[...]enha com chorumelas", disse meu pai. uma figura contraditória, o meu pai. capaz de melindres e mágoas por um 'bom dia' mal dado; capaz de gritos e tapas por um riso atravessado. oscilante entre picos de fúria e vales depressivos. numa dessas oscilações, me disse que eu tinha que aguentar. me disse que ele já havia passado por um momento parecido mas talvez pior, pois ele tinha filhos para sustentar; eu não. (engana-se, contudo: tenho filhos que sustento, que apoio, que levo no colo, que educo. tenho filhos.) "/Acho que todos habitamos elas, vez ou outra. Nossas próprias ilhas desertas;/" é, habitamos. enquanto estamos ali, choramos um pouco. uma ilha deserta é o sonho de separação dos grandes continentes, dos grandes blocos de afeto prêt-à-porter. entre tantos, escolhemos afetos como compramos em lojas de departamento: afetos que cabem no nosso corpo mas que não são feitos para nosso corpo. são feitos para muitos, para todos, para as massas, mas não para nós nem para aquilo que desejamos do mundo. habitar uma ilha deserta é resistir à incorporação pelos grandes continentes; é separar-se; é colocar-se à deriva das grandes capturas e assimilações. habitar ilhas é não comprar afetos, mas produzi-los. por outro lado, tom hanks, em "Náufrago" (cujo instigante título em inglês é "Cast Away", isto é, o personagem foi literalmente "jogado para além", separado, posto à deriva) nos ensina a separarmo-nos das próprias ilhas. com o eventual preço da própria vida, é verdade, mas a lição é bárbara: "/Vez ou outra é interessante se lembrar disso, saber que a ilha é um refúgio provisório, não fixo./" adoro cavocar, esgarçar, esmilinguir ou artesanalmente tecer significados inesperados de grandes produtos da indústria cultural; exercício de grande valia, pois mostra que somos dotados da incrível habilidade de comprar entretenimento feito para muitos, para todos, para massas e, inobstante, separarmo-nos dos grandes continentes mesmo ao consumi-los. "/Saber que as palavras uma hora voltam."/: sim. prevendo suas idas e vindas e voltas, eu as tatuei em mim todo (nas duas pernas, nos dois braços e antebraços, sobre os ombros, na região sacra e bem na entrada do coração - essa última é um segredo que poucos conhecem). coloquei-me entre aspas e escrevi na pele as palavras que de mim não vão embora. algumas delas são "eu, astronauta lírico". meu pai jamais vai entender como e por que eu sou um astronauta lírico. ele vai sempre achar que meu lirismo é chorumela. eis um grande continente do qual me separei: meu pai. lembremo-nos que há arquipélagos: conjunto de ilhas, grupos de ilhas, complexos de ilhas, amontoados de ilhas separadas dos grandes continentes, sonhando serem astronautas. que venha todo o silêncio sem palavras, que venha tudo o que não cabe em palavras, que venha tudo o que na minha pele inscrito não se esgota ali, que v[...]
[...]erno que vivo. "Ou nas oportunidades que você negou e/ou abriu mão pra estar hoje onde está." todas, viu? eu lembro, não faz muitos anos, eu fazia planos e projetos de vida, pra vida. talvez eu já esteja velho demais muito cedo, e talvez tu seja jovem demais e muito resplandecente, mas à medida que a idade avança a gente começa a ter uma dimensão da existência que é assim: "quando eu fazia planos e projetos...." distanciando o eu de agora (que não não faz planos nem projetos) daquele outro. somos arrastados por alguma coisa, algo nos morde e nos come, nos mastiga e não engole; ficamos ali, sendo ruminados. eu neguei muita coisa pra estar onde estou. das negações mais vergonhosas da minha vida está a de não ajudar um morador de rua cadeirante a atravessar a rua. passados 11 anos dessa circunstância, às vezes eu não consigo dormir pensando que recusei um pedido de ajuda. me sinto feio, sujo, indigno; tento reparar meu crime me inflingindo uma pena. mas continua sendo feio em mim, continua sendo sujo em mim, continuo sem honra. se estou onde estou, estou com vergonha. aí tu segue dizendo: "Não seria exagero dizer que tu mudou minha vida pra melhor": seria. cada ser vivente que atravessa teu caminho é uma bifurcação, é um divisor. se pro bem ou pro mal, não interessa: todo ser vivente nos divide, divide nossa história, quebra quem somos, faz a erosão do rio por onde desaguamos. eu não tenho o poder de mudar a vida de ninguém. se tu mudou a tua por mim, este é um feito exclusivamente teu. e tu merece aplausos. porque as pessoas em geral não desejam e não se deixam mudar por aqueles quem encontram; as pessoas resistem e lutam contra isso. é exagero, sim, dizer que eu mudei tua vida pra melhor, pois o único quem fez isso foi tu mesmo. e me sinto feliz em presenciar o cúmulo da tua beleza: alguém que muda sua vida em homenagem ao outro."Tem gente do outro lado que te admira pra caralho e sente por tu estar triste nessa hora." .... os momentos mais difíceis pelo qual tenho passado são aqueles quando eu fantasio que posso ser assassinado por um ex-aluno. são os momentos quando eu fantasio que o mundo vai se tornar tão perverso e cruel que alguém a quem eu ensinei (ou tentei ensinar) vai apontar o dedo e dizer: espanquem até morrer. eu entendo a raiva inerente de alunos em relação a certos professores, mas estou falando de outra dimensão: como é possível mandar matar, ou deixar matar (o que é pior), aquele que um dia cuidou de ti? tenho pesadelos em imaginar ex-alunos, com quem converso e brinco, em relação a quem respeito a existência e dou direito a voz, possam deixar que me torturem com choques elétricos ou pau de arara. eu cuido de cada aluno/a que tenho e não faço mal a nenhum/a delas/as; eu os/as quero bem. se são vagais, desinteressados/as, se desprezam o que eu faço e o que falo, respeito; enquanto se quedam comigo, eu os/as cuido. meu maior medo é que aqueles/as a quem dispenso meu cuidado me ofereçam à morte bruta. meu maior medo é o cinismo daqueles/as a quem dispenso meu cuidado. num mundo como o de hoje, não parece óbvio que isso pode acontecer? que qualquer tipo de tortura seja imposta a quem compartilha afeto? estou me sentindo sozinho por esses dias, e não ouço essas pessoas do outro lado que me admiram, como tu diz. tenho estado um pouco surdo às reivindicações de quem me ama. nem desistir / nem tentar / agora tanto faz / estamos indo de volta pra casa. sempre achei esses versos os mais tristes das músicas que ouço. quem está indo? pra qual casa? não tentar e não desistir é estar neutro, paralisado, apenas deslizando pelo caminho já aberto que te leva para o lugar já conhecido. e mesmo assim me dá uma dor no peito ao imaginar que eu posso estar indo de volta pra minha casa acompanhado, com alguém cuja mão eu seguro, eu aperto. eu não estou sozinho ao voltar pra casa. e eu não estou sozinho na tristeza - não porque há outras pessoas tão ou mais tristes, mas porque simplesmente HÁ PESSOAS comigo, como tu. não lembro de anos tão tristes na minha vida, mas também não lembro de manifestação de carinho tão sincera. por isso eu sou grato, por isso eu não desisto e continuo tentando voltar pra casa. minha casa não é o inf[...]
não haja. não tenha coisa nenhuma. o desejo de toda boca é o vinho e a cerveja que não acabam. o copo sem fundo e a carreira sem parede. não haja em si mesmo. não exista em si: eles dizem. mas o que é mais forte que isso, o que sobrevive apesar do cinismo: tem utilidade? desgraças virão e já batem na porta. se eu fosse mais jovem eu comeria um sorvete, mas já sou um senhor. "não obrigado". dias terríveis esses que eu escolhi pra mim. bem feios. permaneço na loucura da limpeza, na coisa feia da limpeza, desinfetando tudo. tornando tudo, todos os espaços da minha vida recipientes tocados pelo álcool e pela água sanitária. todos os recipientes da minha vida são sanitários. em todos faço merda.
mas hei de limpá-los.
como é possível, meu deus, ser tão direto como no ACREDITA EM DEUS, mas eu bem falso e bem feio faço a mentira da coisa que tu me quer: tu me quer? é CRENÇA EM DEUS me querer e me ter e estar aqui (por um momento foi tão leve [e demorei pra digitar essa palavra "leve"] mas se fosse coisa boa de me ouvir que quero seu sorriso Santa), minhas notas musicais no teu BROKEN HEART.
a sua melhor escolha, ele disse. e eu acreditei. e eu vim, eu peguei o avião e voltei. a sua melhor escolha, ele disse. e eu acreditei, achei que era o mais correto. a escolha sempre errada é aquela que fazemos pelo outro: vivemos o sonho do outro, elegemos os critérios do outro, acreditamos no que o outro acredita. e eu voltei para viver o sonho dele. qual o resultado? quando a maquiagem do dinheiro despenca - pois toda maquiagem despenca - eu vejo concretamente os resultados daquilo que escolhi: tristeza. sou triste, sou um homem triste, sou um professor triste porque quais viver o sonho de outro. a mim não é dado mais o direito de sugerir "ingenuidade adolescente". estou envelhecendo muito aceleradamente. minha pele, sobretudo a do rosto, vem adquirindo uma textura estranha, ressecada, carcomida e cheia de vincos. não posso mais alegar que eu era jovem e inexperiente: eu vim pelo dinheiro. não há nada pior que o dinheiro: aquele montante que se tem, mas que na verdade nos tem. tudo o que o dinheiro me trouxe, tudo, eu devolveria. e conquistaria novamente sendo pobre. as viagens, as roupas, a cerveja, o sabonete, o desodorante: eu ainda seria alguém sem nenhum desses que eu comprei com o dinheiro que ganhei. conheci pessoas que perderam muito; pessoas que não tinham nada, que eventualmente ganharam A MAIS e que perderam. sobrenomes e vários cartões de crédito não valem pra muito - mas pra algo. prefiro ser pobre, ser invisível, ser ninguém - não é isso que vocês pensam de quem ganha menos? na minha beleza eu encontrei alguns princípios, pois minha beleza tem retidão ética.
responsabilizar-me pela minhas escolhas.
revisar minhas posturas e pedir desculpas quando crer que estive errado.
dizer da minha revolta quando algo me revoltar.
entristecer, alegrar, chocar, desprezar quando for necessário fazê-lo.
dormir 8h por noite. bater uma punheta a cada 2 dias.
convencer-me de que não há justiça divina, nem justiça humana, e que a vida é uma só e é a minha.

permitam-me sonhar e viver meu sonho; caso contrário não os deixarei dormir.

[...]hnas que, no pé esquerdo, têm um problema. não sei se é porque eu piso torto e, por isso, elas crescem quebradas. ou se é uma maldição. meus pés, deles eu cuido, pois dizem muito de mim. a pele deles e as cutículas, os desenhos (quadrados) do corte que imprimo. detesto unhas compridas. detesto pessoas compridas. a barba comprida em mim inflama e dói, fica feia. desejaria alguém comigo, nas unhas e na barba, nos filetes que saem do meu corpo: unhas ou barbas. alguém comigo. não haveria crise se houvesse um carinho. um rapaz entrou na minha casa e disse: "que legal, tu colocou pantufas nos pés dos móveis", mas eu não pensei que isso seria cuidado. tratam-se apenas de camadas de feltro entre os móveis e o chão, que alguém aligeiradamente chama de cuidado. para mim são formas de não tocar. não toque na minha casa, nem em mim, nem no meu pinto, ORAS! toque na ideia resplandecente de ser eu mesmo. destrua minha carapaça, pois tu já o fez, e entre na minha carne mole de molusco - revestido de coisa dura e por dentro mole, pulsante, quente. não sou sedutor e nem posso. não consigo, não sei. mas tu, ai, tu, saia da minha sala ou entre em mim. das coisas que carrego, a mais pesada é a necessidade de dar mais passos do que eu imaginava da lavanderia ao quarto. já pensou o peso? pensa o peso? limpo o vaso sanitário onde eu cago por gratidão e dignidade, pois eu faço e eu limpo. responsabilidade. quero belezas que extrapolem o vaso, o sanitário, o elástico da cueca. que vazem e caiam pros lados, mas minha casa tem esconderijos. e eu não sei limpá-los. a quem eu quero enganar? os dedos oblongos desejam hidratante; os pés carcomidos desejam em silêncio uma faca ou estilete que REMOVA A PELE DURA DE QUALQUER CONTATO COM O OUTRO, mas sangra. é escolher a dor. o outro perto de mim = a dor. atribuir nota aos alunos; aceitar o sinal vermelho no trânsito; a chuva que molha o vizinho e não eu. eu quero a chuva. meu maior pesadelo é morrer torturado nessa nova democracia que se contrói no Brazeel. tenho medo da tortura, como se eu já não a vivesse. mas pau-de-arara é diferente de um aluno que te odeia. choque elétrico é diferente de um colega professor que te despreza. unhas ou barbas: o que eu tenho de armadura. arma-dura = que lança haverá de me penetrar? de tão espaçosa e límpida, minha nova casa exige de mim atenção desde às sete da manhã: pois te amo. não posso dizer que eu sempre quis uma coisa simples pra minha vida, seja isso corpo ou roupas ou língua ou sorriso ou casa ou profissão, mas quis uma coisa tranquila. haha. nunca houve. nunca houve um sequer coisinha de 'te amo'. nunca ouvi isso nem li. das coisas que mais me marcaram, foram duas: a bala que matou meu irmão bem no coração e a tatuagem que fiz bem no peito, onde a bala perfurou o corpo dele. pois também tenho uma bala no meu coração e a diferença é que estou vivo. não é mais digno. o mundo que encontro é feio e fantasio sobre o dia em que eu vou deixa-lo. a tatuagem é A PERMANÊNCIA DA PELE FINA DE QUALQUER CONTATO COM O OUTRO. deus me livre me apartar da cerveja, da chuva e da música. não me torture nas coisas poucas que sou, não me prive disso: eu sou um serumaninho odioso, mas das coisas da água caindo no vidro e dos sons chegando no ouvido e do álcool chegando na coisinha toda e pouca que é meu corpo, DISSO EU ENTENDO. disso eu quero um pouco, sempre, para sempre, na minha vida. não vou embora sem isso, tampouco sem as memórias das pessoas que bateram na minha porta e no meu corpo - com dor, com tesão, o meu corpo cresce no contato com a memória alheia. porque meu corpo continua a crescer pra fora de si mesmo, como se tivesse memória, como nos cabelos e u[...]
tem já falas deitadas na memória, falas que a memória deseja expressar, falas em outras línguas e tolices geográficas deslocadas, alteradas em sua latitude: a memória deseja um futuro? a memória apenas se atém ao passado? bem no centro, três dedos acima do umbigo, e bem fundo, talvez uns cinco dedos pra dentro da pele: é ali que me embrulha, é dali que vem a náusea. sinto ali o embrulho se contorcendo; é bem no centro, bem no meio; me embrulha, me envelopa; me circunda, e eu fico grudado no avesso do embrulho e é neste momento em que vomito. minha memória deseja um futuro, minha velhice se locupleta da juventude alheia, bonita, bem cheirosa, mas também profundamente triste e desnorteada. tem já embrulhos no estômago: que presentes querem sair? eu sou o presente do embrulho do meu estômago. quem se quis e esteve aqui, quem se deitou e dormiu, quem me abraçou e não voltou: minha memória deseja um futuro para mim.
tu morreu numa segunda-feira pela manhã; a manhã e a tarde intercalaram momentos de céu límpido e azul brilhante com momentos de nuvens acumuladas nas beiradas da abóboda celeste; naquela segunda-feira à noite uns pingos de chuva caíram. frequentar o hospital para te ver foi difícil nesses teus últimos quarenta dias. mesmo quando estavas no quarto esperando pela cirurgia sabíamos que tua vida já chegava à conclusão: tua voz saía fraca. tu nunca mais voltou da cirurgia. das três (seriam duas?) vezes que te visitei na UTI o corpo que eu via não era o teu. ou era, mas sem tu dentro. um corpo cruelmente ciborgue, ligado aos mais variados fios e tubos, e telas, e sacos com líquidos coloridos que afluíam pelas veias. quiseram te manter vivo a qualquer custo: compreensível, mas torturante. para ti e para nós. uma morte vale por todas: todos os fins vêm nos lembrar que acabam. aquela segunda-feira acabou também, junto com tua vida. e veio a terça-feira, já sem ti. foi inevitável me perguntar em que dia eu irei morrer, e em quais condições. fantasias próprias de quem não tem muito apreço pela vida que leva. gostaria de morrer numa terça ou quarta, no início da noite. velório discreto, sem muitas pessoas. cerimônia de cremação rápida, vaso de cinzas singelo. é uma fantasia tão inútil essa, pois definitivamente os fatos que acontecerão após nossa morte nos fogem ao controle. sei que teu velório e as cerimônias da tua despedida serão cuidadas pela tua esposa e pela tua filha. não pude abraçá-las depois que tu morreu e por isso eu peço desculpas. quando eu morrer não terei esposa e filha. acho que vou morrer sozinho, no mesmo momento em que meus vizinhos estiverem cozinhando sua janta, como se mais uma terça ou quarta-feiras comuns estiverem acabando. morrerei num dia comum. e o dia depois da minha morte, assim como o dia depois da tua, virá sem empecilhos. pode não haver sol, mas haverá dia, pois nossa falta não será sentida pelo curso do tempo nem pelo curso da vida da esmagadora maioria das pessoas do mundo, como os vizinhos. sinto um vazio impotente, um tempo flácido e apático o qual atravesso em forma de pântano. a pluma da melancolia.
[...]stico frouxo da cueca, desbeiçada. a circunferência que não parava de arredondar, de absorver as coisas do mundo, todas as coisas do mundo, como se fossem feitas ou dirigidas a ele. um imã em vida atraindo para os cantos das unhas cortadas rente à carne o peso e o quilate dos olhares seguidos de silêncio. o profundo desprezo de quem o conheceu, grudado nos fios que separam unha de carne. dois cortes nos dedos, no indicador esquerdo e no mindinho direito, cujas cicatrizes, embora discretas e já bem fechadas, apenas dissimulavam o abismo de dentro que caía fundo, como falésia, na neve e na língua inglesa que ele deixou pra trás. mas não as esqueceu. ainda borbulhavam às vezes, vertendo pelas mãos: a doçura politicamente correta dos canadenses. que saudade. sonhava em voltar. e poderia? teria idade? seria um bom candidato à migração? contribuiria para o país tanto quanto ou o máximo que pudesse, agudo ou crônico, simbolicamente retribuindo ao país e à cultura aquilo que lhe proporcionaram? que nenhuma cicatriz seja capaz de apaziguar isso, de acalmar esse desejo. triste. sozinho em casa, de cueca. sonhando com o que fervia nas fendas das cicatrizes, arrastando os quilates de desprezo entre as unhas. respeitoso do tempo e dos corpos dos outros, ele era. mas não dos seus. nunca quis ser deste mundo. nunca quis estar aqui num corpo. mas estava, e se perguntava se haveria outro ou outros mundos nos quais poderia ou deveria estar. e se perguntava se já não estaria, naquele preciso momento, existindo de outra forma em outro mundo. não num mundo novo, não numa nova vida: apenas em outras condições, em outras linguagens e comunicações, em outras coisas que não o orgânico, o carbônico, o fisiológico. se, num outro mundo, não houvesse palavras, ele ainda estaria triste? ainda usaria cueca desbeiçada? ainda cortaria rente à carne as unh[...]

o fracasso segundo z

eu não precisaria contar o que houve hoje, tampouco os planos que tenho feito para mim visando um futuro próximo. não foi deus, nem o neutro das coisas, que eu vi e que eu experimentei. não tenho nenhum relato filosófico-espiritual para fazer a partir dessa parte pequena do meu dia; tenho apenas uma série de conexões mais ou menos conscientes de uma psique organizada em torno daquilo que experts chamariam de neurose depressivo-obsessiva - três palavras que em sequência e separadas dizem pouco. o importante não é contar o que significou fazer o que fiz, nem o sentido que pode haver num ato cuja única testemunha está morta – única testemunha além de mim mesmo, mas embora eu já tenha testemunhado contra mim, não tenciono fazê-lo neste caso. não se trata, portanto, de hermenêutica. trata-se das conexões possíveis de serem feitas, e que foram realmente feitas, no curto tempo que levou ao acontecido, ao próprio acontecido, e aos desdobramentos do acontecido, que já se enfraquecem agora, impotentes. porque, afinal de contas, o mais importante não são os neurônios, mas as sinapses. o mais importante não são as leis, mas as jurisprudências.

***

era metade da tarde, um dia quente e úmido de verão. mesmo depois das tempestades de manhã cedo, a temperatura não havia cedido. cada pelo do meu corpo grudava em cada centímetro quadrado de pele, e o suor exalava um cheiro de homem indisfarçável. eu estava de passagem da sala para o banheiro. vi no chão do canto do quarto, oposto da janela e bem ao lado da cama, um pequeno monte de roupas para lavar. não havia cesta de roupas, nem saco de roupas: era um canto onde eu as jogava. num relance estremeci. roupas claras e escuras se misturavam, contrastando com a parede texturizada branca que encontrava o guarda-roupa, formando o canto das roupas sujas. a confusão era efeito de dias de muito álcool, de quando eu chegava em casa bastante alterado, mas não tanto a ponto de prescindir do banho antes de deitar na cama para dormir. eu já havia caído dentro do box do banheiro devido a essa excentricidade (que alguns experts chamam de neurose); eu já havia feito feridas nos dedos de vezes em que eu escolhia limpar o box do banheiro precisamente nas noites em que eu chegava da rua bêbado, me jogando numa escovação frenética com desinfetantes e água sanitária (alguns experts chamariam isso de transtorno obsessivo). estremeci porque o monte confuso e colorido de roupas sujas assinalava as noites mal dormidas, as manhãs de dor de cabeça, a indisposição gástrica, a gastança desnecessária. assinalava também a sujeira que precisava ser limpa. a energia necessária para escovar, desinfetar, polir, enxugar. a energia necessária, a energia: era preciso ter energia. o sol não entrava no quarto, somente a luminosidade do dia. veja: a coisa em si não entrava nunca no quarto, somente seu efeito. não havia movimento na luminosidade, somente na própria luz solar. a luminosidade era uma coisa estática, que ou estava ou não estava. era um quarto no qual não havia movimento. mesmo assim eu dei quatro passos dentro do quarto e parei meus pés quase no monte de roupas sujas. olhei novamente: camadas de tecidos revoltos, tecidos sintéticos, algodão, elastano, jeans. todas as cores misturadas. não poderiam ser lavadas juntas. era preciso ordenar critérios para separar as peças e colocá-las na máquina de lavar respectivamente, obedecendo às condições e aos requisitos da boa lavagem. havia pelo menos dois modos de separar as roupas: pela cor ou pelo tecido. pelo tecido, haveria empate entre tecidos sintéticos e tecidos naturais, mas as cores se misturariam. pela cor, as peças claras eram em maior número. decidi estabelecer o critério das cores como definidor - mas por que mesmo? onde mais eu estabelecia o critério da cor como definidor? ora, em praticamente tudo. a única dimensão da vida em que eu era daltônico era no amor. meu amor, o conjunto de coisas que chamo de amor: a sobreposição dos corpos, o banho acompanhado, o zelo pelo sono do outro, a espera ansiosa pelo tom de voz do outro, a compreensão e respeito pela opinião divergente, os filmes e as músicas que nos costuram e que nos juntam, a beleza dos pequenos atos de falta de higiene (soltar puns à noite, pegar pedaço de pão caído no chão e comê-lo, não limpar direito a bunda, usar all star sem meias, repetir por dois dias a mesma cueca e, no terceiro, virá-la do avesso). amor cinza: se estivesse no monte de roupas sujas, estaria em menor número e seria lavado. meu amor cinza, feito de tons de cor e de não cor, num monte de roupas sujas.

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agachei-me. e a minha coluna lombar doeu. porque tenho um problema crônico na coluna lombar, nas quatro primeiras vértebras da coluna lombar. compressão da medula. era preciso fortalecer os músculos através da prática de atividades selecionadas e orientadas. oficialmente eu estava proibido de correr, mas estava obrigado a me exercitar. esse tipo de paradoxo é comum nos dias de hoje: nos impedem de algo ao mesmo tempo que impõem esse algo como um dever. e ali, agachado em frente a um monte de roupas sujas claras e escuras, de vários tecidos, eu fui separando camisetas de bermudas, cuecas de camisas, meias de calças, amor de esperança, corpo da vida. o corpo apartado da vida, excluído da celebração da vida, habitando um quarto luminoso porém sem sol. eu era todo separado da coisa viva em si mesma. habitava espaços que corroboravam para essa separação e a reforçavam. se houvesse um rastro de vida no meu corpo, esse rastro estava comprimido nas minhas vértebras e doía. para que mesmo, para que a coisa orgânica do corpo? era o corpo que precisava de roupa, ou eram as roupas que precisavam de corpos? pois se fossem as roupas que precisavam de corpos, estávamos num estado zumbi assustador. éramos usados pelas coisas, que não tinham identidade alguma porque foram criadas outrora por nós - os prescindíveis. peguei uma calça e uma camiseta, nelas as etiquetas reluziam na luminosidade parada do quarto: a notícia boa foi que eu era um zumbi. os objetos do mundo tinham ganhado autonomia e nos usavam: as roupas, os guarda-roupas, as máquinas de lavar roupas. isso explicaria em parte o porquê de muitos de nós desejarem ser objetos, portarem-se como objetos, consumirem uns aos outros como objetos, como coisas autônomas, inanimadas e sem identidade que usam as pessoas. eu era todo usado pelas etiquetas. eu era consumido como coisa pelas outras pessoas. isso também explicaria em parte o consumo excessivo de álcool que eu fazia (no limite, era o álcool que me consumia): era como uma religião, um ato ritual através do qual eu procurava me religar com o rastro comprimido de vida recolhido entre minhas vértebras, era uma forma de eu perder a autonomia de objeto com etiqueta no mercado da carne. o consumo excessivo de álcool era uma forma de eu desprender da carne, ir embora da carne, esquecer da carne, e tentar ascender de modo sôfrego e doloroso, sacrificial, a um estado não humano, não objeto, não carne, despido em todos os aspectos, sem a etiqueta da linguagem e sem a etiqueta da cultura, sem a etiqueta da psique e da consciência. roupas e máquinas de lavar roupa precisam de etiquetas para ser. o humano precisa de critérios para separar-se. é por isso que ser humano é, necessariamente, não ser. a notícia boa foi que eu era humano - ou, dito de outra forma, eu era um zumbi usado pelos objetos e pelos humanos-objeto. razão que explica em parte o fato de eu nunca ter amado; na melhor das hipóteses, eu poderia ter sido eventualmente objeto de paixão.

***

com dor na coluna, separei as roupas de acordo com o critério da cor. um pequeno monte de três ou quatro peças escuras, um monte de seis ou sete peças claras. o monte de roupas escuras à minha esquerda, o monte de roupas claras à minha direita. fiquei feliz com a organização, que deveria ser respeitada por mim até o momento de lavar as roupas - o que poderia demorar alguns dias. só mesmo uma pessoa infeliz ou bastante lúcida da sua condição humana para criar uma regra arbitrária e regozijar por obrigar-se a cumpri-la. não era este, enfim, o princípio basilar da civilização: aceitar os impedimentos oriundos da Lei? pois que seja, e que a Lei que me impede de algo seja feita por mim mesmo! e uma aranha saiu por entre as peças de roupa escuras. era grande, marrom. deslocou-se para a parede texturizada branca e foi subindo. quem era ela? de onde vinha? o que comia? como se comportava? a quem obedecia? o ser inumano, sem etiquetas, que morava no monte das minhas roupas sujas. o ser inumano que coabitava o meu quarto, em minha companhia. finas patas marrons que subiam a parede branca. uma vida não humana que valia nada. coisa não morta, cidadã da pequena república que eu recém criara: aquela composta pelas roupas claras e pelas roupas escuras. testemunha da minha dor, do meu amor cinza. no chão, perto dos montes de roupas sujas, estava o livro "a legião estrangeira", de Clarice Lispector, cujo conto "o ovo e a galinha" eu havia lido na noite anterior. era a única ferramenta de assassinato possível naquele momento. tomei o livro e, num tapa brusco, esmaguei a aranha na parede branca com a contracapa. ironicamente, a gosma da aranha espalhou-se sobre a foto do rosto de Clarice.

***

"é agora que eu devo lamber a contracapa do livro e engolir o que veio de dentro da aranha? é agora que eu preciso experimentar o leve salgado da coisa neutra da vida?" não. pois eu era humano, um humano sem amor. levei a contracapa do livro ao banheiro. limpei com papel higiênico. em outras ocasiões, ali também haveria uma coisa neutra, meio adocicada, de vida - da minha vida. para onde ia a minha vida, saída em gosma de mim? para onde ia minha vida em gosma, comprimida entre minhas vértebras? porque minha escolha foi de não acessar o divino por meio da gosma neutra da aranha. não há neutralidade na gosma, nem no sêmen, nem no sangue. algumas patas da aranha permaneceram grudadas à parede texturizada branca, e lá eu as vou deixar como etiqueta da parede. os restos da aranha ficarão na parede enquanto for necessário me lembrar de que não há muito mais que dois ou três montes de roupas sujas toda a semana, duas ou três vértebras com medula comprimida, cinco ou seis máquinas de lavar que lavam as etiquetas. as patas separadas do corpo da aranha ficarão grudadas na parede enquanto for necessário eu me manter circunscrito àquilo que no mais mundano ainda continuar sendo humano.