Condições

Para não precisar fazer a arqueologia dos problemas que nos levariam ao ódio e à ojeriza, preferimos fechar delicadamente a porta pela qual entramos naquela sala. Para não ter a obrigação de escavar razões e situações no tempo passado, para não precisar mostrar motivos já mortos, fossilizados, que justificassem nosso desprezo mútuo, preferimos sabiamente dizer ‘até logo’ num momento em que abundávamos de admiração e carinho recíprocos. E tivemos sucesso.

O fim de alguma relação não é identificável por si mesmo. O fim de alguma coisa não remete a si como uma evidência ou fato comprovável. O fim não existe porque, de certo modo, seu começo também é fruto de uma ilusão, ou de uma certa necessidade que temos em pôr uma marcação, erguer um obelisco em algum lugar, assinalar no calendário algum dia que nos faça lembrar de onde e de quando tudo começou. O fim depende do início, mas tal como o começo, o fim também é fruto de uma ilusão. O começo nunca é o começo per se porque há condições que nos fizeram estar ali naquele instante, daquela forma, naquele lugar específico. Há condições que nos apresentam escolhas, e só fazemos as escolhas que podemos fazer. Eu, com 24 anos, bêbado, numa festa freqüentada por muitos rapazes da mesma idade e com o mesmo interesse homoerótico são condições que me apresentam algumas escolhas, enquanto que descarta outras. Faço deste dia e deste lugar o começo. Mas o começo não é localizável, nem fixo, porque ele é uma circunstância, ele é um percurso, um caminho seguido. O começo que nós vulgarmente chamamos de ‘aniversário’ é apenas um nó em que as condições de escolha se colidem. Isso não o faz menos importante, todavia. Mas sem dúvida, pensar o começo como um certo momento de adensamento de condições faz com que o próprio fim seja repensado: repensado não como um ponto final, mas como uma reticência ou, no máximo, uma vírgula. O fim e o começo repensados colocam um ponto de interrogação (a dúvida) justaposto ao ponto de exclamação (a certeza). Não tendo certeza do começo, portanto, também não temos certeza do fim.

A incerteza do fim tampouco significa arrependimento ou possibilidade do vai-e-volta. A incerteza do fim não significa necessariamente um ‘eterno retorno’, ou a chance de sempre reatar. O caráter difuso do fim serve mais como agente de transformação que como alternativa de re-estabelecimento do vínculo. O fim insere novas problemáticas nessa relação que termina e oferece novas condições de escolha. Essas, por sua vez, nos levam a novas relações; o fim desta é também o começo da próxima.

Eis que, então, depois de feitas minhas escolhas e entendendo as condições que as fizeram possíveis, estou sentado no chafariz da Redenção no sábado pela manhã, às 9h. Nem um minuto depois de ali sentado no conhecido e renomado Sofazão da Hebe, ele vem cambaleante e pede por um mate. Nunca o vira antes, não sabia quem ele era, ele apenas surgiu. Sentou-se do meu lado e começou uma conversa, na simpatia e comunicabilidade típicas dos excessos da cevada fermentada. Alguns bradariam “aí está o começo!”. Eu diria que aí está o cruzamento, a colisão, o atravessamento, o adensamento de possibilidades de escolha, a nuvem de condições, o nó de chances que resultam de umas séries de situações prévias, umas enroscadas e dependentes de outras tantas, que nos fizeram estar ali, naquele momento, daquele jeito que estávamos. O nome dele leva o mês precedente ao do meu aniversário. Sua profissão em certo grau é parecida com a minha. Sua idade e suas mãos também guardam semelhanças com as minhas, da mesma forma com que compartilhamos o gosto exacerbado pelas coisas etílicas. Mas a estética do sapato e calça da cor preta em contraste com as meias soquetes brancas é estratosfericamente ímpar, incomparável.

Depois de uma conversa confusa, mas divertida, dei a ele $2,10 para que pudesse pegar um ônibus e voltar pra casa: valor exato do troco vindo do pacote de erva-mate que eu comprara horas antes para fazer meu chimarrão e, com o chimarrão, decidir me sentar no chafariz. Vêem que não há começo, mas uma conspiração de possibilidades para que as coisas aconteçam?

Cartas a uma jovem bicha - Sobre as escolhas

Eu me sinto só ao escrever essa carta. Eu me sinto abandonando, desemparando, desesperando, desacreditando, desconfiando, sempre no gerúndio porque é algo que se faz neste momento e se prolonga no futuro. Eu me sinto escolhendo um caminho que só oferece lugar pra um: acabo por impigir a mim mesmo a condição única de distanciamento egóico. É bem provável que nos fim dos tempos só sobre eu e meus livros, com mais ninguém pra me trocar as fraldas geriátricas. Isso porque nós fazemos escolhas que nos empurram daqui pr'ali, sempre um pouco mais pra um lado, sempre um pouco mais pra baixo, e eu desde já sou bastante só. Mas se é isso que tem que ser, se é assim que vou (que vamos, nós) aprender e ensinar, se é assim que fazemos acontecer outras pessoas nas nossas vidas sem que nos deletemos mutuamente, se é assim que será eu aqui admito e aqui assumo. Não vou me lastimar por qualquer decisão que eu ou que qualquer um de nós tomar: deixo a lástima para aqueles que simplesmente não decidem nunca.

Nada é inédito

No meio do caminho havia uma encruzilhada. Havia uma encruzilhada no meio do caminho. Tomei a esquerda. "Vai, Tadzzio!", me disse o anjo de uma asa só, "Vai ser gauche na vida!". Mesmo sem poder voar com graça, o anjo de uma asa só foi capengando para longe em busca de outro abraço.

O rosto contamina o corpo

Um amigo querido me passou um material interessantíssimo sobre o rosto, sobre a rostidade. Paola Zordan, junto com Deleuze e Guattari, traz:
"Os rostos não são primeiramente individuais, eles definem zonas de freqüência ou de probabilidade, delimitam um campo que neutraliza antecipadamente as expressões e conexões rebeldes às significâncias conformes."
Procuro pensar no rosto não como nossa cara, não como o sistema fechado [olhos-nariz-boca], exatamente. Procuro pensar o rosto como como metáfora, como topografia de ressonância daquilo que somos ou daquilo que pretendemos ser. Um rosto não é a face; é através de onde e por aquilo que nos transformamos. Uma re-entrância onde procuramos nos acomodar, a partir de onde enxergamos - mais que isso, lugar de onde nos vêem. O rosto fixa, o rosto contamina.
Por isso mesmo, o rosto aprisiona. Penso nos meus sujeitos de pesquisa: "20cmmachoativo", "pauzudo23cm", "TravestiGulosa". Seus rostos nômades, re-construídos a partir de re-significações dos seus próprios corpos: recorte seu pau duro e sua bunda aberta, cole ali sua rostidade e seja feliz com seu novo relevo subjetivo. Se o rosto contamina o corpo, contamine o rosto com o corpo, arranque o rosto do corpo e desloque o próprio corpo, inverta-o, re-coloque-o, recorte-o. Destrua-o e torne-se um@ forasteir@, escape do rosto, desfaça-o.
Onde quer que o rosto estiver, ele irá em seu encalço. Ele não pára nem quando dilaçerado. Fuja, torne-se um nômade. O rosto não suporta o adiamento.

Umas tais lembranças

Pois, ora se não, que um olhar oblíquo e quase paralelo, um aperto de mão mole, um rechaço e um sorriso de escárnio, um silêncio de vergonha - ou seria de incômodo? - e perguntas de escrutínio público, de controle pessoal, seriam capazes de me fazer tremer as mãos e as pernas e me fazer lembrar do quão duro foi chegar onde estou hoje?

Escorpiões

Por que o veneno que mata a nós dois seria a saliva inoculada na boca de outrem?

Rascunho de mim

07 de maio - o dia que não acabou. A quarta-feira foi um dia extenuante. Ela já terminou oficialmente há 50 minutos, mas os minutos são apenas convenções que não dizem sobre quando um sentimento acaba ou outro começa. Portanto, de certa forma, ainda estou na quarta-feira. De outras formas, permanecerei nesta quarta-feira, imóvel, tentando entender. Tentando me entender.
Há vezes em que sinto um peso, uma dor, uma fadiga. Meu corpo cansa e minha mente fica embaçada como que atrapalhando o pensamento. E os olhos não vêem direito, e os braços não alcançam, as pernas não caminham. Há vezes em que acho que posso (que devo?) fazer o peso cair e espatifar-se no chão. Os músculos dos meus ombros sofrem de contraturas terríveis: sustentam uma cabeça densa, apinhada de pensamentos que forçam sua massa. Tenho aqui uma cabeça que dói muito às vezes. Tenho um peito que não soluça, uma voz que não embarga, cílios que não umedecem. O fio do novelo enosado que trago comigo é muito extenso pra ser medido e muito intenso pra ser carregado.
Chego ao fim desta quarta assim. Como um rascunho de mim. Caminhei tanto que meus joelhos doem, mas é bem verdade que finjo não ver meu corpo há meses e meus músculos, todos eles, ou estão tensos ou estão fracos. Comi uma fatia de pão às 8 da manhã, depois um prato de carne com farofa ao meio-dia e meia. Café a conta gotas à tarde. Uma xícara de leite há uns 20 mintuos. Como eu disse, finjo não ver meu corpo. Suei, gaguejei, dormi em pé no ônibus e desejei nunca ter levantado da cama aos cinco anos de idade. Cheguei em casa e fui direto lavar minhas mãos no banheiro quando, meu deus!, me olhei no espelho. Havia anos, anos, anos que não acontecia de eu não me reconhecer. Eu estava pálido, de uma branquidade anêmica, com escuras olheiras, bochechas magras, barba por fazer, boca entreaberta como que sem fôlego e um profundo olhar triste. Me choquei mesmo foi com este último porque o vazio do meu olhar eu só vira outra vez num cadáver na Faculdade de Medicina da PUC/RS quando por ocasião de uma visita guiada aos prédios da universidade promovida pelo colégio onde eu estudava. Era o cadáver de uma mulher de seus sessenta anos que, segundo a estagiária que atendeu a mim e meus colegas, fora doado para pesquisa porque provavelmente era uma mendiga e ninguém havia reclamado o corpo depois de sua morte. Seus olhos mortos pareciam ainda dizer do desespero, ou apenas do ressentimento, em terem morrido sós.
Que parte de mim, será?, que morreu sozinha hoje a ponto de meus olhos trazerem sua morte?

Uma extensão do texto sangüíneo

Me sentei no balcão do bar com um amigo de longa data. Entre os copos de cerveja que subiam e desciam, entre a música e os vídeos, entre as pessoas estranhas e cheias de força que foram chegando aos poucos e se sentando por perto, entre um olhar de desejo para um garçon e outro de reprovação para a feiúra de um cliente, eu me dei conta de que eu não tinha nada pra contar. Ou tinha, mas meu amigo não entenderia. Ou entenderia, mas para ele não teria importância nenhuma. Ele não se afetaria com nada que eu pudesse lhe contar. Mas também, por outro lado, talvez ele tenha se afetado com essa minha falta generalizada de novidades, com essa apatia uniforme que eu trazia. Houve um silêncio entre nós, inquebrável até mesmo pela mais atroz insensibilidade das vozes dos que nos rodeavam, imperturbável inclusive pelos fartos e brilhosos cabelos negros do garçon.

Voltei pra casa a pé pisando nas pedras úmidas da chuva que recém caíra. Para cada passo firme no chão havia um certo balanço, uma certa chacoalhada, um movimento gelationoso do acúmulo adiposo em meu abdome. Me assustei com minha condição: como eu cheguei a ser do jeito que sou? Por que motivos eu permiti, ou por que motivos eu quis ficar assim? Para cada passo um grau a mais no incômodo com minha calça; eu pus a culpa na calça velha, de numeração errada, com um corte cafona, de cintura alta, pus nela a culpa pela manta de gordura. Eis que vi um grupo de homens bêbados, tão bêbados quanto eu ficara na noite anterior, orgulhosos de suas camisetas rubras de campeão gaúcho, anunciando suas masculinidades numa gramática cuidadosa e explícita que se articulava com seus corpos robustos. Masculinidades de pêlos no rosto e nas costas. Como será que eles chegaram a ser do jeito que são, eu me perguntei. Por que motivos eles se permitiram, por que motivos eles quiseram? Me lembrei de Gilles Deleuze com sua “dobra”: para ele, cada um de nós é uma “dobra” do exterior para o interior, e essa “dobra” pode ser des-dobrada, re-dobrada toda vez que nos afetamos por algo. E lancei um novo olhar sobre os grupos de transeuntes e vi uma noite plissada, cheia de entradas côncavas. Eu mesmo era uma dobra, uma prega, um desnível do exterior em direção àquilo que chamo de “eu”.
Daí passou por mim uma anã manca. Renga, coxa, a anã reclamava da sua jornada de trabalho dado o avançado horário da noite. Como ela chegou a ser o que é? E por um momento eu me irritei com essas perguntas inúteis que faço enquanto caminho na rua porque é infrutífero tentar remontar na minha mente o estado semântico da vida de cada um que por mim passa. Simplesmente porque não há como tirar de todo mundo um denominador comum, uma opinião recorrente, um mesmo conjunto de impressões sobre a vitória deste ou daquele time de futebol, sobre a gordura que se acumula sobre meu abdome, sobre a beleza do garçon. A anã manca me ensinou sobre a polissemia das reentrâncias, das dobras, das pregas.

Confusão

Não te sinto extensão de mim como eu gostaria. Não te sinto qualquer coisa de mim, sequer oposto. Nem te sinto algo outro, nem algo comparável. Nem te sinto. E te olho com uma curiosidade, com uma certa admiração, com um certo desapego, que desaparecem numa segunda frase, num segundo olhar e num segundo toque. É um laço de sangue que nos une, efêmero porque inexplicável. Um laço que precisa ser a todo momento reatado. Se tropeço em ti na minha calçada, te tomo como pedra mal colocada. Se esbarro em ti na faixa de segurança, te tomo como pedestre cego. Se meu olhar cruza com o teu, é porque estás na frente do filme em cartaz. É como se fosse um acidente ou uma equação calculada com a fórmula errada: dá um resultado implausível, mas dá um resultado de qualquer forma. É como se fosse uma possibilidade que outrora eu consideraria, ou um ônibus que no passado eu pegaria. Uma chance que em outro momento – qualquer momento – daria certo e se aplicaria à situação. É um risco, e não uma seta. É um som gutural, e não uma palavra articulada.

Opinião

Sobre certas pessoas em um certo espaço de homosociabilidade:
Uma mistura heterogênea de estratégias de aceitação. Um engodo múltiplo, uma dissumulação polimorfa de tentativas de tornar-se diferenciável - e, ao mesmo tempo, mimetizável.

Um outro texto sangüíneo

Ainda sobre os surdos vaidosos: vocês cairão, da mesma forma como já caíram outras vezes, nas armadilhas arquitetadas pelas suas próprias vaidades.

Eu já os avisei sobre isso, não com palavras, não com textos, mas com sinais de ferro incandescente que procurei marcar em seus corpos. Sua incapacidade de ouvir o que lhes é dito, em primeiro lugar, os caracteriza como ridículos, e em seguida como sujeitos de pena. Tais quais teias emaranhadas convergindo para um centro único, fios com nós tensionados em espiral de desordem, linhas sobrepostas em situação de incomunicabilidade com o exterior, nada lhes é importante quando vem de fora, a menos que o que vem de fora lhes sirva para afirmar o que previamente foi escolhido para sustentar, reforçar, comprovar, sublinhar o que já está em seu interior. E o que já está em seu interior não é algo dado pela natureza, ou algo localizável em seus genes. É efeito dos olhares alheios, é produto daquilo que tentaram fazer para pactuar com os acordos e, dessa forma, inserirem-se com sucesso numa rede geral de aceitação e celebração. Seus pactos podem ter sido positivos, ou pelo menos o olhar ‘dos outros’ pode lhes ter parecido confortáveis. Mas se por um segundo os pactos de aceitação funcionaram, eles também falharam: a sensação dissimulada de acolhimento os seduziu e os enganou, de modo que saíram desenfreados à procura de cada vez mais permissões de existência e subscrições de excelência por onde passavam e por onde se manifestavam.

Sujeitos da própria ilusão, armaram pra si mesmos a armadilha da confiança no aceno de simpatia ‘dos outros’. Ridículos porque se transformaram em palhaços insanos de uma popularidade enviesada, de uma popularidade fantasmática. Ridículos porque se converteram no signo daquilo que mais detestavam: tornaram-se a própria abjeção. Ridículos porque abjetos, abjetos porque mendigam um índice de diferenciação ‘dos outros’ na mesma medida em que ‘aos outros’ se igualam. Ridículos porque sedentos pelos acenos positivos, pelas credenciais louváveis, pelos passaportes de vistos universais. Ridículos porque, ao reivindicar para si a centralidade da admiração – seja pelo sucesso em se diferenciar ‘dos outros’, seja pela competência de ‘aos outros’ se mimetizar – tornam-se referência de como não-ser.

Sujeitos de pena porque tristes. Solitários, encastelados, vivendo dentro dos muros impermeáveis da própria vaidade, habitantes de uma depressão escura e fria da topografia da dignidade, arrastam correntes presas aos seus corpos que lhes servem, simultaneamente, de prisão e de arma. Prisão porque os mantêm dentro dos limites circunscritos pelos seus egos inflados; armas porque fazem as vezes de ferramenta de ataque àqueles que incursionam pelas dúvidas que os sustentam. Sim! Os surdos vaidosos estão assentados, sobretudo, em dúvidas sobre o que lhes pertence, sobre o que lhes é merecido, sobre qual seu valor e sobre quais estratégias precisam criar para manter suas vaidades. Estão, portanto, em constante estado de adiamento de suas afirmações justamente porque precisam fazê-las a todo o instante.

A vaidade é, ao mesmo tempo, dejeto de suas latrinas e banquete de suas refeições.