não quero mais nunca.

eu quero tua, tua, tua voz. ela espiraliza.

eu quero uma voz em cima da ponte.

forte. naquilo que houve.

eu estaria sequer neste domingo. só eu querendo. mas algo quis. não é só sobre mim.

deslizante, tem uma voz que lambe minhas escápulas. nas costas. e diz que eu tenho o sol em raios.

quero a mim em primeiro momento. estranha conexão com quem não sabe sobre quem é mesmo.

tem uma língua, um beijo, um hálito que me faz estar contigo.

sempre contigo.

basta ver que é contigo para quem eu canto e danço. é o filme "aftersun".

sempre meu pai, minha coisa um pouco capenga, que eu amo. meu pai.

um pouco sem resistência. é o meu pai. desistindo: é o meu pai.

criando um rosto na tela: é o meu pai. quem, afinal, enxerga um rosto na tela? que grita pela sua vida e que reivindica seu corpo na terra?

eu sei que ele vai morrer. pois já o faz.

eu estou preparado para o que meu pai me coloca. eu serei mais forte que ele.

 [...]inha no meu rosto que separa os lábios das bochechas. ela cresce a cada dia. do meu nariz saem pelos grossos, os únicos no meu corpo que ainda não ficaram brancos. das orelhas, também. as calças compradas em janeiro não abotoam. os dentes se acavalam. as olheiras incham. o pau murcha - quando não deve, ou quando eu não quero, e quando eu quero ele não se move. os joelhos doem. os olhos, neles já não confio - me enganam no que veem. e os sonhos, os sonhos me mostram um filme em super-oito de uma queda do terraço das Torres Gêmeas, que já nem existem.

há dias em que eu acordo e não sei onde estou. como quando bebemos demais na noite anterior e acordamos em um quarto de hotel. mas já moro aqui há oito meses. e por um tempo eu tento lembrar, ou entender, o que eu estou fazendo naquela cama usada, de molas desgastadas. ah, sim. eu moro sozinho em uma das capitais do brasil. observo a luminosidade do quarto, que entra pela janela pobremente coberta por uma cortina de lascas de plástico: já é hora passada das cinco e meia da manhã. o sol surge nesse horizonte que cabe em poucos olhos, como o mar. o céu nem suporta tantas estrelas. é questão de segundos para ouvir o pio dos pássaros que cantam somente, tão somente quando o sol sobe no horizonte. é uma calmaria com som e luz próprios. eu sei: eis um dia. eu sei: eu tenho um trabalho. eu sei: eu tenho o que comer. eu sei, mas não sei o porquê.

ontem eu bebi vinho tinto malbec. quarenta e dois reais a garrafa, valor que achei adequado para duas de cada. o bom de beber vinho é que tomo água concomitantemente. a ressaca deveria ser mais leve. no último gole, um rapaz perguntou se eu não queria ir num estacionamento pelas redondezas para bater punheta. eu topei. o pau dele é maior que eu o meu, e ele gozou antes de mim. eu precisei de mais uns minutos de movimento manipulatório autoinduzido para gozar. ele não tinha uma toalha, um papel. gozei no volante do carro, e me senti um pouco homem. ele me trouxe de volta ao meu prédio e perguntou se nos veríamos novamente. eu disse que sim, que da próxima eu levaria um dispositivo de silicone com fins penetrativos. ele ficou de pau duro. eu o beijei e desejei "boa páscoa" - como bom ateu que sou.

eu suo demais, talvez porque eu beba muita água. me acostumei ao hábito de tomar cerca de setecentos ml de água em jejum quando acordo. ajuda a me localizar quando não sei em que parte do mundo eu desperto. sair para pegar o ônibus para o trabalho é passar uma fase de um videogame em que eu sempre perco. o ônibus demora e, quando não demora, vem lotado. o caminho não é lógico. não é o mais curto caminho; é o mais longo. parte de mim se incomoda com o tempo perdido. outra parte admira a cidade, o céu, e o horizonte. é essa última que tenta sentir tesão de acordar, de trabalhar, de comer, de bater punheta. parte me mim consegue, de fato. mas a outra insiste: por quê?

sem resposta. houve tempos em que eu não me colocava essa pergunta e saía vivendo as oportunidades que apareciam. mas sempre ouvi esse eco de voz rouca: por quê? eu ignorava. era gostoso quando era assim. pois a resposta à pergunta era quase como um post-scriptum do que eu já tinha vivido, sem sabê-lo. seu efeito era retroativo. o problema é que hoje, neste instante, ou quando eu acordo, nada retroage. eu perdi a localização da minha história e a razão pela qual ela existe. fios de papel me ligam à água que bebo, ao suor, à punheta, ao ônibus e ao céu da cidade onde moro. uma tarde de domingo, às quatorze e trinta, na qual um pássaro do amanhecer pia. a delicada sensação de viver sem porquê.

uma nuvem me convida a subir. eu respondo que prefiro cair. o sol pede para brilhar, e eu recuso. prefiro a chuva. um vizinho me convida para punhetar, e eu aceito. prefiro beber, e eu bebo muito, consecutivamente. não prefiro mais fumar. prefiro o silêncio à música; a escrita, à fala. uma aranha me visita. só a peço que não se deite comigo na cama. prefiro molas desgastadas a aranhas desconhecidas. prefiro punhetas com vizinhos. prefiro o chão ao céu ou à água. talvez haja a raiz de "ferir" no verbo preferir.