olá, ghost.

tu ainda chacoalha correntes atrás das portas. ainda geme de madrugada. ainda assopra meu pescoço enquanto lavo a louça. depois da tua morte, tu é assombração que flui, que se move como gás.

aos poucos faço as pazes com todo o terror que tua figura me evoca, me provoca, me impõe. esta é uma cidade fantasma, de fato, e preciso viver nela. escolhi estar aqui. é uma cidade fantasma porque dá margem para que as feias imagens do desespero ganhem voz e cheiro. somos todos párias aqui. eu ainda não estou morto, mas rogo para que eu saiba discernir em qual horror eu habito quando a hora chegar. não tenciono morar na casa de alguém puxando os cabelos dos vivos enquanto eles dormem. ainda não estou morto, mas já sei que tua presença é assombração. já separei tua vida da tua morte. já vi teus olhos sem fundo. tu é mais um habitante morto desta necrópole.

o que eu faço com meus mortos? por um tempo vou sentir dor ao pensar em ti, ghost. vou repassar todos os momentos em que eu deveria ou poderia ter evitado tua morte. e vou chorar pensando que tu não queria me deixar. depois vou praticar a revolta porque eu saberei que tu morreu porque tu quis. e vou chorar pensando que tu premeditou me deixar. na surdina da minha alegria tu já tinha data para falecer. em seguida, vou entender que foi só um encontro, que não há explicação do porquê tu quis morrer, que tenho pouca participação em qualquer decisão que tu tenha tomado sobre tua própria morte, que se tu me deixou foi porque tu sentiu que assim era pra ser - simples assim - e que isso não significa que uma parte de mim tenha que morrer também. pra ti eu já não sou assombração. pra ti eu nunca estive vivo, nem no toque, nem na escuta. nem quando eu disse que estaria feliz em qualquer lugar onde tu também estivesse, qualquer lugar que tu me convidasse pra estar contigo.

no que me é dado saber, estou vivo. mas há esse negativo de vida com o qual preciso coabitar. tu uivando para a lua, tu derrubando quadros, tu movendo talheres. um morto que ainda me visita. meus mortos: são a sombra da minha história viva. caminho vivo pela necrópole que mantenho em cada linha da minha história. 

 [...]á conseguia lidar com o silêncio do apartamento, com a luz apagada para dormir. permanecia, porém, como ghost que não desaparece, a lembrança do homem. a inquietação do domingo nublado o empurrou para as calçadas. talvez caminhando a dor drenasse: o ralo por onde escoava era na boca do seu estômago. andou e chorou em uma porção nordestina de são paulo. deixou traços de lágrimas na piauí, maranhão, alagoas. nina simone o acolheu: o homem precisava dele. fantasiava que, ao retornar para casa, o homem estaria à sua espera na portaria do seu prédio. na tentativa de expulsar esse delírio, caminhou durante três horas por quatro bairros diferentes. enxergava o homem por de trás de cada arbusto, em todas as janelas dos prédios, saindo de carro das garagens abertas. passava os olhos em todas as mesas dos botecos, em todas as filas de espera dos restaurantes, desesperando encontrar o homem. percebeu que, mesmo já sabendo lidar com o silêncio e com o escuro, buscava o homem, queria estar em face do homem. não tentava escapar; circulava pela cidade com o intuito de encontrá-lo. não fugia; ia em seu encalço. e passou a assumir para si que, sim, queria olhar nos olhos do homem e suplicar, como no pôster do filme "lua de fel". era tarde para isso, e fora de moda também. mas se pudesse, se lhe fosse dada essa chance, ele não teria pudores em implorar. só mais um toque na barba, no cabelo; só mais um beijo na orelha; só mais uma risada com uma taça de vinho compartilhada. só mais uma companhia do seu ghost preferido.

era um sábado. manhã fria, chuvosa. o som dos pingos oscilava entre "romântico" e "melancólico". ele acordara às seis e treze, sem coisa alguma para fazer. lembrou do homem. teve a certeza de que, para o homem, o som dos pingos de chuva cravava no centro da definição de "romântico". perdeu alguns minutos olhando pela janela, compondo o corpo que deveria estar com o homem naquela manhã. não era o seu, por certo, pois o homem o havia rejeitado. perdeu mais alguns minutos elencando partes e características do seu próprio corpo que o homem teria detestado. antebraços finos; gordura abdominal; glúteos flácidos; pescoço longo; olhos inchados. marcou horário na academia. preparou café e tomou uma xícara, sem açúcar. a chuva engrossou: o homem deveria ter apertado a conchinha, deitado na cama quente. cogitou a hipótese de que, talvez, o homem o tivesse rejeitado não apenas pela sua aparência e consistência físicas, mas também pela sua classe social. morava num apartamento alugado onde não incidia luz solar. metade dos móveis não eram seus. ele próprio ajoelhava-se para limpar o banheiro e o vaso sanitário uma vez por semana. o cartão do sus estava sobre a mesa, junto com guias para agendamento de consultas. era pobre, afinal? (pobre marca horário na academia?) encheu mais uma xícara com café e, daquela vez, misturou uma colher de chá de açúcar demerara e mexeu o líquido com uma das duas, apenas duas colheres que dispunha. (pobre compra açúcar demerara?) no primeiro gole pensou em acender um cigarro: chuva, frio e café pediam por cigarro. e pensou em vinho. (pobre pensa em vinho?) sabia que o homem havia tomado vinho com o outro na noite anterior em um jantar que acertava em cheio na definição de "romântico". riu de dor. e pensou em cerveja. e pensou na sua própria pança, cuja responsabilidade era sua mas também da heineken e da stella artois. ele sofria mas bebia bem. a chuva não parava. desejou ser amigo de bridget jones. o homem saberia como aproveitar um sábado frio e chuvoso. vestiu uma calça de moleton, uma camiseta branca manchada na região das axilas, um casaco, meias e chinelos. saiu do apartamento, do prédio, sem guarda-chuva. foi até a lanchonete cuca real, comprou marlboro e um isqueiro vermelho, para lembrar o inter de porto alegre. pediu dez heineken long neck; só tinha brahma. who cares? levou para casa doze latinhas brahma. higienizou todas com álcool setenta por cento e as colocou na geladeira, que precisava ser descongelada. depois da primeira baforada do primeiro cigarro, desmarcou academia. a chuva parara. o homem deveria já ter feito sexo àquela hora; imaginava-o tomando banho com outro. toda a delicadeza de um dia como aquele - sábado, chuvoso, frio - lhe escapava. a sujeira do tabaco se espalhava por dentro dele, pelas suas veias e artérias. e a bunda por mais um dia mole e os olhos por mais um dia empapuçados. soube-se pobre: sozinho e classista; arrogante e preconceituoso. habitava o coração de uma palavra ainda não inventada para o sentimento de.

 [...]va pensando em causar. fazer algo que impactasse a vida paulistana de modo a deslocar o interesse urbano daquele dia preciso, daquela hora agendada. fazer algo que tumultuasse as redes. quebrar as vidraças da sede do banco safra. pousar um boeing no minhocão. implodir o copan. (essa seria minha cartada final, mas eu morreria um pouco em cada tijolo, em cada elevador, em cada ripa de madeira do saguão.) cagar nas vidraças do masp e deixar escorrer. marcar suruba na sinagoga da doutor veiga filho. gritar "lula livre!" na faria lima. botar uma camisinha no obelisco. (e tentar sentar nele depois.) correr a frei caneca pelado não é uma alternativa porque é uma redundância. e um vexame, sejamos claros. limites. [...]

 [...]scongelou e derreteu. escorreu pelo chão, desceu o ralo da área de serviço. (lembrar de jogar água fervente no ralo da área de serviço, pois as mosquinhas já se acumulam na parede de azulejo.) não só de choro, de lágrima, de suor pela angústia de ficar sozinho no seu apartamento de quarenta metros quadrados com vista pra um paredão, voltado pro sul. não só de mijo que desceu suas pernas sem aviso porque tinha tomado três garrafas de vinho e caiu desmaiado na cozinha num quase coma alcoólico. não só. a coisa fria que ele era havia se desprendido de um grande continente. estava à deriva, se movendo em alto mar, em direção aos trópicos: a coisa fria que era (não esquecer de descongelar a geladeira medieval que foi alugada como mobília do apartamento.) (lembrar de comprar um bolo para o porteiro da madrugada, que o havia socorrido numa das madrugadas em que desesperou lembrando do outro, que conversou durante duas horas no saguão do prédio dizendo que tudo ia ficar bem e que deus aceita todos.) (não esquecer de retomar os exercícios de mindfullness na sacada.) o grande bloco de gelo se aproximava do paralelo 33. e ele se dissolvia no calor da palpitação em fantasiar que o outro, àquela altura, sequer lembrava do seu nome, do seu rosto, dos trechos de vida que lhe havia contado. ele estalava e craquelava e despencava em blocos que submergiam em alto mar, provocando ondas, na arritmia do coração crente de que o outro bebia e beijava e fodia e gozava e bebia e beijava com porra e gozava porque beijava com porra outros homens - que não ele. (lembrar de bater punheta, quando puder.) mesmo assim se movia, ia em direção aos trópicos, derretendo. ia ao encontro de algo que o outro arrancara nele. e convidava o outro pra ir junto, ou pra habitar o trópico quando ele lá chegasse. e se restasse algo desse pedaço congelado que ele era, se algo de frio ainda boiasse no mar dos trópicos que pudesse ser pego com a mão, queria que a mão que o pegasse fosse a do outro. aquela mão que o explorara. (não esquecer de fazer três séries de vinte abdominais-bicicleta pra esquerda e pra direita, diariamente.) (lembrar de jogar no tanque as cervejas guardadas.) o outro o havia deixado. o outro desembarcou dele. algo se incompatibilizou entre os dois. foi a pergunta sobre "o quê?" que o separou do grande continente. o outro talvez soubesse a resposta, de pronto. ele não sabia. porque pra ele o bloco de gelo ainda era um cont[...]

 [...]oite curta, de cinco horas. a angústia me impede de permanecer no escuro, trancado na paisagem do meu quarto pequeno, que é uma caverna. significa submergir nos acordes mentais da música da gal. significa vê-lo se aproximando em silêncio, e eu pronto para ouvi-lo, para deixá-lo entrar. sem conseguir respirar, me levanto. acendo todas as luzes do apartamento. ligo a tevê em qualquer canal em que haja alguém falando: um noticiário, uma missa, uma receita de bolo. é para dispersar aa voz dele me contando sobre o que gosta de fazer durante o carnaval. há pássaros em são paulo, bem-te-vis, canários, sabiás, tucanos e corujas. e pelicanos. atobás, albatrozes. pássaros caçadores na cidade onde faz vinte e um por cento de umidade em agosto. em mais uma noite curta eu precisei molhar uma toalha e deixá-la pendurada ao lado da cama, na minha caverna. talvez seja por isso que os pássaros vêm cantar na minha janela. repasso as últimas vezes em que nos encontramos e quase acredito que eu deveria tê-lo beijado desde a primeira vez. é só em mim que essa fenda separa; é só em mim que a noite curta pesa; é só em mim que a lembrança da última vez em que eu toquei na sua barba estraç[...]

 [...]sde janeiro, muito e pouco mudou. estou morando em são paulo, na consolação - nada poderia ser mais adequado pra mim do que morar no consolo. consegui trabalho, não emprego. desqualificado, trabalhoso, pesado, demorado, arrastado. um consolo sacrificial depois de seis anos de pura exploração, depois de seis meses de desemprego. mas não reclamo. estranho, não reclamo. passeio por higienópolis, centro, jardins, barra funda e santa cecília, conheço as ruas desses bairros e a posição solar da cidade como se a palma da minha mão fosse a terra plana. e é, em certa medida: meu mundo é um terreno plano, um pouco inclinado, dentro de uma redoma. entre maio e agosto escrevi um diário a mão, só pra exercitar. dei de presente a um amigo. um moleskine inteiro de letra cursiva, romântica. desde a primeira semana de agosto estou escrevendo outro diário, também a mão, também em um moleskine, mas menor. mais um presente para outro amigo. minhas amizades mais próximas são canibais, pois dou a elas partes de mim para se alimentarem. na verdade, o canibal sou eu.

são justificativas do porquê não tenho escrito mais aqui. mas estou escrevendo, estou escrevendo muito, talvez mais sinceramente do que nunca. talvez até devesse pensar seriamente em publicar um livro sobre tadzzio. ou sobre uma ilha deserta. por ora, decidi voltar aqui para não enlouquecer. não posso me dar ao luxo de ficar louco, nem de oferecer essa pequena vitória a quem contribui para minha loucura.

*

são três e meia da tarde de uma sexta-feira que já dura quatro dias. foi o horário em que nos falamos da última vez. desde então, desagreguei, desabei, desorganizei. em algum milésimo de segundo desde esse big bang, eu não suportei o apartamento que dá para um paredão, o escuro, o silêncio. em outro, eu caminhei de um lado pra outro, da sala para o quarto, depois para a sacada com vista para um bloco de concreto, olhei para cima e para os lados, para baixo, em busca de outros apartamentos com luz, com movimentação humana. queria ouvir músicas vindas de outras casas, gritos. não vi nem ouvi nada. meu coração palpitava, e me escorei no parapeito: segundo andar, muito baixo. eu não suportaria ficar sozinho. vesti qualquer coisa surrada, peguei uma máscara grande e óculos escuros. andei pela rua augusta, sentei em três botecos diferentes para tomar café e ver pessoas caminhando, sentir o sol. chorei por detrás de tudo, um choro de quem fragmentava e não conseguia coser os trechos de emoções muito, muito antigas. chorei com café, com pão de queijo e com pão na chapa lambuzado de cream cheese. fui subindo a augusta do centro em direção à avenida paulista. não conversei com ninguém simplesmente porque eu não conseguiria articular palavra sequer. quando choro minha garganta fecha: não comunico para fora. só via imagens da barba e dos cabelos desalinhados entrecortadas por choques que eu sentia no peito, na boca do estômago. talvez eu estivesse vivendo em um pesadelo e alguém no mundo acordado tentava me reanimar com desfibrilador. não deu certo. quando cheguei à sede do banco safra eu desabei. sentei o mais próximo do asfalto e do concreto que pude, no meio-fio. a avenida paulista nunca decepciona, pois sempre há transeuntes dispostos a te ignorar. é para lembrar que tu precisa ser discreto. e naquele momento eu era um escândalo. eu chorei pela confusão, pela rejeição, pela incompreensão. ninguém de fato viu, pois essas são emoções comuns no meio-fio que une a paulista à augusta. eu era só mais um em mais de um século. senti revolta e medo. derreti naquela dor estranha onde eu havia molhado meus pés.

eu estou muito cansado. é um dia muito longo, esta sexta-feira que não acaba. esse desprezo que repete o gesto em looping. a indiferença paralisa o tempo na melancolia, que é um gás. é uma gravidade que me impede de levantar. minha cabeça dói e pende pro chão. sinto que vou desfalecer, entrar no sono regido por uma dor de cabeça forte. ouço a voz dele e acordo. é de madrugada. o escuro do quarto é insuportável, e ligo a luz num movimento de desespero. venho à sala, abro a janela da sacada: paredão. lá longe vejo dois apartamentos com as luzes ligadas. fixo neles o olhar, já lacrimejando, pedindo para que alguém se levante do sofá, ou ande até a cozinha. não suporto estar sozinho. ninguém se movimenta. o terror que ejetou de mim precisa ser filtrado; é parte do que sou. o desespero é uma serra que separa membros e eviscera corpos: meus braços e olhos flutuam no teto. o que resta de mim está preso ao chão na mesma gravidade que torna difícil eu correr, gritar e até mesmo bater nele. porque ele não disse uma palavra de carinho. ele delegou a mim a atitude de botar um ponto final em uma frase quando eu queria escrever junto com ele um livro inteiro. será que ele estava certo, afinal? foi demais, muito rápido, muito pesado? ou foi de menos, muito ingênuo? o que eu fiz e o que eu deixei de fazer para que essa história encontrasse seu fim em palavras minhas - minhas palavras, eu, que estava disposto a tudo com ele? o luto existe para que possamos encontrar nossas respostas para perguntas deixadas em aberto pela ausência do outro, do outro que desejamos e que foi arrancado (arrancou-se) da nossa vida. do desespero à raiva; depois à conformação; depois à indiferença. nesses degraus, devo resgatar os pedaços rasgados e os reintegrar a um novo corpo. porque ele me manteve no escuro e se despediu sem nenhuma palavra de carinho. eu rasguei sua dedicatória e coloquei seus papéis no lixo reciclável. a mais triste tristeza é esta em monólogo. o silêncio e o escuro: ainda não sei o que fazer neles. ainda estou no subsolo do desespero.