já não guarda mais nenhuma similitude – aparência, similaridade, equidade, correspondência – com o genuíno e autêntico EU. Só sobrou a parte dura, a casca-do-fora, o bagaço. O sumo se foi. Depois da patrola, o exílio, e só resta a casca-do-fora. "Nunca houve o genuíno", me diz o forasteiro; "não há autenticidade, nenhuma nacionalidade do eu, nenhum eu-pátria", me diz o estrangeiro. O nômade acredita ter raízes na terra apenas enquanto a madeira queima na fogueira, em torno das barracas recém levantadas, depois vai-se embora com as cinzas.
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Eu olhei apenas de relance, não quis me deter. Mas são tão verdes as tuas noites quanto são azuis as minhas? São tão desgrenhados os teus travesseiros quanto são encaracolados cor-de-mel os meus? Não nos demos conta naquele momento, mas éramos forasteiros um do outro. E como nômades que somos, passamos por mim e por ti quase sem debruçarmo-nos mais extensivamente na terra a ponto de fazer fogueira. Não há cinzas de nós. Só verdes noites pra ti, travesseiros platinados pra mim.

Eu não sou um solitário

Numa tarde tão tranquila como esta, eu não sou um solitário. Meus vizinhos não estão em casa – e a criança barulhenta a quem eles deram a luz se foi com eles –, dá pra escutar os pássaros cantando lá longe, assim como se distingue claramente o som do Renato Russo cantando “Eduardo e Mônica” em algum lar próximo do som dos carros passando na rua. Até o som – eu escrevi ‘som’, e não barulho – da geladeira funcionando, até esse som toma corpo. Como companhia, alguns insetos com asas que voam pela casa procurando luz – eu não os mato, nem os esmago, eu os deixo ali como isso que são: companhias. É um dia cinza. É um dia fresco. E nadando nesses espaços e nesses tempos, eu vou me perdendo nas leituras e nos pensamentos, nos sons e movimentos da minha digestão. Não me sinto deixado, preterido, não me sinto indo embora: me sinto chegando, com malas cheias, em uma nova casa como se essa fosse uma manhã de festa – o novo morador recém chegou!
*
Há tempos eu vinha observando nas calçadas algumas manchas escuras, como se fossem imensos pingos negros no concreto.
Com o tempo, percebi que alguns desses grandes pingos esparramados nas calçadas traziam rastros de comida não digerida. Tratavam-se, portanto, de vômitos de pessoas, vômitos vomitados ali e que se incrustaram no concreto das calçadas, ao sol e à chuva, expostos à poeira do cotidiano, que traziam os sucos gástricos alheios e esses iam oxidando (?) em contato com o ar: deveras, eram pedaços de corpos que se decompunham e escureciam, marcando o chão.
Eu os observava porque, ao caminhar pela rua, raramente olhava para os lados, para frente e, muito menos, para cima. Eu costumava olhar sempre pra baixo, pro chão onde eu pisava.
E eu ficava recontando as histórias desses vômitos, não porque eu goste de vômitos, mas porque me dava prazer o exercício de contar histórias de pedaços de corpos que eu nunca conheci. Adoro criar histórias, inventar histórias para os corpos e para seus pedaços. Eu gosto de inventar vida.
*
Pois bem: sonhei na noite passada que eu chegava no pátio da casa onde eu cresci. O espaço estava bastante sujo, cheio de vômitos e de lixo orgânico que vinha apodrecendo. Eu me pus a limpar o espaço com muita vontade, com muito empenho, e eu não entendia o motivo pelo qual eu empunhava com tanto ardor a vassoura e a mangueira para limpar aquele ambiente. Foi com certo horror, misturado a um sentimento de incompetência, que percebi vermes se multiplicando no lixo e na sujeira que eu me propunha a limpar com tanto esmero. Desisti. Mas antes de ir embora, agarrei um cão ainda filhote que estava ali, sobre-vivendo naquele espaço imundo. Ainda sonhando, dei-me por conta da razão que me fazia querer limpar o pátio da minha casa: era preciso resgatar e preservar o que de vida a ser vivida ainda restava em mim.
*
Parei de olhar o chão enquanto caminho. Tropeço, é verdade. Mas não perco, como antes perdia, o tanto de beleza que há ao redor da minha caminhada.
*
É a minha história que precisa ser criada.

Indo embora

De repente te rasgam a pele, te machucam, fazem doer. Cospem, dizem fogo. Rosnam, latem e mordem. Depois vem um silêncio, um silêncio tenso, aguardamos outras mordidas. Elas não vêm. Só aquele nada, aquela espera que vai se estendendo.

E passando isso é que a gente sente que tiraram um peso muito grande de cima de nós. Foi dissipado, foi embora, foi levado para outro lugar. O peso tomou corpo e saiu andando. Só, para poder ir embora, não precisava ter rasgado minha pele.

Odiando o que de mim há nela

Tende a continuar. E tende a ir perfurando esse espaço estreito aqui do meu esterno, bem fundo, até me atravessar. A náusea é desconcertante: quando olho o rosto dela, há uma contração involuntária no meu corpo que pede pra colocar tudo de ruim que sinto pra fora.
*
Não sei se é pela repulsa que sinto a todas as roupas que ela escolhe colocar – patetiquinhas, ridiculazinhas, infantilóides, abobadas. Ou se pelo tom de voz, pelos trejeitos das mãos e pelos vícios de linguagem. Mas acho que o pior mesmo é ter de ouvir o conteúdo das suas opiniões (nem toda opinião tem conteúdo, as dela têm e são desprezíveis).
*
Fico me perguntando, é claro, o que de mim há nessa pessoa tão deprimente: será que, em algum lugar de mim, eu também me ache rastejante? Ou será que em alguma medida eu invejo sua pequenez: essa preguiça indolente, esse atraso no raciocínio, essa satisfação crua com migalhas. Pomba. Ela é uma pomba. No máximo uma foca em cativeiro: se satisfaz com peixe enlatado.
*
Será que é a inveja que me corrói? Uma vontade absurda de ser pouquinho, de ser raso, uma vontade louca de ter medo de tudo, de não enfrentar nada, uma vontade eletrizante de paralisar diante de situações que deveriam catapultar. Será inveja, será? Será que eu gostaria mesmo de pouco menos de dois salários por mês, algumas drogas ilícitas para alcançar estados alterados de consciência, bebidinhas, comidinhas e muita reclamação de que tudo é pouco, tudo é insatisfatório, “céus, o que fiz para merecer isso?”. Será mesmo que é o vestido longo da vítima que me cai melhor?
*
Seja isso: sinto náuseas ao ouvi-la, ao olhá-la, ao senti-la e então tudo o que sinto por ela é também o que sinto por mim. Não é de todo inverossímil. Mas também não é assim o tempo inteiro. O desejo de ser moderninha é algo tão... velho. O desejo de ser pop é algo tão... baixo. Cool, Cult: ai, que cansaço. Na sua segunda frase já dá pra perceber que se trata de uma adolescente frustrada querendo estender ao máximo sua juventude não vivida para as bordas pós-balzaqueanas. Será que é assim que me vejo: um velho descontextualizado, rasteiro e rastejante como um pano de chão, posando de guri para enganar a si próprio e aos outros ao gritar com todo o corpo “me amem! Sejam meus amigos! Sou simpático! Sou agradável!”.
*
O suicídio é um dever. Um dever pra mim, se aquilo que odeio nela é tudo que em mim também está.

Serpentes e toupeiras

Ficamos assim, esperando que um ou o outro se toque, se olhe no olho. Contabilizamos os beijos em tempos de recessão: é necessário poupá-los. Do que serve uma poupança de beijos nunca dados? Se antes, num momento não tão longe deste que estamos agora, nos acomodávamos um na barriga do outro e nos sentíamos em casa, dispostos a contar segredos como se fôssemos amigos, hoje é burocrático, processual, protocolar. Reuniões de pouca pauta e muito falatório, questões de ordem. Muitas diretrizes para regular algo que não existe. Dou o tempo que não tenho, a energia que deveria ser usada para coisas mais úteis, queimo o pouco potássio dos meus neurônios para... menos de um salário mínimo contabilizado em beijos, exatamente. Se tento debochar da minha situação, ridicularizar a exploração a que voluntariamente me sirvo, a censura não tarda: não se pode rir disso, é preciso levar a sério a mesquinharia da máquina, da engrenagem, do sistema. É claro que há alguém mais bonito, mais competente, mais dócil. Uma das crenças que me faz dormir à noite é que, ainda bem, cada um sabe o pedaço de inferno que traz consigo. Ou a sombra que se projeta para fora, produto de um vácuo. Buracos, vacúolos do nada: como serpentes ou como toupeiras, entramos e saímos desses túneis que cavoucamos (eu em ti e tu em mim).

Suor de umedecer a cama

Entrei em pânico, desesperei. Acordei, e os lençóis estavam úmidos, o travesseiro também. Suei dormindo, por calor ou enfermidade, e molhei a cama.

Era medo, angústia, reação química do relaxante muscular em alta dose? Fiquei desnorteado: o que aquilo significava? Talvez eu quisesse dizer algo a alguém, talvez eu quisesse falar algo, ou talvez meu corpo quisesse gritar comigo. Acordei e estava tudo molhado, úmido; tive medo.

Eu tirei todas as minhas coisas da tua casa. Primeiro minhas cuecas de dormir, depois minhas roupas de ir trabalhar. Meus chinelos, minhas meias. Tirei minha foto, diminui a frequência do meu corpo na tua cama. Recolhi meus restos todos e só deixei a escova de dentes. Tu vais dizer que eu estou fugindo, que eu estou indo embora, que eu estou me exilando. Não é verdade. É que penso que o teu espaço tem que ter a tua cara – teus lençóis secos, bem estendidos, fotos tuas e daqueles que entraram e ficaram na tua vida, o teu cheiro, que as tuas roupas reinem uma monarquia morna para elas próprias (minhas roupas não querem ser tuas súditas). Não estou me retirando pra ir embora; estou saindo pra que tu possa ter o lugar que é teu de direito. Vai, guri, vai ganhar o que é teu! Eu não sou teu, eu sou meu. Também se te devolvi as coisas tuas que estavam aqui não foi porque queria que tu fosse embora. Devolvi porque são tuas, tu cuida delas e não eu. Eu cuido das minhas e tu cuida das tuas.

Mas nesse jogo de regiões bem delimitadas, existe a possibilidade de criarmos uma coisa outra, uma convivência nossa, um espaço nosso. Podemos viver, e de um jeito bom, algo a se compartilhar. E esse algo a se compartilhar não vai se colar a espaços ou territórios, não o acharemos em gavetas ou em portas de roupeiros, não vai se aderir a restos de um na casa do outro. Um terceiro corpo (o meu junto do teu), uma terceira vida (a minha junto da tua) não é a mesma coisa que eu deixar de viver a minha pra viver a tua, nem vice-versa. É um processo de criação mesmo, um processo de criação de uma outra vida – a nossa. Se é verdade que tirei aos poucos as minhas coisas da tua casa (tu dirias “até tiraste o teu corpo do meu”), em contrapartida eu te dei a chave da minha casa. Há quem diga que, simbolicamente, te dei tudo que existe aqui dentro; eu não seria tão radical. Mas é fato que te dei confiança de entrar e sair de onde eu moro a hora que tu quiser. É esse passo adiante, de confiar, que eu acho que precisa estar presente no nosso convívio. É isso que me importa, e não coisas móveis, compráveis, transferíveis e deterioráveis.

Não posso deixar de lembrá-lo que houve um dia em que deixamos cair no chão a confiança. Quebrou-se. Eu não tenho problemas com isso: acho que os sentimentos estão aí pra serem quebrados mesmo, pra serem renovados, reciclados, experimentados de outros modos. Não tenho problemas em lidar com a confiança craquelada, rachada, recomposta, à qual sempre falta uma parte. Porque uma vez quebrado, o sentimento é diferente do que era no início. Por mim, beleza. Não acredito em e nem desejo sentimentos puros. Nossa confiança não é pura, ela já foi feita e refeita muitas vezes. Repito: por mim, tudo bem, sentimentos precisam ser recicláveis. O que te estranha é o fato de que fui mudando junto com ela, fui craquelando junto com ela, fui quebrando também. E hoje eu sou um pequeno caleidoscópio em relação a ti: muitos pequenos fragmentos quebrados. Isso não é ruim, não me faz infeliz. Mas exigiu que eu tomasse uma outra postura em relação a ti: continuo te adorando, continuo gostando de ti, agora em milhões de pequenas partes nunca recompostas. Acho que tu não quer isso, acho que tu deseja alguém que seja uma totalidade pura. Eu não sou isso.

É provável que à noite, durante meu sono, eu estivesse tentando organizar meus sentimentos pra poder te fazer entender. Suei pra conseguir! Mas de fato sinto medo que meu corpo esteja arruinado, quebrado, craquelado. Ao contrário dos meus sentimentos, eu não quero um corpo maculado. Não é justo comigo. Eu não escolhi esses pequenos monstros nas minhas veias: foram eles que me escolheram. Foram eles que me procuraram, que me caçaram. Eu estava vulnerável, me fizeram vulnerável e me pegaram. Eu passei o dia inteiro de hoje sentindo medo de ficar sozinho, de ser deixado. Esse é o máximo da totalidade pura que tu pode ter de mim: meu medo.

Medo, mãe

Hoje eu senti medo. Fazia tempo que eu não sentia isso, essa coisa grande e fria, medo. Senti medo, mas não um medo com pavor: foi um medo com decepção. Medo de me decepcionar, medo de ter feito a coisa errada - ou de ter feito a coisa certa, mas de ser agredido por ter feito a coisa certa por aqueles que fizeram a coisa errada. Senti medo de falar, de comentar, de opinar. É muito assustador: ser fulminado, incinerado, patrolado: o que estava em discussão não era o lado certo ou o lado errado (esse era o disfarce do fascismo), mas o que estava e ainda está em jogo são as estratégias de definição daquilo que será considerado certo (a suposta substância do certo) e a definição daquilo que será considerado errado (a suposta substância do errado). É que quem se considera certo também se supõe dono da substância, detentor da essência, possessor da identidade. Senti medo desse jogo de produção de verdade: ele sempre produz pequenos monstros e novos ditadores. Os ditadores dizem "somos democráticos", mas não reconhecem a legitimidade daqueles que estão fora de suas fronteiras. É um fascismo bem requintado: promove suas boas intenções negando aquilo que o define, a saber, a impossibilidade de fazer crescer vida fora dos domínios que governa.

Sonhando anticorpos

Há quem sonhe ilhas... E há quem sonhe anticorpos. Há algumas concepções do que pode vir-a-ser um anticorpo: pode ser uma reação, uma estratégia de defesa, uma vingança, um veneno, um remédio. Pode ser a materialização de uma cura. Anticorpo pode ser também aquilo que não é um corpo, aquilo que é anti, o contrário do corpo, seu antípoda. Pode ser a desmaterialização de um corpo, portanto. Anticorpo pode ser um corpo estranho, um corpo excêntrico, foracluído, um corpo estrangeiro – ou seja, um corpo que destoa do homogêneo. Anticorpo pode ser, então, corpos-outros, de improviso e imprevistos, inesperáveis, sempre se separando uns dos outros a criar corpos-novos.

Sonhar anticorpos é sonhar que se está crescendo, ou que já cresceu, e que se está prestes a tornar-se outro, atacando corpos e deglutindo-os. É esparramar-se até a porta ou janela, deslizar pelas frestas e reentrâncias abertas que não podem jamais ser fechadas e tomar de assalto a boca, os olhos e as mãos. É também só olhar através vidro, escutar a voz através da parede, sentir os passos pelo chão, e a partir deles criar uma história, de mágoas ou ressentimentos, de sucessos e de tranquilidade, que seja, mas uma história que justifique e possibilite qualquer aproximação.

Não é assim que nos insinuamos? Porque sei que tu também tens teus anticorpos (de defesa ou de cura), e sonho que eles sejam também meus. Sonho que eles se esparramem e deslizem pela porta, à noite ou de dia, sem dor nem culpa, mas com ansiedade. Meus anticorpos são urgentes. Minha história, minha trajetória, tu as recontas quando te deitas na cama naquele lapso de tempo entre por a cabeça no travesseiro e o sono vir? Só tu vais saber se minha história é bonita ou trivial, de angústia ou de carinho. Se tu criares pra mim uma história, me dispo da que eu tive até hoje e visto a tua. Porque não quero ficar sem história pra contar, sem memórias pra lembrar. Mas abro mão das minhas pelas tuas: talvez teus anticorpos me curem. Ou se vinguem de mim.

Nu em pelo

Será mesmo que eu tenho que lhe dar a notícia pessoalmente? Pensei talvez numa carta, que não é tão fria quanto um e-mail e nem tão calorosa quanto um papo olho-no-olho. Talvez por intermédio de amigos – mas não há motivos pra envolver outras pessoas nisso. Teria de ser nu em pelo.

Pois foi justamente contra um pelo que lutei nos últimos cinco dias. Eu o via ali, num lado ligeiramente à direita do meu nariz. Reconheci-o de primeira: um ponto preto me desafiando bem na superfície da pele. Sabia desde sempre que não se tratava de um cravo, já que eu conhecia todos os que se deitavam no meu rosto. E sua cor era diferente da dos cravos, era um preto profundo, acetinado, garboso. Eu o via ali, tentei tirá-lo com uma pinça, mas só consegui rasgar minha pele de tanto insistir. Pensei em estratégias: talvez depois de um banho quente; talvez com uma nova pinça; talvez deixando o pelo crescer alguns dias mais; talvez promovendo uma pequena intervenção ambulatorial no meu próprio banheiro... E assim se passaram cinco dias sem que eu conseguisse arrancá-lo do meu nariz.

Quando eu finalmente consegui (empurrando um pouco meu nariz pra cima, contra a raiz do pelo, de modo que ele se projetasse pra fora da pele para, então, eu conseguir pinçá-lo e arremessá-lo pra fora das minhas fronteiras), suspirei: “sou uma nova pessoa”. E sou mesmo. Porque às vezes é pequeno, é quase discreto, é sutil, diriam que imperceptível. Acontece que me incomoda, me estranha, me faz outro que não me reconheço, habita uma parte do meu corpo e da minha vida que eu não quero que seja habitada por ele – ele, o pelo. Mas é difícil de tirar, e não sairá a força, só sairá com um “jeitinho. E quando sai, nossa: me renovo inteiro.

Daí volto a me perguntar: será que vou ter que informá-lo pessoalmente, com pinça e tudo, dando um “jeitinho”? Tudo bem que alguns nem percebam que ele está ali, que alguns o achem sutil e discreto. Mas me incomoda e começa a habitar partes da minha vida que não são da sua responsabilidade. Ele começa a querer me cobrir, me esconder, me vestir, me calçar... E eu quero continuar nu em pelo.

Não te enganes....

E se eu te negar? Se eu te disser que chega, que não me basta, que nenhuma ruga vai represar meu ódio, que nenhum pau mole vai compadecer meu veredicto (muito pelo contrário, teu corpo é veredicto, ele diz de si). Haverá luta? Não creio. Porque nunca houve! Não há nada na tua acusação muda, nem na tua recusa em encarar meu corpo como algo digno. Ele não é algo digno. Se eu te negar, quem sofrerá será eu, e sei bem disso. É como se a materialidade da tua carne não existisse, não pesasse. Mas ela aí está! Haverá de negar? A negação parece tema recorrente entre nossos gozos. É que seus cabelos loiros e olhos desavisados me parecem presas fáceis. Ingênuo eu? Talvez sim, mas mereço tentar, pois já tentei uma vez e fui bem sucedido: porque o que quero é um beijo que me sugue, uma língua que me escaneie, um olhar que me faça digno de dizer “te admiro”. E não sou digno? Não para você talvez. O que me interessa é um roçar, um carinho, uma admiração sem ônus, sem nada em troca, sem toma-lá-dá-cá. É uma carícia, e não precisa ser uma noite, é apenas um descanso, a chance de ouvir um “que bonitinho” sem me sentir culpado por isso. Posso? Não há beleza no constrangimento. Se eu pudesse, eu atravessava o vidro, a grade. Se eu pudesse, eu atravessava as correntes que tu me impuseste. Somente pra te mostrar como são inúteis, como são ineficazes. Se tu soubesses quantos ônibus peguei sem tua autorização... É que tua autorização, como qualquer outra, é um título vergonhoso para mim. Jamais haverei de ostentá-la, mesmo que ela existisse. Tua prepotência existe mais tranquilamente se tu te esqueces do quanto tu és pequeno.

A décima terceira casa

Às vezes o céu vem tão depressa... É a hora de piscar os olhos, se ainda olhos tivermos. Disseram pra mim que é impossível, gramaticalmente, que alguém “amanheça”: ninguém “amanhece”, me contaram, o correto seria dizer que “vemos o dia amanhecer”. Que triste é acreditar que não se pode amanhecer (nem anoitecer, nem madrugar; como podemos negar que em determinados momentos nós alvorecemos?). É que de um modo geral nós não gostamos de nos saber descobertos pela manhã, tarde ou noite. É como se considerássemo-nos atemporais: o corpo não pode ter tempo. Que mal há no pôr-do-sol do corpo?

Entre o dito e o não-dito, há mais do que o silêncio, mais do que a tagarelice. Cada um diz tudo o que pode dizer, vê tudo o que pode ver. O que não significa que tudo que pode ser visto ou dito se reduz àquilo que nós vemos e dizemos. A curiosidade, a dúvida, a insatisfação, o descaminho: todos conduzem à décima terceira casa. Ela não é a casa do mistério, isso porque não priva ninguém de saber o que nela existe, porque não recolhe ao seu abrigo algo a esconder ou a dissimular; tampouco é a casa do etéreo, do intangível e do metafísico. A décima terceira casa é a casa daquilo que extrapola o dizível e o visível e, por isso, é também a casa do tempo, do tempo do corpo.

Ah, não

Não, não e não! O salto não deu certo. Mas não tão certo quanto eu imaginava que ele pudesse dar. No Brasil me parece que qualquer chute pode ser grávido, mas meus pés não fecundam. Bebo, bebo, bebo.... Oferece-me algo mais interessante que isso? Não quero calções por baixo, nem foto de baixo, mas quero ser um profissional. E isso me incomoda porque jamais serei. Não há estrutura, não há conforto. Os sonhos são vários. Mas os corpos são maiores do que eu imagino do que eu poderia ser. Não poderia ser meu oponente se eu não pudesse sê-lo de alguma forma. Eu preciso ser aquele que eu supero. Mas ele continua tão belo. E me diga, me diga no meu lugar, o que tu vês por essa janela que é tão pequena e que me deixa ver tão pouco do teu corpo. Se há recortes do teu corpo é porque tua janela me impõe navalhas. E há perigo? Há perigo para tuas secreções? Não sei se pras minhas, mas pras nossas... As luzes não costumavam me chamar tanto. Nem costumavam significar tanto. Nunca observei o sol que eu tinha sobre minha cabeça. E tu, tinhas? Tua janela me suporta, me rasga. E se meu corpo não resiste mais, se porque o espelho se encarrega da minha mensagem, ou se minha imaginação fertilizam teus caminhos, eu poderei dizer “nunca”. Mas eu jamais direi “nunca”, porque nenhuma letra antes dessa jamais disse. Eu não estou ausente para ti. Eu estou aqui. Pule a janela, corte-se. Isso que fica pro lado do corte que sangra não nos pertence. Desce. Há mais dores do que tu imaginas. Mas meu beijo não corta, meu beijo cura. Depois de toda a batida, depois de todo choro, anda precisas de mais uma gota de sangue para abatumar? E se eu cortar a garganta daquele que eu gosto de perfurar? Sugira-me outras lâminas pra eu me matar. Porque teus peitos não me sufocam, nem tuas bolas, nem tuas barbas... E se tu pulasse da minha imaginação? É ruim. É péssimo. Porque tu é aquele que me mantém na camadas 8 às 10. E eu adoro. Deixa eu ficar, deixa eu me acomodar nos sulcos do teu pescoço? Eu me deleitaria nesse carpete marrom, bem sexy... Mas jamais serei uma ponte, nem pro carpete, nem pro tapete. Nunca meu corpo denunciou minha verdade. Nunca meu oponente soube que eu chorara, ou que eu perdera pra um peso leve. Não há dinheiro que pague isso. O canudo que atravessa a cachaça consegue drenar o muco do coração. Eu sou de Ogum, e o coração está na espada. Briga comigo, e te machucarei com aquilo que me é mais precioso. Mas e se ele não entende? E se ele não me quer? Na sua paixão tardia, ele ainda deseja aquele que atrás de mim reside... O que posso levantar contra seu desejo? Com que lança posso rasgar seu pesar? Com que pincel posso borrar sua lembrança? Tudo é tão material, tão saboroso... Eu também sinto a carne dele. Seu corpo também está no meu. Ele respira perto dos meus ouvidos. E se eu me apaixonar? Eu daria um tapa na escuridão e diria: “aqui está meu testamento! Jamais uma manhã de desespero!” E quantas foram que tu mascaste na boca, agridoces? É que o corpo bate, e dói, junto com o que chamamos de palavras. Ás vezes vomita. Mas se vomita, é porque ele é saudável!

Retorno de Saturno

Apressado meu Saturno. Retornou ao seu grau de origem cerca de 4 anos antes do previsto.

Subitamente, ou não, uma profunda inconformidade com a razão, com a racionalidade, com os planos e com as estratégias que não foram bem paridos. Gestação rápida, in vitro, que colocou no mundo essa coisa estranha que sou hoje, essa entrecruzilhada justaposta. Não há caminhos, nem por cima, nem por baixo.

Caminhos impossíveis:
O caminho da frente é só terror [recusas, batalhas por um palmo de terra, discussões sobre um conceito, diferença mínima entre o grito e o silêncio {a não ser para o currículo lattes}, negações, reprovações, frases mal colocadas, resumos mal feitos, apresentações mal planejadas, inércia, invisibilidade, mais-uma-gota-no-mar-de-teses-e-artigos-sem-que-o-volume-do-todo-se-modifique, frustração, análises e sínteses deslocadas, mau planejamento, mau argumento, repetição não-diferencial, ventríloquo, fontoche, puppet, 4 encadernações com 4 formulários preenchidos e 4 vias homologadas até o quinto dia útil do mês {o pagamento NUNCA é feito no quinto dia útil do mês; não obstante minhas obrigações devem seguir à risca um calendário pouco afeito às elasticidades}, defesa, anteprojeto, banca, defesa, projeto, defesa, tese, título, defesa {se há defesa é porque há ataque}]. Sei que tenho pouco fôlego para esse afogamento em vaidades e citações bibliográficas. De qualquer modo, não é afogado que me imagino morto.
O caminho de trás já se fechou – e jamais esteve aberto. Vim dar aqui onde estou, em primeiro lugar, porque nunca planejei, porque nunca desejei, porque ao me deitar na cama à noite, até pegar sono, nunca construí sonhos com tudo o que vivo agora. Vim dar aqui onde estou porque, desde criança, sempre gostei da contramão, da contra-corrente, de acelerar no sinal vermelho, de estacionar em fila dupla, de sentar no banco do motorista e ir manejando o volante e as marchas como se o carro estivesse em movimento [quando na verdade estava parado dentro da garagem de casa, e meu pai estava dormindo sem saber que eu roubara as chaves]. Vim dar aqui porque fui pululando de não-em-não, espremido entre algumas poucas possibilidades que chegaram a me cuspir nesse ponto. Tenho pouca paciência para esse esmagamento incalculável que me empurra de um lado para outro. De qualquer modo, não é esmagado que me imagino morto.

Caminhos possíveis:
Pirueta dupla com um carpado de nu frontal. Sexy, porém perigoso. Posso decidir que vou dando de mim a quem quiser, fazendo a linha Geni acadêmica; posso ir vendendo meu corpo como mão-de-obra e minha [rasa] capacidade de reflexão a quem quiser ouvir minhas advertências e meus conselhos. Michetagem intelectual a $100 hora/aula. Posso escrever maravilhas para o governo, ser financiado e viver a vida repassando alguns mil das contas públicas para minha conta pessoal sem que haja nenhum monitoramento nem avaliação dos usos e abusos que vou fazer do dinheiro que você, caro cidadão, paga todo ano à tigresa de unhas negras e íris cor de mel [leão? Imposto de renda no Brasil tá mais pra tigresa que pra leão]. E quando cansarem dos meus pareceres? E quando não houver mais bichas morrendo de aids? E quando, finalmente, todos nós nos reproduzirmos por derivação e ninguém mais se importar com as {vômito} identidades sexuais {arroto}? Meu corpo não está sendo esculpido a goivas gregas [e aveia em todo café da manhã, 0% de gordura e reduzido teor de carboidratos] para morrer depois de uma sessão de tortura tupiniquim numa sala qualquer da Polícia Federal para em seguida ganhar as capas dos jornais como “A BICHA ESTELIONATÁRIA QUE SE MATOU NA PRISÃO DEPOIS DE ENFORCAR-SE COM SUA CUECA CALVIN KLEIN”. De qualquer modo, não é torturado que me imagino morto [nem me imagino morto e vestindo uma cueca Calvin Klein].
Triplo mortal de costas com fio-dental. Exige treino, concentração, obstinação, foco, tanto quanto os antigos samurais eram disciplinados pelos seus mestres [vide Kill Bill 2, a própria interpretação do Retorno de Saturno]. O problema é que não sou samurai, sou um cigano com desvio de déficit de atenção que está em tratamento com ritalina e lorazepam. Nômade, meu pensamento e meu corpo creem que o pior labirinto é a linha reta [maldito filósofo francês que me ensinou isso!]. Eu quero, eu desejo, eu acho que consigo. Mas sinto que fracassaria, sinto que não teria paciência, não teria força. Ou melhor, sei que tenho a força [momento He-Man, aquela Barbie loira passiva que confundiu tudo na minha cabecinha], mas acho que minha força iria se dissipar, iria encontrar curvas, iria se desprender, porque minha força raramente encontra alvo fixo e sempre vai-e-vem aos turbilhões, atirando para todos os lados sem acertar em nada exatamente, sem rasgar nenhuma jugular. Só arranha algumas veias periféricas. Minha força não é mortal; ela pode matar, mas é demasiado pulverizada para fazer morrer. Mas seria maravilhoso poder terminar de costas para o público, depois de desenhar no ar três círculos com minhas pernas e meus braços; de costas para o público que acha que é loucura largar de tudo para reaparecer num outro ponto da espiral; de costas para o público e mostrando minha bunda branca/flácida de desprezo a todos os mal-comidos, brochas, paus-pequenos, ejaculadores precoces, frígidas, recalcados de todos os gêneros, conservadoras carolas e moralistas. Seus olhares de raiva sobre mim são um verniz de orgulho. Porque eu teria esnobado suas expectativas, teria desdenhado de seus planos para mim e teria cravado meus pés no solo depois do triplo mortal com fio-dental que alguns achariam ridículo e infame, outros achariam justo para com eles próprios [menos concorrência para a vaga de Professor Estúpido nível 1], outros chorariam e se perguntariam, rasgando suas roupas, “por quê, meu deus, por quê?”. E eu extasiado, simplesmente por ter conseguido vestir o fio-dental e dar três giros no ar, sem saber se no chão eu pousaria com sucesso. Esse público perverso deixaria que eu morresse sozinho, no meu apartamento próprio de 1 quarto em Petrópolis, encontrado dias depois de fazer-a-passagem porque os vizinhos chamariam os bombeiros devido ao mau cheiro da carne em avançado estado de decomposição [será no ápice do verão úmido de Porto Alegre que vou deixar este mundo, porque ninguém merece o verão, e minha morte será a mais profunda manifestação de desgosto por esta estação do ano], estendido em frente à porta de entrada [os bombeiros teriam dificuldades em abri-la porque meu corpo a emperraria], com o braço direito alongado e o dedo indicador sobre o número 9 do telefone [“coitada desta bicha”, diriam alguns bombeiros gostosões, “ainda tentou discar 192 para pedir ajuda, mas não conseguiu”. É, bofe, mas antes disso consegui trepar com o michê e me dar conta que ele já ia me dando um boa-noite-cinderela, coloquei o michê pra correr com uma faca de cortar carne, dei um talho no rosto dele, ainda voltei pra casa, escrevi duas cartas de adeus pra dois amigos queridos {aqueles que talvez não tenham me apoiado em todas as minhas decisões, mas que sempre confiaram na possibilidade de eu arcar com as consequências delas}, tomei um banho, passei uma base no rosto, pus meus cílios postiços, meu perfume Bvlgari e só então que eu decidi ligar pra SAMU pra pedir ajuda. Se não fiz antes foi porque eu simplesmente NÃO QUIS, bonita.]... É... Assim eu me imagino morto.

Qual meu lugar aqui?

Os corpos não pedem “com licença” nem dizem “muito obrigado”: eles somente circulam, se movem pelo asfalto ou se sentam nas cadeiras dos quiosques. Mas há entre eles alguns jogos mais intensos, mais crus, que os colocam em permanentes encruzilhadas ou negociações: um deles é o jogo entre o nu e o vestido; outro é o jogo entre o seco e o molhado; também existe o jogo da luz e da sombra; e há ainda o jogo complexo do olhar e do ser visto, o regime de dispersão dos olhares, que obedece a uma série de coações e regras imbricadas entre o nu e o vestido, a luz e a sombra e o seco e o molhado... Eu poderia seguir expondo mais e mais jogos que observei ali: o jogo entre a velhice e a juventude, o jogo entre o rico e o pobre, o jogo entre o móvel e o estático, o jogo entre os homens e as mulheres... É que nossa história ocidental, pelo menos desde Platão, seguiu firme na construção de pares dicotômicos de pólos interdependentes. Num método de divisão de visava à pureza das representações e à busca da verdade, tudo no mundo foi constantemente submetido a classificações mais ou menos rigorosas que criaram buracos-negros opostos, porém interligados. Os binarismos foram úteis na história das ideias porque essencializam as verdades do mundo, donde se torna mais fácil, pelo menos para as mentes menos argutas, apreender o saber das coisas e ter poder sobre elas. Pelo menos deste o Século das Luzes cada vez mais investimos em pares binários para compreender e produzir o mundo em que vivemos. E vemos isso no chão do calçadão: há pedras brancas e pedras negras, intercaladas, formando curvas contínuas do Morro do Leme ao Forte de Copacabana, opondo-se mutuamente por mais de seis quilômetros – muitas e muitas vezes vi crianças brincando de correr somente sobre as pedras brancas ou somente sobre as pedras negras, disputando pra ver quem chegava primeiro no final do caminho. E essa imagem, de duas crianças colocadas em cada um dos dois tipos distintos e opostos de pedra disputando uma vitória ingênua, é exatamente essa imagem de frivolidade que perpassa a construção dos binarismos, dos pares dicotômicos. Porque nossa existência nunca esteve nos pólos extremos, mas sempre nos interstícios, no meio-do-caminho entre eles; seus significados sempre estão em disputa lá onde eles borram suas fronteias, e isso se dá exatamente na sua interdependência, no seu meio-termo, no entre-lugar que os binarismos criam, dos quais as dicotomias dependem pra existir. Exatamente porque os interstícios dos binarismos lhes são constitutivos, é na profunda interrelação de dois pólos opostos que está sua ruína. Desvelar, apontar, sublinhar, fazer crescer até implodir o entre-lugar que constitui a série de binarismos que recém descrevi é um modo de desconstruí-los. E é essa a intenção político-teórico-metodológica do uso da palavra “jogo”. O jogo entre os pólos de uma dicotomia é o movimento de seus significados, é a mediação da significação dada aos extremos do par. O jogo entre eles precisa ser narrado, seus deslizes, o ponto-cego onde o jogo das significações já não pode mais operar precisa ser construído. O jogo sutil das relações que instituem lugares para os sujeitos e para os corpos, o jogo dos princípios de inteligibilidade das palavras, das coisas, dos corpos e das subjetividades: é no jogo, estratégico ou não, sempre acontecendo mediante uma certa distribuição peculiar de coações, em que pretendo encontrar meios de desestabilizar os binarismos. Por “jogo” não conoto um vale-tudo onde nenhuma regra regula; nos “jogos” pretendo fazer ressaltar o conjunto coercitivo de permissões e proibições mais ou menos pesadas que balizam a relação entre os dois pólos de uma dicotomia.

(... CONTINUA ...)

Qual meu lugar aqui?

Preâmbulo:
Chego e imediatamente sei que estou aqui: um feixe denso de rostos que só essa cidade tem me abraça. É o calor úmido e o vento constante que, graças ao mar, fazem a maresia atravessar a metrópole; são os cheiros intensos de mijo seco, de creolina, da descarga dos automóveis, novamente da maresia, do lixo esquecido nas lixeiras, das poças d’água, paradas e negras, que ainda não estão secas; são os longos asfaltos quentes, curvos, que sobem e descem e atravessam uma série de morros em túneis confeccionados para ligar as zonas sul às zonas oeste, zonas que não são tão sul nem são tão oeste na rosa-dos-ventos; os Dois Irmãos gêmeos que caminham de sunga pela praia; os Pães de Açúcar desmancham nas centenas de padarias e confeitarias de cada esquina. Atravessando a ponte para o outro lado da baía dou-me conta de que o Cristo está de braços abertos somente sobre a Guanabara: há todo um mundo e submundo que escapam ao seu olhar cego; há toda uma massa de gente que não está sob a guarida de seu manto.

O calçadão e seus jogos:
O único lugar gratuito era o calçadão de Copacabana. Se eu não estivesse passando por uma grave crise financeira pessoal, talvez eu não frequentasse com tanta insistência essa parte do bairro. Provavelmente eu estaria sentado dentro de um shopping, de arquitetura homogênea, com lojas repetitivas, com ar-condicionado potente, com praças de alimentação óbvias: o capitalismo exige uma identidade espacial e uma abstração temporal nos shopping centers, de modo que eles a) nos ofereçam a sensação de “estarmos em casa” ou a certeza de entrar em qualquer um deles e sentirmo-nos seguros por saber como funcionam e como se distribuem, e b) nos suspendam do relógio e da sensação da passagem do tempo – nenhum shopping center tem relógios visíveis e múltiplos no seu interior; suas luzes internas são eficientes e suas janelas opacas o bastante para que o movimento do sol, lá fora, não seja percebido lá dentro. Mas é igualmente provável que tenha sido ótimo que o dinheiro, ou a falta dele, tenha me privado desta massificação capitalista. Havia um shopping bastante perto de onde eu morava, mas os poucos metros que o separavam do calçadão na faixa de areia revelavam um continuum que vai do terror da identidade (o shopping) à ferocidade da diferença (o calçadão). Porque o que encontrei nas minhas repetidas idas ao calçadão de Copacabana foi uma distribuição peculiar de permissividades, um rico regime de dispersão de olhares e coexistências pulsantes de corpos. Explico.

O calçadão não é uma calçada grande. O calçadão é feito de pedras quebradas, brancas e pretas, matematicamente posicionadas em curvas que imitam o movimento das ondas. O calçadão tem bares, bebidas, comidas, cocos, coqueiros, areia e asfalto. O calçadão também conta um uma pista de mão dupla especialmente feita para corredores e ciclistas. O calçadão se estende por cerca de seis quilômetros entre um morro e um forte. O calçadão abriga dois bairros: Leme e Copacabana. O calçadão não é limite, fronteira, nem aduana entre a areia e o asfalto: o calçadão é todo passagem, é um lugar para o trânsito, é o próprio trânsito, é o nomadismo, é o deslize, é o movimento nele próprio, é a espiral que não tem fim nem na areia nem no asfalto. O calçadão é rizoma. Entro por ele em quaisquer de suas entradas, e ele me garante múltiplas saídas, sempre. Porque ali o passo pode ser lento e rápido, e pode inclusive nem haver passo – há muitas cadeiras de roda e muletas. Os corpos não pedem “com licença” nem dizem “muito obrigado”: eles somente circulam, se movem pelo asfalto ou se sentam nas cadeiras dos quiosques. Mas há entre eles alguns jogos mais intensos, mais crus, que os colocam em permanentes encruzilhadas ou negociações: um deles é o jogo entre o nu e o vestido; outro é o jogo entre o seco e o molhado; também existe o jogo da luz e da sombra; e há ainda o jogo complexo dos olhares, o regime de dispersão dos olhares, que obedece a uma série de coações e regras imbricadas entre o nu e o vestido, a luz e a sombra e o seco e o molhado. Pois o jogo entre o seco e o molhado corresponde ao suor do corpo, fruto do exercício, da corrida, das flexões, ou do recém mergulho no mar, e também da chegada à praia, da chegada para a caminhada ou para a corrida, da chegada para o café, para o chopp ou para a cerveja: os corpos estão sempre num fluxo contínuo entre o sol reluzente que seca as gotas da água salgada do mar e, ao mesmo tempo, produz as outras gotas salgadas do suor; entre os goles de água, água de coco, cerveja, chopp e caipirinhas e os beijos estalados; há uma entrada seca para o corpo, que se prepara um molhado (do mergulho no mar ou do suor do exercício), e que em seguida se seca para a saída do rizoma. O calçadão é também feito de gotas, e de processos de secura. No mês de abril de 2010 foram colocadas novas plataformas de barras de inox reluzentes, cuja finalidade é servir de apoio para a contração de músculos, e que também atendem à urgência da homossociabilidade: entre as 17 e as 22 horas de cada dia de sol, são sobretudo grupos de três, quatro, cinco e até seis homens descamisados, às vezes de calção e às vezes de sunga, que param nessas plataformas para observarem uns aos outros, e também para se fazerem observados, durante sua sequência performática de movimentos corpóreos. No jogo entre o seco e o molhado, tais plataformas se constituem em poças de suor dentro deste nomadismo do calçadão.

(... CONTINUA ...)

"Uma pessoa intelectualmente ruminante"

- Que tal um Jogo rápido? Te digo uma palavra e vamos fazendo associações.

- Não sou muito afeito a jogos rápidos, sou uma pessoa intelectualmente ruminante. Mas aceito, a título desafio.

- Azul...

- Azul calcinha, azul pastel. Nunca muito forte.

- Perda...

- Infância, fui uma criança perdida.

- Infância...

- Morte. Dando significação à perda estava a morte.

- Família...

- Moldura grossa e velha.

- Conteúdo...

- Tempo. Também poderia dizer “paciência”, mas prefiro tempo.

- E paciência?

- Só com conteúdo!

- Sexo...

- Exercício diário.

- Trepar todo o dia?

- Sim, todo o dia um pouquinho: através do olhar, da imaginação, das palavras, das imagens e do silêncio.

- Dinheiro...

- Descontrole.

- Álcool...

- Descontrole! (gargalhadas) Minha relação com o álcool é a mesma que tenho com o dinheiro. De destempero, de excesso, de uso e abuso. Ambos, se existem, não param na minha mão nem na minha boca.

- Beleza...

- (silêncio) Tempo e paciência.

- E conteúdo também?

- Não necessariamente. Só tempo e paciência pra poder sentí-la.

- Sentí-la?

- Sim. Não vejo muita beleza, eu mais sinto beleza.

- E sentes recentemente?

- Mais do que eu sentia no passado, menos do que sentirei amanhã - não é isso que dizem os romances de autoajuda? Ela cresce voluntariosamente, explode onde eu julgava árido.

- Em que pessoas?

- Não em pessoas, pelo menos não ultimamente. As pessoas têm se mostrado feias. Sinto beleza em sons e paisagens, menos em pessoas.

- Por quê?

- Porque sinto pessoas muito iguais umas às outras. Não sinto beleza na identidade.

Não é mais fácil lidar com um vibrador que com um homem “inteiro”?

- E há dor nessa experiência?

- Há dor em toda a experiência, inclusive nessa. Tenho me empenhado na tentativa de estilhaçar o corpo. Porque sei que ele não funciona mais como um estado geral, como uma gestalt. Não há mais as partes que, se somadas, excedem o todo. O que há agora são partes, e as partes dizem de si próprias. Ainda não conseguimos ir a fundo pra escavar as ligações, as bases, as condições e as verdades que contribuem pra essa repartição do corpo. Mas sabemos que estamos recortados, separados da nossa integralidade. Não que essa integralidade tenha existido em algum lugar do passado... Mas sugerimos que há algo de utilitarista na relação do corpo com suas partes separadas. Não é mais fácil lidar com um vibrador que com um homem “inteiro”? Não é mais fácil lidar com uma vagina de plástico que com uma mulher “total”? Esses são apenas alguns toscos exemplos de como é preferível reduzir e simplificar a aumentar e complexificar. Porque sabemos que a redução do corpo de “homem” ao pênis não é tão simples – um homem não se resume ao seu pênis; no entanto parece ser tudo aquilo que o define, e assim também funciona para a mulher. Mas é óbvio que não é só essa característica corpórea de nos define e nos fixa, até porque a definição e fixação do que é um pênis ou um clitóris não parece tão clara. Há outras definições que nos são importantes, há outras medidas que nos fixam, e que junto com o gênero vão nos fazendo ser quem somos. Se eu pudesse estender a mão e pegar em todos os homens que excitam, eu não estaria aqui te dando este entrevista. E eu não posso. O corpo vai se comunicando com outros corpos, e alguns deles são colocados como impossíveis dentro do possível – porque todo corpo que existe em sua materialidade é possível –, e daí se forma essa gosma pegajosa que se insinua pelo ventre e pelo peito. O suor também desempenha seu papel aglutinador nesses casos. E nós ficamos sem nenhuma “aderência” a esses status. Porque nosso corpo se comunica – troca informações, permuta e comuta – não pelo peito nem pelo abdome, mas pelo rosto e pelos olhos, ás vezes pelas pernas. Sempre pelos cabelos.

- E tem tido sucesso?

- Não (risos).

- Isso não te dói?

- Doía há um tempo atrás. Hoje parece mais uma condição. Porque quando fiz 25 muita coisa pareceu mudar nessa concretude que é meu corpo: pelos começaram a nascer no nariz – na sua superfície e dentro das narinas, se confundindo com a barba – pelos começaram a nascer nas orelhas. Quando fiz 26 minha barriga começou a exceder minhas calças. Com 27 eu quis morrer, e com 28 eu me sabia uma bosta. Com trinta vi alguma luz possível, mas com 33 nem a cruz me salvou. O tempo não cura, o tempo agrava. E vamos nos insinuando pra ele, com dor e com delícia, esperando um arrego: toma uma brochada na cara! Toma uma miopia! Uma calvície! Uma gordura, uma sinusite! Porque isso é o tempo correndo pelo corpo, mas também é a história marcando o corpo. Porque nosso corpo diz da nossa história. Está tudo gravado ali. Há uma delícia na superfície das minhas mãos que não sei bem como descrever... Talvez seja essa a experiência mais gratificante: a de me perceber envelhecendo e me saber melhor que quando mais novo. De sentir minhas mãos ásperas onde antes reinava a ingenuidade.

"Não nos importamos nenhum pouco em sermos confundidos com aqueles que nos atropelaram de tal maneira tão intensa"

- Eu não sabia que tua avó tinha sido alguém tão importante pra ti.

- Mas eu não disse que minha avó foi importante pra mim. Apenas sublinhei que quando eu era criança, por causa da chuva que caía, ficava temeroso que sua casa viesse a baixo. Havia, sim, uma certa compaixão pela fragilidade daquela senhora idosa. Mas nunca disse que ela foi importante pra mim.

- Então ela foi apenas uma metáfora de fragilidade?

- Pode ser que sim. Nosso pai, filho dela, também nos foi uma metáfora de fragilidade, mas a seu modo específico. Mas não queremos manter as nossas lembranças nessa polaridade entre profundeza e superficialidade, dividindo aqueles que foram de fato importantes daqueles que funcionaram apenas como metáforas para a experimentação e sedimentação de alguns sentimentos. Há na nossa história uma série de experiências com pessoas tão distintas que não podem ser classificadas em categorias separadas e hierárquicas; não podemos classificar hierarquicamente essas experiências nem essas pessoas. Mas de um modo geral fazemos uma distinção sutil entre elas, mais a título de precaução e de segurança do que propriamente de hierarquização: houve e haverá aquelas com as quais simpatizamos, com cujos corpos ou palavras nós flertamos, pessoas mais ou menos admiráveis e que se mantêm num estado de reserva discreta nas nossas lembranças. Houve e haverá outras, um pouco mais sagazes, que de fato nos conquistam: nos tomam num átimo ou lentamente, nos cativam em velocidades diferentes, em tempos diferentes, vão nos entendendo e nos analisando, dialogando conosco, eventualmente propondo cortes e mudanças naquilo que somos. As pessoas que nos conquistam introduzem essa força diferencial, esse processo de diferir, mas ainda assim não borram a fronteira entre o ‘eu’ e o ‘outro’. Mas aí houve e haverá aquelas pessoas que nos rasgam, que se jogam contra nós como cavalos se lançam contra uma falésia, ou mais que isso, como asteróides que colidem contra planetas; são pessoas que não pedem licença, que nos arrombam – às vezes no sentido literal da expressão – que se chocam contra aquilo que nós somos com uma violência tamanha, empurradas por forças que são às vezes as mesmas que nos fazem estar em sua rota de colisão, ou que às vezes nos fazem delas fugir, forças que nos fazem por elas transpassar e entrecuzar. Essas pessoas são aquelas que, de fato, nos constituem: a força do nosso encontro, violento ou não, faz com que nos amalgamemos, faz com que se imploda a diferença entre o que era ‘eu’ e o que era ‘o outro’, que por sedimentação, choque, rasgo, integração ou assimilação fazem com que os limites definidores do ‘eu’ sejam suspensos. E passamos, então, a fazer parte destas pessoas às vezes tanto quanto elas fazem parte nos nós, sem que uma distinção essencial entre o ‘eu’ e ‘o outro’ seja necessária – isso porque não nos importamos nenhum pouco em sermos confundidos com aqueles que nos atropelaram de tal maneira tão intensa.

- E por que essa distinção serviria como precaução ou por motivo de segurança?

- Porque é destas últimas que nossas lembranças serão pra sempre povoadas. Porque estas últimas serão, provavelmente, aquelas cujos nomes vamos sussurrar segundos antes da morte, pois de alguma forma elas estarão ali morrendo um pouco junto conosco. Porque essas últimas são aquelas que num intervalo mínimo de tempo, com o carro parado na sinaleira, esperando na fila do caixa do supermercado, mijando no banheiro, são elas que vão emergir das brechas do nosso ‘eu’ e então diremos: "lembrei dele" ou "lembrei dela".

- E isso é tão ruim para que tenhamos que nos proteger dessas pessoas?

- Não sei se é ruim, mas certamente é perigoso.

"Só a chuva faz isso por mim"

- Mas e a chuva? A chuva não era algo que te fazia bem? Pensei ter lido isso em algum artigo seu publicado numa dessas revistas menos criteriosas, de nível reflexivo mais rasteiro...

- (risos) Sim, é verdade. Publicamos muitas ideias nessas revistas mais baixas, que rastejam lá onde o lugar comum reina, ou pelo menos onde elas margeiam o trivial. Nunca nos incomodamos, nem eu, nem ela, nem eles, de pensar junto com o comum. É que pensar comum, pensar sem requintes, pensar linearmente nos dava a doce sensação de não ter te arcar com a responsabilidade dos rococós filosóficos que levam alguns a abraçar cavalos. Abraçando cavalos seremos notáveis? Abraçando cavalos seremos dignos de publicações mais elevadas, hosana nas alturas, dos l'enseignement supérieur? Sobre a chuva fizemos algumas reflexões, sempre muito secas – pra não perder o trocadilho –, nunca muito profundas. Nossa questão nunca foi a chuva em si, mas a água e a maneira como que ela se manifesta. Sempre detestamos água: mar, rio, chuveiro, cachoeira, lago, banheira, balde, ribeirão, torneira. Consideramos a água traiçoeira. Mas a chuva em especial era algo que experimentávamos com o fervor do romantismo. A chuva sempre nos aparecia com camisas molhadas, transparentes, grudadas ao corpo e com gravatas encharcadas, com cabelos encaracolados pingando água sobre a barba rala. Nunca experimentamos com a chuva qualquer tipo de privação: toque de recolher ou estado de emergência. Acredito que tu estejas te referindo a uma outra chuva, que não tem a ver com água nem com umidade, mas que é igualmente traiçoeira: chuva de críticas, chuva de desaprovação, chuva de incompetência, chuva de insuficiência, chuva de não. Bem... essa chuva nunca nos fez bem, mas sempre nos catapultou para um outro patamar na espiral. Com uns ferimentos no ego aqui e ali, mas nunca nos acomodamos, nunca permanecemos inertes com essa chuva. Porque desde sempre essa chuva de incompetência nos desabrigou, nos soterrou, nos desalojou. Nunca voltamos pro mesmo ponto onde habitávamos depois que ela passou por nós. E, de fato, mesmo não sendo úmida, ela nos afogou muitas vezes. Mas acredito que lá nesse artigo que tu leste, nessa revista menos criteriosa, margeamos um pouco a ideia de que o que subjaz na nossa existência enquanto autores e autoras que somos é desde sempre uma profunda inconformidade com o que já está e um sincero desejo de multiplicar o que virá. Nenhuma novidade até aí. Mas é que me lembrei de quando eu era criança, de quando caíam tempestades tremendas lá na cidade onde nasci, eu ficava ansioso olhando pelo vidro da porta dos fundos e velando a casa onde morava minha avó. Porque era uma casa de madeira que ficava no terreno contíguo ao nosso, e lembrei que de lá onde eu zelava pela casa da minha avó eu pedia pra que a chuva não derrubasse a casa onde ela morava. Supunha a chuva forte e a casa da minha avó, frágil. Porque já desde essa época nós sabíamos que a chuva, qualquer que seja, nunca deixa as coisas onde se encontram, nenhum macaco permanecia em seu galho, nenhum morro mantinha-se intacto, nenhuma vida era poupada. E com chuva também eu me dei por conta de que esse ou aquele não poderia mais seguir sendo meu companheiro; assim como eu tinha sabido, não sem dor, que a chuva tinha a potência de arrastar a casa da minha avó, eu também sabia que quando eu chorasse – que quando eu chovesse – por causa de algum deles, quaisquer deles estavam fadados a soterrarem-se em mim, a desalojarem-se. Se havia chuva em mim, havia desabrigo – de algum deles talvez, mas certamente de mim mesmo. Minha concepção de masculinidade inclui, isso se já não supõe desde sua matriz, uma certa feiúra. Aqueles homens que não se tornam feios ao longo do tempo não têm condições de permanecerem ao meu lado sem que sejam deslizados do alto de seus morros. Minha concepção de corpo pede, isso se já não exige como pré-requisito, uma certa dimensão de fragilidade. Aqueles homens que nunca adoecem ou que jamais se machucam estão fadados a serem abandonados como carros enguiçados pela lama em ruas inundadas. Só a chuva faz isso por mim: me cinde, me incorforma e termina, mais tempo ou menos tempo, por me multiplicar. Talvez nessa revista menos criteriosa esteja publicada essa simples confissão.

"Um teatro de fantoches"

- (silêncio) E tu ou vocês não se sentem acuados como cães frágeis? Se aqui não adianta latir, se aqui há de morder além de latir, como tu ou vocês fazem pra lidar com a perda e com a omissão?

- Não nos concebemos exatamente como cães frágeis. Frágeis sim, mas talvez não como cães. Há uma humanidade mais refinada em mim. É dessa humanidade mais refinada que vem o latido, o ranger de dentes e a mordida. Mas também ela não se reduz a isso. Porque o latido, o ranger de dentes e a mordida estão diretamente ligados à proteção: fazemos sofrer para nos defender. O sofrimento é uma boa blindagem. Mas por mais refinada que seja essa humanidade protetiva, de vocação defensiva, que tem a capacidade de refletir sobre seu sofrimento e infligi-lo ao outro como modo de defesa, por mais que ela seja um pouco mais rebuscada, ela ainda não dá conta de explicar outras realidades ligadas, como tu bem colocas, à perda e à omissão. Das duas, na minha opinião, a mais grave é a omissão. Entretanto, deixaremos claro que omissão não é simplesmente a ocultação da verdade. Também pode ser isso, mas essa é a faceta rude e áspera da omissão. Acusar o outro de faltar com a verdade, de esconder a verdade, de ocultar a verdade por detrás de cortinas grossas que invariavelmente se ligam à mentira, tudo isso é de significado pertinente, porém rasteiro. Tampouco a omissão da qual falo aqui mantém laços estreitos com a falsidade; alguém omisso pode ser falso, mas também pode não ser. Alguém omisso pode ser frágil. Consideramos a omissão mais grave que a perda porque sentimos na omissão uma profunda cumplicidade com o medo, com o desespero, com a sombra. O não-dito é tão interessante quanto o prolixo. E voltamos novamente ao assunto do medo! (risos). É bem verdade quando tu dizes: “vais continuar nesse relacionamento moribundo? Porque ele está morrendo!”. Com que eficiência fomos capazes de criar um labirinto móvel de sinceridades, meias-verdades e omissões... De todo modo, estamos aí dentro. Eu me importaria menos com os desejos da carne saciados de modo canino, típico animal do cio, se eles fossem tratados como tal desde a gênese disso que erigimos para nós. Se eu apostaria ou não numa relação como essa, aí a questão é de outra ordem. Eu não me importaria em agir como uma cadela e ser tratado como uma. O que detesto é agir como eu mesmo e ser tratado como um cão frágil. Porque, como já mencionei, não sou um cão. Talvez cadela, talvez cadela frágil, talvez cadela frágil no cio, mas não um cão. O que realmente me apavora é ver o tempo suceder, incrustando com suas goivas afiadas sulcos na pele ao redor dos meus olhos, ver o fluxo do tempo confundir o espaço e borrá-lo como aquarela, ver o próprio espaço revigorando-se e tornando-se mais robusto, mais transparente e também mais sólido... E eu parado aqui pensando ser eu quando na verdade ele me pensa e me sente como um cão frágil. Quando dizemos que não adianta latir, há de morder, dizemos isso pra ele: latir em sua direção, mordê-lo! Com que assombro às vezes me pego repassando diversas cenas pelas quais passamos juntos e só então conseguindo ler na entrelinha de um olhar, de uma contração dos lábios, um sentimento denso e profundo de total cumplicidade que não está direcionado para mim. Com que desespero reconstituo frases, com seus substantivos robustos, e interpreto um texto que não foi escrito para mim nem por mim, cuja plateia ocupa apenas uma poltrona, cujas palmas ecoam vindas do passado – do passado dele, e não do meu. Ah, dou-me conta: é um teatro de fantoches.

"Sempre há lugar pra algum tipo de rancor pra quem tem uma boa memória"

- E ainda há algum tipo de rancor?

- Sempre há lugar pra algum tipo de rancor pra quem tem uma boa memória. Mas pensamos que não seja esse o assunto que devemos tratar com essa pergunta. Somos, eu e eles, eu e elas, surpreendidos com novas notícias de edições passadas do seu jornal. Nos surpreende, devemos admitir, que tu estejas aí parado na nossa frente fazendo as perguntas que fazes depois de tudo que viveste. Nós não sobreviveríamos depois de ter experimentado tanto luxo para em seguida cair na maloca do esquecimento e da autoajuda. Porque nesses casos a autoajuda de fato ajuda. Demorou, não é? Pra nós demoraria mais. Ficamos surpreendidos por não existir mais rancor, mais mágoa, mais desencantamento da tua parte. Por que nos lança essa pergunta? Tentas achar em nós uma resposta pra tua dor? De qualquer forma, podemos dizer que sim, existe rancor e mágoa. Mas fazemos deles trampolins para o sucesso. E tu, foste de onde pra onde depois do rancor? Veja que estamos te pondo contra a parede. É chegada a hora dos entrevistados quererem saber mais do entrevistador. Porque há rastros no teu olhar, momentos de deslizamento e de escorregões, em que percebemos claramente que te prendes de corpo & alma a tudo isso do qual hoje falas com boca cheia, cheia de detalhes e de sutilezas, com um certo galanteio, fazendo-se gabar de estar estado lá, de ter dormido lá, de ter sido a governanta da casa. Te perguntamos: há algum tipo de rancor? Porque se não há, deveria haver! Pela tua saúde! É impossível que não haja um sabor grotesco, bitter, ao se ver substituído. Porque os substitutos fizeram bem o teu papel, e até melhor! Não há rancor criando rugas no teu pescoço, ou mágoas se acumulando em torno do teu umbigo, um pouco acima das tuas cristas ilíacas? O corpo é o cartório da mágoa. Veja teus pares: pra onde foram? Qualquer lugar que chegaram, chegaram juntos. E vocês chegaram separados. Não há rancor em estar assim, jogado ao mundo, chegando à velhice sem ter por quem chamar? É triste teu futuro, sem ter uma campainha para apertar nem uma lágrima para ser secada. Vais segurar na mão de quem quando o desespero da carne arruinar o viço das tuas pernas? Porque ele tem toda segurança, e tu não tens ninguém. Vais morrer num corredor, sem parentes. E teu corpo sequer será enterrado: será usado como caderno de rascunhos por estudantes de medicina. Ele terá uma lápide, uma urna funerária, e tu terás um tanque de formol. Isso não causa mágoa? Ele deleita-se com o sol perto da água, e tu tens que contar as moedas para uma sunga? Não há mágoa na pobreza depois de ter experimentado o luxo?, volto a perguntar. O que ainda queres preservando isso tudo? O que te garante as lembranças de um tempo tão doce? Responda às perguntas somente se te convier. Afinal de contas, somos nós os entrevistados.

- (silêncio). As lembranças se devem ao cuidado que ele teve comigo.

- E vai ser ele a trocar tuas fraldas quando estiveres no hospital? O passado só te garante um futuro solitário. Não há admiração, querido. Não há carinho, nem respeito. Há somente pena, compaixão. (silêncio). Muita compaixão, a julgar pelo teu olhar baixo. (silêncio). Jamais vamos nos acostumar com tua pequenez.

"Somos eficientes em produzir péssimas realidades para nossos relacionamentos"

- Sem chance de ter mais vida nessa relação?

- Com chances, com muitas chances. Não é disso que somos feitos? De chances, de possibilidades, de bifurcações em potencial? Frequentemente vejo homens sentados em bancos do parque, à espreita de um corpo que se movimente entre as árvores de modo suspeito e sugestivo. Também vejo homens caminhando sem camisa já quando o sol não brilha mais, e ainda sim há uma certa luz do cair do dia iluminando a cidade. É um horário estratégico, muito mais estratégico que o breu da madrugada. Nada disso tem mais efeito do que o olhar que eles lançam. Há algo ali, naqueles olhares, não exatamente o sinal de uma busca e de uma procura, mas algo mais positivo, algo que produz. Um olhar que produz situações. Não tem nada dessa história de quebra-cabeças, da minha peça em que falta uma parte e da tua peça que tem outra parte de sobra e ambas se encaixam perfeitamente, não metade da laranja nem tampa de panela. Não há um olhar que busca e outro que é buscado. Não há algo em mim que penetre num espaço vazio do outro. Não há encaixe harmonioso que forme uma peça perfeita. Há uma produção lá onde eu atuo, onde meu olhar desliza. Lá naquele corpo, vários desejos – que pode ser meu desejo, ou desejo do outro sobre mim. Lá naquela boca, várias palavras – que podem fazer sentido pra mim ou sequer me afetarem. Lá naquela história, várias lembranças. E nisso não há quebra-cabeças, volto a insistir nisso. Porque na ideia de quebra-cabeças sempre subsiste a noção de incompletude, de falta, de negação. De algo que me faz incompleto, de algo que o outro tem e que me preenche lá onde antes eu era vazio, lá onde antes era o nó da minha depressão. Na história dele ou dela, não há situações ou lembranças que me preenchem, que se encaixam no meu quebra-cabeças onde antes havia um vazio. Não me aproprio da história dele ou dela para fazer disso a minha própria história ou, pior ainda, a história de nós dois. Acontece que a minha história com a sua história – o meu corpo com seu corpo, minhas palavras com as tuas – se encontram e se multiplicam: produzem algo novo, inesperado, produzem uma realidade na qual acreditamos ser, abre aspas, o nosso relacionamento, fecha aspas. Quando um relacionamento chega ao fim é porque sua potencial capacidade de multiplicar realidades também acabou. Mas esse é o jeito menos comum de uma relação terminar. A maneira mais usual, que mais vemos acontecer por aí, é quando a potencial capacidade de um relacionamento multiplicar realidades se transforma numa fábrica incansável de sofrimento, de cobranças, de medos e de fantasmas. Continua multiplicando, continua bifurcando, espumando, pressurizando, borbulhando, fervendo: de raiva, de insegurança, de ciúmes, de rancor e de mágoas. Somos eficientes em produzir péssimas realidades para nossos relacionamentos.

"suicidamo-nos quando damos uma opinião e assinamos abaixo"

- Há algo mais que tu ou que vocês gostariam de falar sobre o medo?

- Poderíamos fazer teses sobre o medo. Na verdade, há um livro que chama A história do medo no Ocidente, que é uma referência. Mas de um modo bem geral, geral mesmo, sendo até mesquinhos em reduzir o assunto a esse espectro, podemos que dizer que o medo é esse vácuo escuro que trepida nos nossos interstícios. O medo, os medos, é uma eletricidade que produz tensão. Ou não: pode ser um gelo seco, o silêncio da mente. É inútil tentar achar uma identidade para o medo, justamente porque é próprio do medo não poder ser reconhecido em uma definição só. (silêncio). Sinto medo ao pensar que alguém pode ler isto tudo que estou falando pra ti agora, e sinto mais medo ainda ao pensar que isso tudo não interessa a ninguém (risos). Medo é isso: tentar achar uma saída e continuar preso no mesmo lugar. Sentimos medo da separação, da exclusão, do ciúme, da inveja, da morte: morremos quando damos uma opinião; suicidamo-nos quando damos uma opinião e assinamos abaixo. Tu me deixarias se tu pudesses? Claro que sim, e claro que não! Nós valemos a pena! (gargalhadas). Não há como prever o fim de nós dois. A imprevisibilidade, a impossibilidade de controlar o futuro, é a maloca do medo.

"E eu não senti nada"

- Tu achas que vais conseguir lidar com o fim desse relacionamento de maneira fria?

- Talvez sim. Houve um tempo em que trabalhei como bombeiro. E no período em que trabalhei como bombeiro, houve uma enchente bastante grande pelas cidades do interior. Numa dessas cidades, o rio que cortava o município transbordou cerca de quinze metros. Foi realmente horrível. As águas eram turvas, cor marrom, como esses achocolatados que são vendidos nos supermercados. Tivemos que resgatar as pessoas ilhadas, presas em suas casas. Uma comunidade ribeirinha foi quase que totalmente apagada do mapa: cerca de vinte pessoas morreram nesta enchente. E tivemos que resgatar os corpos já sem vida de pessoas afogadas. Resgatamos quase todos os cadáveres em menos de quarenta e oito horas depois de as buscas começarem. Mas só faltou um corpo, de um homem de quarenta e dois anos. Não conseguíamos encontrar seu corpo em nenhum lugar. Levamos cinco dias para encontrá-lo, e à medida que as horas passavam eu ficava mais e mais nervoso, atordoado com o fato de que o corpo estava na água, na água marrom e turva, e que seu processo de decomposição se acelerava em progressão geométrica a cada instante. Cada água não revirada, cada árvore não observada, cada busca mal sucedida era um peso a mais nos meus ombros, porque depois das chuvas intensas o sol brilhou com força e veio um calor insuportável, úmido. Eu tinha medo de encontrar aquele corpo, e era o único que nos faltava (silêncio). Até que o encontramos. Avançadíssimo seu estado de apodrecimento, irreconhecível até para o legista. E eu não senti nada. Não havia mais nada ali, só um monte de vermes uns sobre os outros. Só pude identificar os olhos esbugalhados entre as carnes em decomposição. A expressão dos olhos dos cadáveres é o que de mais aterrador e definitivo eles podem nos legar sobre a vida após a morte: um túnel no vácuo. Toda essa história para dizer que nossa relação, depois de seu fim, terá tanta expressão quanto a dos olhos do cadáver que resgatei naquela enchente.

"Um movimento constante que tangencia o rígido e o fixo, desmontando-os"

- Então é por isso que ainda estão juntos? Porque me parece que há mais rotas de colisão entre vocês, um com o outro e com vocês próprios, do que propriamente caminhos a serem seguidos em conjunto.

- Mas as rotas de colisão também são maneiras de seguir em conjunto.

- E até quando, até onde vai esse caminho em conjunto? O quanto se aguenta, o quanto se sustenta uma relação sempre em erosão?

- Não sei, nunca sabemos. Não me interessa saber até quando vamos ficar juntos, não quero datas nem horários. Saber o dia da morte significa já ir se deitando no caixão. Mas sem dúvida não vai muito além da nossa paciência. E nossa paciência não suporta muita erosão: um fluxo contínuo que corrói paredes em blocos. Um movimento constante que tangencia o rígido e o fixo, desmontando-os. Fazemos isso um com o outro, erodimos certas partes de nós. E isso não é exatamente ruim; ruim é o fato de usarmos esses pedaços de rigidez, esses blocos de fixidez que desmontam de nós próprios para, então, arremessá-los um contra o outro. Fazemos isso o tempo inteiro, nas mínimas situações: ao usar adoçante no suco de uva e no cafezinho para não engordar; ao usar uma regata mais justa para espremer os músculos; ao colocar a campainha do celular no último volume para que um saiba bem quando o aparelho do outro recebe uma ligação ou uma mensagem. Provocamo-nos mutuamente, de um modo um pouco inconsequente, como se nossa paciência resistisse à erosão que nos submetemos. E ela não resiste, não irá resistir. Ela já dá sinais de fratura, de cansaço.

- Podes sugerir um fim? Se pacífico ou litigioso?

- (silêncio) Se pacífico ou litigioso, será um fim absolutamente necessário. Queremos dizer com isso que o momento em que terminar, essa relação terminará sem que reste uma só gota em sua ebulição. Conhecendo-nos como nos conhecemos, vamos até as últimas consequências, até as raias, até o elástico romper, até nos exaurirmos um com as coisas tolas do outro. Exaustos, só depois de um certo tempo é que vamos nos dar por conta de que o fim chegou e que não resta mais nada. E aí seguiremos em frente, ou pra trás, como se jamais tivéssemos nos encontrado. É por isso que achamos que não será um fim pacífico, tampouco um fim litigioso. Será um fim em si mesmo, um fim que apagará qualquer vontade de continuar as rotas de colisão e as erosões. Seremos inteiramente prescindíveis um para outro depois do fim. Tornaremo-nos, enfim, estranhos e ilustres desconhecidos na história de vida um do outro. Sem mágoas nem rancores, nem vinganças calculadas de maneira fria.

"É uma forma de fazer nós em fios muito retilíneos"

- Mas vocês estão solteiros, namorando, casados? Houve a consumação do matrimônio? Ou o mundo está diante de mais uma, abre aspas, amizade colorida, fecha aspas?

- Não, nunca houve nenhuma consumação em minha vida (risos). Atribuir nomes e status àquilo que emerge e que constitui as relações entre as pessoas, sobretudo delas com elas próprias, é sempre uma inglória. É sempre uma mesquinhez, uma pequena vileza que cometemos: dar um substantivo é fechar uma série de portas, desacelerar as turbinas, cobrir com verniz uma superfície porosa que poderia conectar-se com tantas outras... Mas vá lá, vamos usar uma palavra que defina isso que temos entre nós, mas que também deslize o suficiente a ponto de permitir apenas o mínimo possível de rigidez. O que nós temos, em relação a nós próprios e em relação a nós dois, em relação ao mundo, é exatamente isso: relações. Múltiplas, infindáveis, mutantes, amorfas, disformes, polivalentes, ambíguas, duvidosas, perigosas, secretas, silenciosas relações. Ache os adjetivos que quiser para abrilhantar o substantivo. O que temos hoje não é nada de concreto, não é nenhum tipo de alicerce. É puro gás circulando, ora mais denso e perfumado, ora mais rarefeito e putrefato. Antes eu dizia que era ele quem precisava de mais matéria, de mais solidez e de mais definições do que eu para poder lidar com isso tudo que estamos vivendo. Obviamente esta foi mais uma das minhas perversas artimanhas em jogar a responsabilidade da insegurança no outro, de modo a afastar de mim qualquer dúvida sobre meu volume subjetivo. Sou eu que preciso do peso das memórias, sou eu quem investiga seu passado e o reconstitui à minha imagem e semelhança, impondo-lhe verdades ainda insuspeitas e sentimentos supostamente nunca sentidos mas ali latentes em sua alma. Eu digo que eu sei, que está claro para mim, que se ele ainda não se apercebeu da paixão recolhida que o consome é porque lhe falta maturidade para enxergar e para sentir. Eu crio culpas e decalco-as de mim, grudo-as nas paredes dele e rio disso. Atribuo sensações e desejos, atribuo vontades aos rodopios de seu olhos. Que caminhos no breu o conduziram até aquele brilho no olhar refletido no corpo seco de gorduras, no sorriso branco, no rosto quadrado, no peito musculoso, no braço rijo... Que faz ele comigo, então; que relação móvel ele estabelece com alguém que em nada se associa àquilo que ele viveu, com alguém que não entende sua história nem tudo e todos que dão sentido a essa história, com alguém cujas direções dos caminhos são tão obtusas quanto são estreitas suas passagens, cujo corpo é tão amorfo e disforme quanto a própria relação construída entre ambos? Eu sigo impondo minhas verdades a essa relação e vou constituindo um núcleo duro e sedimentado de emoções nunca experimentadas – nem por mim, nem por ele. Em outras palavras, é uma forma de fazer nós em fios muito retilíneos (risos). (Silêncio) Sentimos muita vergonha às vezes (silêncio). Sentimos muita raiva dessas incompatibilidades todas, desses desencontros em choque, elétricos, explosivos (silêncio). Sentimos tristeza e desolação pelo nosso estado de exílio, abre aspas, estrangeiros um na vida e no corpo do outro, fecha aspas. Soa como sendo uma relação trágica, mas é bastante gostosa quando gargalhamos um do outro, dessas cenas dramáticas e das reações exageradas que temos (risos).