Companheiros

Não nos falta nada - já percebeste?

Temos os corpos. Porque carregam em si tudo que já foi, porque materializam tudo o que queremos. Porque no instante em que penso em ti há uma cisão, um corte, uma separação absoluta que nos impede de sermos um - e aí está nossa graça, nosso charme, porque manteremos intactos nossos quatro braços, nossos dois narizes e nossos seis olhos tais quais eles são. Seis olhos! Porque quando eu te chamo tu não escuta, tu não responde, tu não te vira; mas também porque no momento em que tu me toca eu não sinto, eu não deslizo, eu não arrepio. Porque nós gritamos e nós corremos. Porque nos colidimos e nos chocamos contra paredões. Porque nós choramos, porque nós dormimos, porque nós soltamos gases inclusive. Temos conosco o benefício da traição da promessa: nós não prometemos nada, nem a nós; não empenhamos nossa palavra e não damos partes dos nossos corpos em nome daquilo que dizemos. Ninguém poderá levar nossas orelhas, nossas falanges, em nome de palavras não cumpridas. Porque mentimos, e mentimos muito, e omitimos. Porque não há nada além de nós, nem nada passado por nós com o que mantenhamos dívidas ou juras de veridicção. Porque não pensamos um no outro com cobiça ou com posse, porque não sequestramos nossos planos, porque não esterilizamos nossa vontade. Tudo em ti é possibilidade, tudo em ti é chance, e em mim também; e quando a chance não chega ou não bate, e quando as possibilidades não combinam, não nos acusamos nem nos ressentimos. Porque somos absolutamente incomensuráveis, irredutíveis. Porque estamos juntos por muito pouco, porque há muito pouco de nós que combina, porque há quase nada em ti que me seduz e há menos ainda em mim que te fascina; mas esse pouco, esses nossos pouquinhos e essas nossas nossas migalhas são tão reincidentes e tão preciosas; porque nossos pouquinhos são tão irmãos, são tão amigos; porque essas pequenas partes dos nossos corpos corpos se gostam tanto e com tanta intensidade, e se encostam tanto e se lambem tanto; porque há tão poucas palavras a serem ditas depois da fricção dos nossos corpos que é justamente daí e por causa disso que vem tanto gozo, em jatos altos, e tanto silêncio depois, um silêncio abraçado, um silêncio epidérmico das peles que se confudem. Porque há tanto em mim que conhece o mundo através de ti e por tua causa, porque há tanto em mim que deseja a vida que tu me oferece. Porque tu não me cobra taxas por isso. Porque quando tu me odeia, tu me diz. Porque quando eu te odeio, eu simplesmente não te olho. Porque esse pouco de mim que te fascina circula com força, em espirais, por todo o teu corpo, e entra e sai de ti provocando calafrios. Porque quando tu deita na cama à noite, ou cedo da manhã, não é com o gosto dele que tu adormece (dele, desse outro recém descoberto): é pelo meu sabor que tua boca saliva. Sou eu insidiosamente por toda tua superfície, gritando nos teus tímpanos. É a minha boca selando tuas pálpebras pra tu dormir, é o meu sorriso te velando. Porque não nos falta nada - talvez só mais alguns passos, ou só mais algumas palavras, ou só mais alguns goles. Porque já temos tudo: todos os dias daqui pra frente.