Sonhei que eu era dois. Mas não apenas duplos: dois opostos. Um estava com o pai, que me chamou a atenção: "estou com teu gêmeo". O outro era eu. Meu gêmeo deixava o copo de cerveja cair no chão e se estilhaçar; cantava e bebia; gritava. O outro era incontrolável. Gerir também significa gestar. Conter algo em si por um tempo até o algo virar alguém: prover vida à vida. Significa parir depois disso. Por no mundo, dar à luz, fazer vir à vida. Um gêmeo veio da minha mesma gestão, mas pôs-se no mundo e viu-se à luz de outra forma. É um eu radicalmente Outro, um Não-Eu. Um Não-Eu que posa para fotos e que bebe, que grita, que canta. Um Não-Eu que, ao não existir, sublinha minhas bordas e meus limites, minhas praias, meus inalcances. Lá onde eu não vou. É a borda do meu rosto onde há espinhas, cravos e pelos inflamados, a borda inflamada e dolorida do rosto. Que errado é mover-se dentro de um corpo desconhecido ou pesado, um fardo, um erro ou um engano. O corpo enganado; O corpo renunciado. Aquilo que veio a ser o corpo não me serve. O adiamento daquilo que o corpo já é resume-se a poucos procedimentos: ou é de corte, ou é de cavocação, ou é de provocação da morte. Daí já não é mais gestação - ou gestão. Já não é mais prever a vida no corpo, neste corpo que pode gerir outro corpo e que pode pôr à luz outro corpo. Não é mais um gêmeo. É uma gestação abortada, sem eira. Não é mais eu duplicado, nem oposto: NÃO É MAIS EU.
Mesmo que tenha sido um pouco, mesmo que tenha sido menos do terço ou do quarto. Um silêncio gigante, daqueles que precedem o parto. Um parto longo, dolorido, forçado: nasceu a fórceps. A mãe, que era eu, morreu. Moribundeei por ainda algumas horas apenas para dar o primeiro leite. Liberei-o, enfim, para um mundo sem mim. Não haveria de ficar descuidado, pois o pai segurava minha mão. Não o odiou, o pai: acolheu aquela coisinha pouca com toda a ternura sem-mãe. Um pai doce e sorridente, viúvo. Depois da morte da mãe, o pai contou com um marido, que era eu novamente, que retornou do exterior para criar o filho recém nascido, órfão. O guri cresceu sólido, alto e esguio. Repete-se essa mesma história mais uma vez, as mesmas peças em posições diferentes. É o enigma do parto que tento desvendar, que tento inferir. Há alguma pista que perdi. O personagem central não sou eu: eu sou a mãe que morre, sou o pai, sou o marido do pai - recalcado pela família, pela sociedade - que retorna, eu sou o filho que cresce. Eu estou diluído um pouco em cada um deles, mas devo admitir que morro e nasço, que me separo e me reconcilio, que vou e retorno, que cresço e morro mais uma vez na repetição de uma história que não só foi criada por mim mas que foi vivida por mim. Estou recriando, reelaborando, redesenhando e reescrevendo a minha história. Isso explica a paixão por Douglas (Seco, Dougie, Doguito, conforme os apelidos que eu mesmo criei para ele). Douglas sou eu. Mas a história não é justificada - ela é uma ficção, uma realidade fantástica, uma biofantásticagrafia; pelo contrário, a história justifica, ela endossa e legitima, ela aponta uma reconfiguração da minha própria. Criei um mundo repetido do qual não estou completamente ausente (eu sou o pai viúvo, o filho órfão, a mãe morta, o marido/padastro que retorna), um mundo no qual tampouco estou integralmente inserido (é um mundo que não existe, que não existirá, é uma ficção impossível, uma inrealidade). Estou um pouco, menos do terço ou do quarto. Silenciosamente renascendo a fórceps.