cheguei ao ponto de ter um fio de cílio inflamado. um ponto dolorido no canto do meu olho esquerdo, que pulsa e incha, avermelhado. um cantinho de mim, um ponto mais ou menos profundo, um resto de olho, uma esquina pequena das minhas curvas: inflamada. aqui estou avançando a madrugada ao som do ar-condicionado da vizinha, de uma ave desregulada que canta e pia, de um cão latindo muito ao fundo, de um zunido surpreendente de silêncio que sobrepõe as demais vibrações. um silêncio ao redor, em volta do meu cílio inflamado. atravessei corredores hoje com um passo firme e um rebolado cativante, vestido em calça e camisa justas: pisando um dois, um dois, um dois, bem firme, para o solado do sapato estremecer quem me via (e ouvia) passando. numa dessas travessias, me perguntei o que eu estava fazendo lá. não por estar perdido, não por ter momentaneamente esquecido o que eu tinha para fazer. não, a pergunta era bastante consciente, consciente do trajeto do corredor e do fio de cílio, consciente de mim naquela caminhada de avestruz: "o que eu estou fazendo aqui?". percorri o corredor sem nenhuma resposta. o percurso foi silencioso, apensar de meus passos firmes. mesmo assim, aqui estou avançando a madrugada com a mesma pergunta. tenho ainda dois dias pela frente, mais tudo o que poderá advir de suas horas, de suas maldades. devo corrigir-me inteiramente para refazer a pergunta; do contrário o cílio permanecerá inflamado e o corredor, silencioso.
[os dias têm sido problemática precípua desde que retomei o exercício de "diariamente" revolver minha linguagem. acredito que parte desse interesse diz respeito à obsessão pela rotina, obsessão em desmantelar a rotina, obsessão em achar o momento final. a necessidade pelo fim é o que me faz grudar na narrativa dos dias, das sensações disparatadas de um dia, dos intervalos incoerentes dos dias. eu sei quando o dia começa, o que eu preciso fazer no seu percurso e, o mais importante, eu aguardo pelo seu fim. pois, nos seus derradeiros minutos, faço o que mais me dá prazer em um dia: adormeço.]
quando ele foi embora o dia estava como o de hoje: o sol aparecia vez que outra, impedido por nuvens um pouco cinzas. ventava muito, a ponto de uivar na quina do prédio. fazia calor quando o sol brilhava, e em seguida fazia frio quando era encoberto pelas nuvens um pouco cinzas. ele foi embora numa segunda-feira. hoje foi um dia em que aconteceu de tudo um pouco, como no dia em que ele foi embora: teve sol, teve vento, teve nuvem, teve frio, teve calor; teve suor, teve lágrima e teve sêmen; teve reconciliação e em seguida teve traição; teve dor de cabeça, teve azia. teve todos, menos ele. ele que dava consistência àquilo que eu queria, à coisa toda da minha vontade. ele que me olhava e tecia uma história inteira a partir de um gesto meu ou de uma palavra minha. ele que entendia o sintoma de um silêncio. ele hoje não houve.
acertar os ponteiros do despertador, mais cinco dias de ranger de dentes. raiva pelo chão onde rolam fios de cabelo, onde se amontoa pó, onde aranhas montam suas teias. raiva pelos tijolos todos. a solução é engolir tudo, dissipar na digestão enquanto se lê um trecho da biografia. a solução é engolir tudo. virar-se e tentar dormir. virar-se. virar-se. tentar, tentar. e quando finalmente adormecer, embarcar no sono de três, quatro horas, para despertar e ouvir os sons da vizinhança ainda acordada. há ruídos de pessoas fechando porta de carros e acionando alarmes, outras afastando móveis, luzes nas salas e cozinhas, televisões ligadas. e uma risada lá no fundo. pânico ao acordar e perceber que dormiu pouco, e que o pouco que dormiu cabe no dia produtivo de outras pessoas. e há mais cinco desses por vir. a solução é engolir tudo, de uma vez, fingir que está tudo calmo ao ler um livro. mais um relógio que não acerta minha hora.
hoje foi um dia extremamente silencioso na minha casa. por todo o lado. apenas a chuva trazia algum som. não houve sol. perambulei um pouco pela sala e pela cozinha, às vezes no banheiro. limitei-me ao interior da casa, não cheguei perto das janelas. há dias, talvez semanas, eu não vou à sacada. estou de pés descalços há mais de quarenta e oito horas. toquei com as pontas dos dedos as paredes pintadas, ásperas, deslizei os dedos e arranhei levemente as unhas no concreto. sentei-me num canto, junto da porta de entrada. permaneci ali enquanto ouvia a chuva amainar e depois retomar sua força. comi pouco. desejei ser outro, alguém diferente deste, e quis ir embora.
há momentos em que eu aposto, ou desejo acreditar, que na vida há certo equilíbrio, para não dizer mas já dizendo: justiça. penso que se tenho pouco aconchego no coração é porque tenho dinheiro sobrando no banco. penso que se tenho poucos músculos inflados, ou pelo menos definidos, é porque fui doutor aos 28. penso que se tenho poucos amigos é porque tenho muitos admiradores nem tão secretos. é imensamente triste pensar a vida nesses termos. é pobre, cinza, estreito e sufocante. é um toma-lá-dá-cá magro de qualquer coloratura ou densidade. não há nenhum equilíbrio, menos ainda justiça. há, sim, luta e disputa, ecos embaralhados. experiências desconexas que urdimos com cuidado, uma articulada com outra, criando uma linha entre tais que depois viemos a chamar de "nossa história de vida". isso não é o equilíbrio na forma de uma balança de dois braços, na qual o que falta de um lado é compensado de outro; não há nenhuma compensação. isso é equilíbrio na forma do equilibrista que se mantém sobre a corda-bamba, linha traiçoeira, rodeada pela queda. não há justiça, pois a justiça só precisou ser inventada, e só precisa vigorar, quando o equilíbrio da balança é perturbado. no equilíbrio do equilibrista, da corda-bamba, da linha traiçoeira, não existe justiça que restaure o estado ótimo do equilibrista; o equilibrista simplesmente cai da corda. isso é vida para quem não acredita que viver é algo reconfortante.
no momento em que eu morrer, peço humildemente por um pôr de sol amarelado, desses que acometem o céu quando tempestades acontecem pouco antes das dezoito, e por já ter chovido encontram-se pingos de água sobre as janelas, sobre os telhados e nas bordas das folhas das árvores, o chão úmido, e ainda se ouvem trovões distantes acompanhados pelas gotas de chuva que continuam caindo ali perto, e certo ar se movimenta fresco por entre aqueles que me jazem. apenas tranquilidade.
a Vida nos fode, nos presenteia, nos falta, nos celebra, nos prega peças, mente... e depois vai embora. pra sempre - como um namoro, um casamento. pois hoje seria mais um domingo da Vida. ela começou bagunçando meu sono. roubou minha manhã. me adulou com chuva e vento fresco. quis me anestesiar com cerveja. e já no fim, no fim do dia, no momento e no espaço onde já não cabia mais sonho ou energia, um rapaz veio me visitar. e minutos antes de ele entrar no meu apartamento eu pensei sobre quem eu apresentaria para ele. eu, ou débil? ou o frágil? ou o brocha? não tinha energia para nenhum. quando a campainha tocou, e eu arrumei meu cabelo, abri um pouco a camisa, olhei a distância o olho mágico da porta - havia um ser do outro lado, arredondado pela lente - eu fui eu onde eu não pensava. um eu que não pensava em si. e gostei de seduzi-lo, de beijá-lo, de lambê-lo. não pensei em que fazer e como fazer. junto com ele eu fui descobrindo o que a Vida queria de nós. a Vida quer pouco, mas um pouco intenso.
a minha necessidade de escrever nunca foi tão urgente, mas justamente por isso recuso a ideia de abrir a tela em branco e rasgar as linhas, de empurrar o cursor com as palavras até o fim da margem, de responsabilizar-me pelo sentido geral do que será escrito. preciso escrever, preciso, e fujo da autoria. a fuga, contudo, não me auxilia em nada a lidar com o amplo espectro de fantasias que habitam meu dia a dia, meu cotidiano. eu estava deitado agora há pouco, já com as luzes do apartamento todas apagadas, deitado de bruços, querendo dormir. impossível, pois cogitei que se escrevesse mais sobre cada grão de pensamento atordoante que me ocorre - escrita mesclada com exercícios de drama, de romance, de ficção -, se eu escrevesse mais sobre cada bandeirola fincada a força no trajeto, eu talvez seria mais calmo, mais sereno, mais consistente. são pequenas as coisas, as coisinhas sobre as quais eu poderia escrever: a) o reincidente olhar de relance para minha bunda refletida no espelho, orgulhando-me de tê-la empinado pela prática regular de exercícios nos últimos meses; b) o pavor, a aflição e o fascínio pelo vizinho do prédio ao lado, que me impedem de usar mais minha sacada e certas beiradas do meu escritório próximas à janela, temendo e desejando ser visto por ele; c) o medo da emergência de um período de ditadura no país, regido pela violência e intolerância de toda ordem, no qual seremos todos governados por quem odeia e odiaremos uns aos outros como forma paradigmática de relação; d) meu cabelo, sempre meu cabelo, comprido e cacheado, ondulado e anelado, já grisalho em estado avançado para minha idade, cujos fios caem às dezenas por dia acumulando-se no ralo do chuveiro e nos cantos dos cômodos; e) memórias pontuais, porém repetidas, de desilusão e tristeza pelos ex-amigos, ex-companheiros, que de súbito escolheram não mais falar comigo, e que eu com isso concordei pois por isso desejava, roendo as pontas das desde sempre frágeis cordas que me atam a este mundo; f) dinheiro, sua existência e a perspectiva de sua falta, produzindo o receio de dívida próxima e alimentando uma fantasia (também permanentemente atualizada) de empobrecer até o fim dos meus dias e morrer sem um tostão, sem um amigo, sem aquilo que é tão fundamental para os fracos: reconhecimento; g) a dúvida sobre a profissão de docente no ensino superior, se é esse mesmo o ofício ao qual devo me agarrar ou do qual devo me desgarrar - o que se junta ao medo de empobrecer; h) flashes de uma experiência sexual e afetiva com um homem casado, cujos primeiro e último encontros foram para mim vergonhosos, de quem nunca mais obtive nenhuma palavra, homem sobre o qual fantasio que sente pena de mim e arrependimento por ter praticado sexo comigo, lembranças e suposições que só fazem sentido se articuladas a um forro denso de neurose depreciativa que é indubitavelmente atravessada pela experiência singular que tenho do meu próprio corpo - daí, talvez, a razão de olhar reincidentemente para minha bunda refletida no espelho e orgulhar-me por tê-la empinado, ao mesmo tempo apavorar-me com o olhar do vizinho, temer a ascensão de um ditador (que no mais já existe em mim), supor minha pobreza (com que já vivo), admirar meu cabelo crespo e grisalho, magoar-me com quem um dia me magoou... colocar essas coisinhas em palavras e frases é responsabilizar-me pelo significado que vão adquirir. é ter de medir a extensão da linha, equilibrar as vírgulas, eventualmente trocar um verbo por outro e achar aquele substantivo preciso. é fazer da frase uma flecha, ou míssil. é ter de reler o que me atordoa e o que me desfaz, o que me transforma em borrão, é ter de realinhar e reagrupar em novas unidades de sentido tudo isso que me dá sentido. parar de escrever só quando sinto fome, aquela fome que dói. eu não sei pesar a frase, medi-la, não sei encontrar a proporção da descrição nem o equilíbrio da precisão em relação à sugestão. tenho que me haver com a escrita, com aquilo que escrevo, responsabilizar-me pelo sentido. escrever é responsabilizar-se. é assustador porém necessário, e eu não consigo viver sem esse terror mesmo que me falte técnica, mesmo que me falte domínio da língua, mesmo que me falte maturidade literária. estou comprometido com minhas próprias narrativas.