Eu lutei. Ele escreveu "eu lutei", e teve gente que desdenhou, que menosprezou, que achou um abuso da parte dele que viesse a público afirmar que havia lutado. Na doença eu lutei, e foi uma luta minúscula repetidas vezes no mesmo dia. Ele escreveu "luta minúscula", e isso escandalizou a todos. Cada dose dos medicamentos, cada corte da cirurgia, cada seringa e cada cânula nos meus orifícios - alguns que eu até ignorava existir: eu senti tudo no meu corpo e eu lutei com eles, contra eles, para eles. Eu lutei no meu corpo, deitado sobre a cama, tendo a comida levada à boca por outrem. Eu lutei graças a uma coisa mínima em mim que recalcitrava. Ele escreveu "uma coisa mínima em mim", e teve gente que satirizou o fim das grandes explicações econômicas, políticas e sociológicas. Deram-me um ano de vida com sofrimento, e eu lhes devolvi trinta com muito sarcasmo. Estavam todos raivosos por ele não ter morrido rápido.
não conduza jamais a batata à boca. ela arde. tem uma coisa em mim pronta pra sair - alou, amigo: seria por isso que sonhei que meu pai bradava contra minha minha mãe? era alucinante, louco, delirante, ela(ele?) reduzia minha mãe... nada. Não é isso? Não tem você e não tem eu? É isso que me corrói: a falta do outro. Por isso fico o tempo tempo (repeti) todo olhando pra sacada do vizinho.... tive dificuldades em escrever isso.... pois fiquei olhando pelo reflexo da janela da varanda da minha sala... pra ver se tinha alguém lá... E tinha! ele estava com a cabeça virada para nós, eu-tu diria, para essa coisa da qual ele não pode não escapar.... e daí me dá um escrúpulo. Pois a mim não interessa uma coisa grudenta em mim. Tudo começa com"abaixar o alto-falante do computador". GRAVE! É o vizinho? Escute..... É o vizinho? Haveria drama menor do que sofrer pelo corpo do vizinho? Selecione um drama e poste aqui. Eu pago por isso. Eu pago um real e a porra da inflação. Deixa eu digitar direitinho: d.i.r.e.i.t.i.n.h.o: eu sou normal. Eu cruzo as pessoas, eu as atravesso, MAS NÃO É ISSO, porque é sempre isso que você pensa quando a gente diz "atravesso". Que mundo é esse, no qual atravessar é quase um crime. Gente? Ficar apenas pensando na próxima frase é coisa pra fraco. O mundo subsistirá. "Apenas" o amor, né?. "Apenas", essa coisa bonita que acontece entre dois corpos. "Apenas" essa coisa da qual alguns não podem participar? Quanto a mim, permanece inalterado o estado de torpor. Venha a mim, e experimente a normalidade. Experimente: deguste; no peitinho, na bunda caída; pau murcho que não fode o cu. Normal, apenas o comum que podes encontrar no metrô. Eu e você, sem ser Minhocão ou Paulista. Você de mim sabe o quê a ponto de querer saber o que sai nas teclas? Te direi a tempo da coisa toda desvendada, escute: a coisa toda. Os pássaros dizendo e gritando, grágrágrágrá. Que merda isso, né? Até os pássaros dizem essa porra! Mas por onde mais tu haveria de dizer? Não tome corpo algum antes de saber se sua carne é apropriável, não coce a cabeça, não minta. Todos mentiram hoje, não sejamos desoneStos com quem chega. MAS EU NÃO SOU HOMICIDA, sabemos disso. No entanto, estás sempre na sacada à espera do olhar! A cabeça dell'e está aqui hoje. Não me custa cortá-la e fazê-la de minha sopa para bem amaciar aquele que é meu senhor e meu carrasco (Pausei para escrevê-lo no teclado). Meu cu ao procurá-lo. apenas crie e demande da vida. chame a vida para si. ela não existe fora. chame a vida para si.
Eu subi calmamente as escadas do hospital. Informaram-me o andar onde Maria Gabriela havia sido internada um dia antes para dar ao mundo Santiago. Resolvi exercitar as pernas um pouco. "Santiago", eu vinha pensando ao longo do voo de quase doze horas da Nova Zelândia ao Brasil, "Santiago", um nome de fé. Um nome para o qual dá vontade de ajoelhar. Eu e Douglas havíamos pensado em Valentim, mas ninguém haveria de ajoelhar-se para um Valentim. Naquela época, sete anos antes da escadaria do hospital, eu sonhava com um filho homem cujo nome não tivesse a vogal "O", pois julgava "O" demasiado masculino. Douglas, por sua vez, gostava da fé de Santiago. Mencionei que existira um San Valentín. E que existira um San Martín também. Martin seria lindo, não fosse a resistência de Douglas em relação a esse nome que, segundo ele, era uma Marta tímida. Douglas e Maria Gabriela decidiram-se por Santiago, e eu me deliciei. Havia três anos que eu e Douglas tínhamos nos separado e eu tive a certeza de que era comigo com quem ele ainda queria ficar precisamente pelo jogo persuasivo com que convenceu Maria Gabriela a adotar este nome para a criança. Douglas jamais contou para Maria Gabriela que fazíamos listas de nomes para nossos futuros filhos em dias de muito bom humor e depois de muito bom sexo. Apenas sustentou, ao longo de mais de oito meses, a escolha de um nome já escolhido para um filho que já havíamos tido. "A Gabriela é quase uma barriga de aluguel", pensei nas escadas, não fossem os olhos verdes e a voz calma que conquistaram Douglas. "Serão bons pais", eu tinha certeza. Cheguei ao andar do quarto um pouco ofegante. De imediato reconheci Douglas sentado em uma cadeira do corredor, seu pai estava ao seu lado. Douglas apoiava sua cabeça nas mãos, tinha o cabelo raspado. Dei passo por passo para não alertá-lo da minha aproximação. Queria que fosse uma surpresa e tanto. A alguns metros ele levantou o olhar, e eu vi lágrimas nos seus olhos. Ele se levantou dizendo "Ainda bem...", veio ao meu encontro, me abraçou forte e chorou muito. Quanto tempo eu quis sentir aquele abraço de novo, mas não naquele desespero de quem se agarra a um corpo no naufrágio. Maria Gabriela queria muito ter Santiago por parto normal, e aguentou as dores até quando não pôde mais. E não pôde. Foi necessária a cesariana. Todos ignoravam, ela mesma, a obstetra, a ginecologista, o pediatra, o cirurgião, que Maria Gabriela tinha sensibilidade a um dos componentes da anestesia. Choque anafilático profundo. Santiago nascera bem, nascera gordo, nascera chorando e se esparramando. A mãe entrara em coma. "E agora, como ela está?", "É preciso ter fé", me respondeu Douglas sorrindo, com lábios molhados de choro. "Eu posso ficar", eu disse. Douglas me olhou surpreendido, "Mas a gente tinha se separado porque você não queria ser pai". "Estou tendo a segunda chance e agora estou disposto a aprender".
Pôr-se à vista. Comprar roupas justas, de cores lisas e tecidos inteligentes (que pensam pelo corpo, no lugar da pele). Esperar o olhar, esperar o ônibus, esperar belo. Aguardar o pouso do olhar na pele, digo, no tecido inteligente. Senti-lo queimar, grudar mais na pele, embrulhar a pele como se a pele já fosse subcutânea. Pôr-se à vista e esperar o olhar pousar, raspar, tocar, fazer cócegas. Comprar um par de tênis inteligentes que propulsionam os calcanhares. Jamais tocar o chão. Posar e aguardar o pouso do olhar nos tênis inteligentes, que guardam pés bem hidratados. Ninguém verá os pés hidratados. O tênis inteligente vale mais que os pés hidratados; pés hidratados não vão além, não saltam, não amortecem. E no que se trata, ou quer se tratar, de hidratação, fazer balançar ao vento os cabelos também hidratados, bem cortados, brilhosos, estupefantes. Comprar shampoo inteligente que desembaraça os fios, que os reveste de uma camada de microespelhos: shampoo que pensa pelos cabelos, que os reveste, que os encapsula. Posar a cabeça imóvel na quina onde o vento ricocheteia e deixar os cabelos dançarem. O sol iluminando os fios na perpendicular, uma cabeça reluzente, porém não pensante. Quem pensa é o shampoo. Aguardar a vista, aguardar o olhar. Depilar o saco escrotal com cuidado, aparar os pelos pubianos. Envolvê-los em cuecas de tecido inteligente (um tecido que pensa pelos pelos, pelo saco escrotal, que pensa no lugar dos testículos). Aguardar a vista, esperar arrancar.