Um epílogo

[...]orpo um epílogo? dá? tentarei.... mas não será a morte... será? Não! Porque ele se deleita no que o dinheiro traz. E traz. Mas eu trago outras coisas, e ele traz também outras coisas, e ela, e eles, e elas, e aquilo lá, e aquilo não sou mais eu, e está aí no corpo dele. Uma coisa que não sou mais eu - que corpo lindo, a postura, os pés no chão, o modo com que marcha, os dedos dos pés que pisam o chão [não propriamente os pés, mas os dedos dos pés]. Lindo. Só descobrirei depois - mas já te denuncio. Belo! Um corpo que grit[...]

Um capítulo

[...]riar um! Crio agora mesmo... a feição do rosto, o modo com que agarra os travesseiros e chora, pedindo pra não ser isso que é. Vou mais além ainda: crio o movimento dos dedos dos pés, e os próprios pés, lindos, alvos, vejo suas veias, dedos longos, unhas bem cortadas. E ele pede pra que isso não seja verdade! E chora! Mas é verdade. Ele um dia vai me ter, justo eu, que não penso em tê-lo hoje. Sou o Deus do meu destino porque desenho o que eu mesmo não desejo: já o prevejo. Cabelos ruivos, barba ruiva, olhos orientais. Eu não sei que os quero: mas eles já me querem. Eu sei, mas esse eu ainda não o sabe. E eu serei tão feliz... E derrubas um vinho na minha camis[...]

Minhas histórias

[...]édio. De levantar e ter que levar adiante sempre as mesmas discussões. E ver que as pessoas – inclusive eu mesmo – emperram sempre nas mesmas reentrâncias. E que se perdem por lá, meu deus, como pode? Tédio, tédio, tenho sido a pessoa mais tediosa que conheço. Mas meus momentos de prazer, ai que medo deles! Não são de luxúria ou de orgia, quer dizer, até o são, mas também são de um platonismo e de uma distância astronômica entre o meu corpo e os dos outros. Pode haver orgias em distâncias tão galácticas? É que vou me entediando das pessoas e de seus corpos, sempre perdidas nas suas reentrâncias, e corpos sempre rodopiando em suas próprias curvas... E eu vejo filmes, e eu ouço músicas, e construo aí meus mundos, minhas histórias que se conectam muito vacilantemente com este mundo material do qual sinto tédio, um fio fraco liga aquilo que sou nas minhas histórias àquilo que sou na minha matéria.
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Desde muito pequeno eu aprendi a falar sozinho, mas não porque eu tivesse muito o que dizer e poucos pra quem falar; mas porque eu não podia falar, em nenhuma instância. Pra não morrer de tédio, naquele silêncio tedioso e preocupante que circunda crianças muito ingênuas, eu inventei meus companheiros e minhas situações, minhas escolhas, inventei até corpos e tempos diferentes, e falava falava falava. Eu falo muito mais sozinho. Mas daí que veio essa tradição, essa prática de inventar histórias pra mim. São fugas, sim, são escapismos, digressões. Só recorro às minhas histórias quando aqui na matéria está difícil de levar as coisas como elas se apresentam.
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Eu invento tudo, desde as justificativas até as genealogias, os desencontros, os trejeitos, os tons de voz, os olhares retos e os dissimulados, as roupas, as razões, os porquês dos medos. Tudo é de minha autoria. É um mini-mundo, um outro-mundo, um recorte do mundo onde me alojo para dormir. Normalmente reservo a meia hora antes de eu dormir para consubstanciar as minhas histórias. Não conto carneirinhos; conto histórias para mim, sobre como eu poderia ser diferente, sobre como eu poderia ter nascido em outras épocas, em outras dimensões, em outros corpos, sobre como eu poderia ter outras habilidades e outras dores, outras penitências, outros obstáculos, mas também outras delícias e outros prazeres, outros sorrisos. Há noites em que demoro horas arquitetando meus mundos, porque leva muito tempo e exige muito esforço. Há outras noites em que vinte minutos me bastam pra eu cair no sono – e fico torcendo para que nos meus sonhos eu continue nessas minhas viagens lindas por outros-eu. O problema é que raramente eu lembro dos meus sonhos, será isso um sinal?
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Nas minhas histórias não há nenhum tipo de tédio. São emocionantes como os filmes e as músicas que as inspiram. Os romances dos meus mundos são belos e forçosos, construídos a marteladas mediante crises e conquistados depois de muito embate. No fim, os corpos sempre vencem. Não há término para o número de histórias que contei sobre os diferentes eus que criei, e nem quero que haja. Quero majorá-las, incrementá-las ainda mais. Somente agora, com quase trinta anos, eu vejo que minhas histórias acabaram por se converter num modo que tenho de levar a vida. Não há como prescindir delas à esta altura – e como a idade vai pesando: já começo a me conformar com aquilo que sou, que tédio!
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Hoje mesmo experimentei uma delícia, que foi acordar antes do despertador tocar e permanecer na cama dando continuidade à história que eu criara na noite anterior. A cama quente e macia, os travesseiros bem colocados debaixo da minha cabeça e eu deitado de bruços: é o retrato do máximo conforto que já experimentei! Ali nessa posição eu fechei os olhos e criei criei criei minhas histórias, fantásticas e cheias de luz, cheias de mágica, cheias de sedução, e eu já não precisava mais me preocupar com o horário que eu deveria acordar, pois eu já estava acordado. E eu sou tão bonito nas minhas histórias, sou tão íntegro e justo, sábio, tranquilo, cheio de qualidades e virtudes: sou tão não-eu. Me agarro nos travesseiros e crio crio crio. Aí o despertador tocou. E me deu um tédio de ter que levantar da cama e ir encontrar as mesmas pessoas com seus mesmos ranços, suas mesmas dificuldades, perdidas nas mesmas reentrâncias – inclusive eu.
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Não é que as pessoas sejam más, nem eu sou mau (não de todo mau, pelo menos), mas somos repetitivos demais! É por isso que gastei e vou continuar gastando o dinheiro que ainda não tenho pra comprar roupas novas: porque quero outra casca, ao menos uma nova casca. Novos perfumes (comprei três vidros), novos tênis (pra pisar em diferentes chãos). Para cada nova história, um novo corpo. Não, as pessoas não são más, e várias até me surpreendem, me tomam por onde e quando eu não esperava, e isso me dá uma alegria louca. Eu gosto das pessoas, não vá achando que sou um ermitão autista psicótico que cria fantasias para fugir de uma realidade que lhe parece áspera. Talvez um pouco de cada (de ermitão, de autista e de psicótico), mas são esses meus temperos, meus sabores. Eu gosto das pessoas, e talvez seja por isso que elas habitam tão densamente essas minhas histórias: eu nunca estou sozinho nelas. Mas é verdade que nesses dias difíceis eu conto as horas para tomar um banho quente à noite e me deitar na cama, apagar a luz, agarrar meus travesseiros e criar mais um capítulo, com novos personagens, para um outro-eu: tediosamente sempre a mesma coisa, à noite e agora também pela manhã, pequenas doses de escapismo onde eu posso me recarregar de encantamento e voltar para a matéria. Um tédio alegre, um tédio voluntário, um tédio desejado, embora ainda sim um t[...]

Por que me perguntas?

[...]ifica não ter medo de dizer, de falar, nem mesmo de pensar. Só estar lá parado, pensando aquilo, despindo o corpo dele, já é um ato de profunda revolta, de transgressão. Só eu sei o quanto isso me custou, o quanto de suor eu precisei exalar pra me permitir imaginar aquela imagem. E vem essa gente dizer que isso não é nada? Vem essa gente dizer que a vida dela, de tantas outras, não era lugar pra isso? Vem essa gente dizer que ela não poderia ter escrito isso que ela escreveu porque ela “não viveu na pele”? “Como perguntar não ofende, qual era mesmo a orientação sexual dela”? É muito pobre, é muito triste, é muito mesquinho. E pra você que escuta e concorda: é também pra você que eu reservo o meu “vá se foder”[...]

Morreu de tanto viver... [in memoriam Márcia Arán]

Detesto reticências – odeio. Mas as coloquei no título porque trazem aquele silêncio que antecipa uma lágrima esquerda, depois uma outra, à direita, sobre os cílios inferiores. Porque os três pontos podem ser também três lágrimas, ou muitas mais, e então é meu título que chora. Meu título chora.

Hoje morreu de tanto viver, de tanto viver, uma pessoa que eu jamais imaginei sofrer de uma doença terminal. Hoje morreu uma pessoa que eu jamais quereria saber morta. Hoje morreu uma pessoa que me ensinou, que me fez aprender, e aprender a pensar, que me devolveu o encantamento pelo estudo, que me foi gentil no momento em que eu precisava de aspereza e de disciplina [não, não acredito que seu pulso ficaria cerrado para um murro e que sua voz se elevaria para uma discussão], que não odiou o meu corpo nem minha voz nem meus cabelos, que aliás não odiou nenhum corpo, e que escreveu lindamente sobre o corpo de outras pessoas que vivem sem ter um corpo previsível. Ela fez poesia sobre os corpos imprevisíveis e imprevistos. Hoje morreu um corpo, mas toda a beleza daquela pessoa nos tocou de alguma forma, e ela ainda vive em nós, apesar da morte do seu corpo. Sua morte dói, e até causa um redemoinho momentâneo de revolta por ir-se justamente aquela que não precisava (que não deveria!) ir-se de nós; revolta por saber que ela se vai e que ficam aqui entre nós muitos outros corpos mesquinhos, vis, muitos outros corpos cujos egos não lhes cabem de tão grandiosos [pobres corpos que carregam, como camelos, os egos de quem se leva muito a sério]; redemoinho de saudade por não termos podido levantar a mão em sala de aula para fazer uma última pergunta sobre aquele último texto, sobre aquele último conceito, uma última pergunta sobre aquele corpo. Porque se soubéssemos que hoje morreria esta pessoa, não teríamos chegado atrasados na sala, nem teríamos deixado de ler sobre os corpos. Ou teríamos lido mais, muito mais, e teríamos pedido pra que esse corpo que morreu hoje ficasse um pouco mais, tirasse mais uma dúvida, esclarecesse sobre mais outros corpos dos quais gostava tanto de escrever. Ou, talvez, tenhamos aproveitado tudo na medida certa, a medida certa que essa pessoa viveu até hoje.

Se é verdade que o mundo ficou mais pobre, e que talvez eu, assim como muitas outras pessoas, tenha morrido um pouco junto com este corpo que morreu hoje, também é verdade que o toque de vida que ela nos deu quando viva impulsionou e potencializou muito do que fizemos e muito do que somos hoje. Se morremos um pouco junto com ela, também afirmamos nossas vidas junto com a dela, e através dela: ela me ensinou a não ter ódio do corpo, do meu corpo, de nenhum corpo, e me ensinou a estudar o corpo para celebrá-lo. Ela uma vez me disse que eu era um ótimo aluno: a ela sou grato por ter visto em mim um corpo e uma pessoa que eu jamais supus existirem.

Esta homenagem póstuma deita com carinho as memórias que tenho dos dias que compartilhei da presença viva, fulgurante, desta pessoa que, sem modéstia, mudou minha vida. Este corpo que amanhã será velado é só uma reticência do que ela foi em vida, nas nossas vidas – é nas nossas vidas onde ela ainda vive, já sem seu corpo.

O coelho vai dar um pulo

Sempre começo comendo coelhinhos de chocolate pelas orelhas: eles não gritam de dor. Quanto a mim, reajo a qualquer dor do corpo como uma potencial doença – talvez porque me ache desde sempre doente, doente de uma síndrome que me atravessa os olhos, a espinha, a barriga. Tenho medo desse ódio que sinto do corpo, do meu corpo, e temo que ele se transforme mais adiante em coisas bem materiais e palpáveis, como um câncer, ou que ele se eleve a um grau insuportável de autonomia e me conduza ao suicídio. Quero passar a gostar do meu corpo, o que fatalmente me possibilitaria cuidar dele melhor. Se o detesto, é claro que o saboto. Sinto que é preciso reiniciar, interrompendo um ciclo que vem de tempos, promovendo uma mudança que busque aquela claridade ofuscante de fechar os olhos. Sinto que mudo de uma ilha deserta para outra: é preciso um novo emprego, uma nova atitude em relação a mim, um novo homem no mundo. Um renascer que não é sinônimo de “começar do zero”, mas um recomeço que leve em conta de modo muito sério tudo o que me trouxe até aqui – inclusive com este corpo, neste estado, com estas dificuldades e com estas belezas. Seria preciso comer meu corpo pelas orelhas. Sinto que algo de profundamente novo está porvir em mim. Sinto que vou renunciar, romper e interromper; sinto que vou largar tudo e me virar. Sinto que vou parar e que vou olhar pra trás, com o vento batendo nos cabelos e com o cenho franzido, e que vou dar de costas para manifestar meu apreço e meu desprezo por tudo, por todos que me passaram, e sinto que vou caminhar adiante. Sinto que vou virar as costas. Cansei de me censurar por dormir demais, de ter pesadelos sobre acordar às onze e meia da manhã. Se o faço, é por pura insatisfação, é um jeito de fugir de ti e deles todos. Mas se eu fugir de vocês, jamais vou me permitir ser surpreendido, ser encantado; jamais vou me deixar ficar apaixonado por ti, justamente por ti, que vem com essa juventude de olhos penetrantes que... me apaixona. Eu decidi que vou fazer as pessoas se apaixonarem por mim e comprei dois perfumes: um para o peito e outro para as orelhas: porque quero que comecem a me comer pelas orelhas.

Check-list

Prezado colega;

Solicito a remoção das unhas e lixamento das digitais dos dedos das mãos.

Em seguida, depilação com cera quente na cabeça, inclusive da barba.

Os olhos deverão ser removidos num átimo, sem vacilação. Antes disso, fure-os para que todo o líquido escorra e para que seja mais fácil pinçá-los.

É necessário que a língua seja amarrada satisfatoriamente ao para-choque de um carro, e que o carro arranque com aceleração máxima.

Se houver desmaios, proceda com medicação intravenosa que preserve a vida até os últimos momentos.

Não mate; apenas faça doer.

Completadas duas horas, certifique-se de que a medicação o manterá vivo. Verifique o pulso e os demais sinais vitais.

Fim de expediente: sua mulher e suas duas filhas o aguardam para o jantar.