[...]roca numérica. apenas uma mudança ao fim da sentença de números. às portas do "novo ano", o "novo" já havia ficado para trás como uma promessa de campanha eleitoral, para sempre protelada. pois demo-nos conta de que o antigo sempre fora a densidade consolidada por sobre a qual deslizaram todas as palavras e números do "novo" e do "futuro". o futuro, sim, era palavra e número a ser disputado; o "novo" era superado. relendo "a paixão segundo G.H." só pude sentir paz por caminhar junto dela através do inferno da coisa neutra da barata, pois a palavra e o número já não são mais neutros mas parciais. era límpido o inferno solar em que G.H. adentrou naquele pequeno quarto para, somente então, poder achar a coisa mesma da barata. de um sofrimento atroz, porém límpido. às vezes fantasio com o terror da tortura, com cenas da minha própria tortura, se porventura meu corpo cair em mãos que odeiam. tenho horror a essas fantasias, mas admito que as busco. pergunto-me se não desejo a tortura, a outorga cruel de sofrimento ao corpo, como forma extrema de atravessar o inferno solar de G.H. à minha moda. pergunto-me se não desejo uma forma de expiação ou de purificação, de punição, por ser quem sou, por ter me transformado em quem me transformei, por ter tocado ou tangenciado as vidas, todas as vidas, que já conheci. talvez a fantasia da tortura e a presunção de compreender G.H. sejam efeitos da sentença de mim mesmo, do júri que me confirma como criminoso. como se, depois de torturado e eventualmente ainda vivo, eu chegasse à minha coisa mesma de barata, eu chegasse ao meu neutro da vida para, a partir dele, poder ser violento usando palavras e números. como um mártir vivo e furioso, capaz de dizer a verdade sobre o núcleo irredutível da coisa mesma que precede e funda o humano. um sacrifício horrip[...]
...ão as coisas mais tristes na vida, como quando chega até nós o som abafado, distante, da música que embala a alegria de outros, como quando sabemos ou mais que sabemos que vamos morrer, como quando enfrentamos essa que a única certeza e a mais negada e evitada, como quando sabemos que vamos ficar vivos para ver a família e os amigos morrerem, como quando supomos que seremos os últimos a morrer de toda a extensa lista de pessoas que conhecemos, como quando imaginamos que não sobrará ninguém para lembrar de nós e que nossa falta não será sentida. triste e desolado, como o último que morre.

eu sabendo que em cada dobra do corpo haveria um resquício a ser lido, decifrado, interpretado e passado às gerações vindouras com pouca ou nenhuma deturpação em sua mensagem, em sua informação, no gérmen de vida que estaria inscrito em cada pequeno sulco das rugas das palmas das mãos, cada um deles e todos eles juntos, as linhas das mãos que eram mapas de como chegar, de como seguir em frente, em cada dobra do corpo haveria um pequeno tesouro em hieróglifo ainda se pretendendo arqueológico, lendas de uma vida cancelada em sua mais nobre tarefa, conjunto de uma biofantásticagrafia que deveria ser dada àqueles que viessem depois de mim não como mera ficção neurótica mas como mito coletivo que abraça e atravessa o mais belo gesto de toda a população de quem sou pai, um corpo envolto em uma pele e uma pele encapsulada em um destino, em um dever, em um comando, um corpo que haveria de ser procurado, escavado e posto nu ao olhar dos descendentes em todo seu brilho escravo e fosco, e mãos com linhas cartográficas que se imporiam sobre o futuro de toda a prole.
iludir: forçar crença na máscara; seduzir pelo brilho do verniz; raptar a dúvida; desintegrar os rastros que apontam para o erro e para o equívoco. escolher: errar nos termos do acerto; acertar nos termos do erro; engolir as sobras do "não" sem explodir; arrastar os restos do "sim" ao longo dos dias. saudade: escombro ou ruína do outro em mim; pedaço quebrado de vidro atravessando o peito; ato de chicotear a memória; nuvem densa e carregada carinho que chove quando choramos.
"o cheiro do fracasso impregna tão pesadamente que agora até minha pele está exalando este fedor", disse um personagem de desenho animado às 22 horas e 15 minutos de um dia de semana, num desses canais de tevê paga cuja programação é voltada para as crianças. é esta uma das corredeiras através das quais desagua o conteúdo do buraco, da fenda, do vacúolo? ou teria sido mais importante, e profilático, ter estancado o próprio cavocar que forjou o buraco que viria a ser preenchido até a borda com o fedor? durante as conversas mais profundas, mais terríveis, eu desvio o olhar do meu interlocutor e pouso a vista em algo que escapa da mirada do outro, por um instante, para formular uma ideia que não seja capturada em seu processo de feitura, para evitar o vacilo e desinteresse do olhar do meu interlocutor - que me perturba e me empurra para fora do vagão em trânsito -, e em seguida eu volto a seus olhos para dizer nada do que eu havia formulado. foi assim muitas vezes hoje. a felicidade dele um pouco enviesada, díspar em relação à cor bronzeada da pele, irredutível aos movimentos dos braços e ao emprego dos adjetivos de intensidade, me fez contornar a imensidão corporal e o continente de sentimentos para rapidamente encontrar-me atrás dele, na parte além da sua falésia, na parte de fora da  pele das suas costas, eu em frangalhos, eu em destroços, "eu me despeço; eu em pedaços". alguma força estranha varreu meus cacos na sarjeta, juntou-me na pá e me trouxe para casa num punhado. que cheiro tem o fracasso que já dura três décadas? na mesma medida em que eu desviava do olhar do meu interlocutor meu corpo se encurvava, como haste elástica torcida, com as pontas moles (mãos, pés e cabeça) que pareciam derreter-se como gelatina pouco máscula, pouco viril, pouco tesa. o fim do dia é isto: assistir ao desenho animado num dia de semana, num desses canais de tevê paga cuja programação é voltada para as crianças.
desafogar: arrancar de um estado de queda; catapultar para fora [seja o dentro qualquer um dos limites possíveis]; fluir sem resistir; reverter o processo de sufocamento por falta de ter o que viver. desacreditar: drenar o sentido, esvaziá-lo, "desafogar" o sentido; deslocar a fé de uma potência a outra; estancar o som oco da batida em uma porta onde já não mora mais ninguém. abandonar: separar; colocar para além [não necessariamente fora]; despedir-se; caminhar no sentido oposto, inverso ou avesso; fazer viver em separado, fazer viver de longe, viver depois da bifurcação ou da esquina. titubear: tremor; dar um passo a frente e outro atrás; duvidar que haverá um fim e recusar-se a por um fim; driblar a despedida ou fingir que se está indo embora, esperar atrás da porta; tocar com a mão quando não há mais esperança. luto: processo pelo qual a falta escorre e provoca erosões em tudo o que restou; estado de recolhimento nos restos; situação de lamento pela despedida do que havia de quente ou morno ao vê-lo; condição de construção de vida a partir dos escombros; o corpo que se deita na cama vazia novamente, sem nunca ter tido outro corpo ao seu lado [entendimento de que nunca existiu alguém ali, nem fora, nem dentro].
o que é mesmo aquela tristeza, o silêncio em que ela vem envelopada, a desistência de ter de recomeçar (ou o horror de ter de recomeçar), a retirada sem anúncios e sem trombetas, o recolhimento no escuro, a imobilidade entre os lençóis, a sensação de que a aposta gorou, a impressão de que a empreitada falhou, o olhar que olha sem ver atravessando as paredes, o soluço seco sem lágrimas, a frieza de uma presença distante, o conforto do vazio depois da guerra de si, em si, na qual não houve quem ganhasse?
desejo-me. neste conjunto da histórias de abandono e cômodos conjugados, separados pela parede, desejo-me, desejo aquele centro carnudo de mim, uma parte suculenta e enervada, saltitante, que jorra quando é mordida. desejo o centro, o meio, a parte entre o início e o final, a coisa espremida que dá nome à história: abandono. "qual é o nome da minha alma?" o meio do vácuo é o mais denso do vácuo, do silêncio e da indiferença àquilo que poderia existir. parado na porta da frente, me pergunto se posso entrar: se posso pisar no meio, no dentro, dentro da entrada e da saída, dentro da frente e do atrás. desejo-me nesta fase, neste grau e neste andar, neste espaço comprimido e celebrado que é o conteúdo. o conteúdo é meu amigo. a forma me trai.

mais uma vez, longo período sem escrever. houve momentos em que pensei que pudesse colocar uma ou duas linhas a respeito de uma ou duas cenas ou diálogos ou sentimentos que me tivessem ocorrido em um dia ou tarde ou noite, mas eu não pude e eu não quis. mais uma vez, longo período sem rodar a engrenagem da linguagem, longo período sem mover a cadeia dos sentidos. às vezes o desejo pedia “escreva, escreva”, e eu negava. são tantas antessalas que precedem cada palavra, e tantas portas que a sucedem, que me atordoava (e fascinava) ter que abrir a página em branco e fazer a roda da linguagem girar. agora mesmo, escrevendo este breve prólogo, quantas escolhas tive de fazer para digitar uma palavra e não outra de quase mesmo sentido – quase mesmo, portanto, não o Mesmo –, de modo a abrir uma porta específica, estrategicamente escolhida, depois de tal palavra. debati-me em várias antessalas de várias palavras já aqui nessas poucas linhas, a ponto de escrever-apagar-elaborar-reescrever muito – ou pelo menos o suficiente para chegar ao fim da introdução. e cheguei.

--XXX--
passei um longo período sem escrever, sem girar a roda, sem empurrar a engrenagem, sem movimentar a cadeia. de certa maneira censurei-me por isso, ou lamentei. até que resolvi escrever definitivamente, com sangue, em meu corpo. escolhi vinte e cinco palavras de um texto escrito por mim, de meu próprio punho e de minha própria imaginação, para deitarem na minha pele. vou tatuar nas minhas costas uma frase de um dos meus textos. quando tomei a decisão, excitei-me como se tivesse acabado de escrever um romance, um romance honesto. é que eu serei inteiramente as antessalas e as portas que precedem e que sucedem cada uma das vinte e cinco palavras que vou tatuar nas minhas costas. os caminhos que giram a roda, que empurram a engrenagem, que movimentam a cadeia estão em mim. meses sem escrever uma palavra que fosse, sobre mim ou sobre qualquer outro, e acabei por querer marcar meu corpo com minhas palavras. escolhi uma frase na qual eu não caibo inteiro: minha inteireza está na escolha estratégica dos sentidos de cada uma das vinte e cinco palavras tatuadas no meu corpo – nas antessalas que as precedem, nas portas que as sucedem. por ocasião da escrita de tal frase, senti a excitação de reconhecê-la como tatuável: um mapa labiríntico daquilo que eu sou. convido-os para entreter nos pequenos vinte e cinco espaços antecedentes e convido-os a avançar as portas dos fundos de cada palavra tatuada.

--XXX--
há mais, porém. considerem aspas duplas antes e depois de uma palavra: o que resta dela? o que fazem a uma palavra aspas duplas antes e depois? há um aviso na antessala de cada palavra advertindo aqueles que ali entretêm para não abrirem a porta mais fácil – ou a já aberta. aspas duplas antes e depois de uma palavra suspendem seu sentido rápido ou fácil e convidam a escolher estrategicamente a porta dos fundos de tal palavra. (sim, as palavras têm portas dos fundos.) aspas duplas antes e depois de uma palavra avisam: não tomem o sentido como dado de antemão; escolham, forjem o sentido desta palavra; aqui está escrito algo que pode ser outra coisa, outra pessoa. aspas duplas, no jargão acadêmico, é também aquele decalque da palavra do Outro que empregamos na construção do sentido do nosso próprio texto. em um artigo acadêmico, tese, dissertação, monografia, ensaio, aspas duplas indicam um poro aberto do texto por meio do qual acontecem a respiração e a comunicação com aqueles e aquelas que já pensaram antes de nós. quando usamos aspas duplas em um texto acadêmico, fazemos da voz do Outro a nossa por um instante com o objetivo de avançarmos o sentido do texto em direção a uma porta estrategicamente escolhida. aí aspas duplas advertem que aquilo que está compreendido entre elas não é de nossa autoria; inobstante, tatuamos um sentido estratégico da voz do Outro no nosso texto para construir um argumento, para movimentar a cadeia da linguagem apoiando-nos naquilo que já foi dito. pois: tatuarei também um par de aspas duplas na parte frontal do ombro esquerdo e um par de aspas duplas na parte frontal do ombro direito. eu sou uma pessoa entre aspas: eu sou uma pessoa cujo sentido está suspenso: eu sou uma citação da voz do Outro.

--XXX--
na fúria da escrita, acreditando-me entreaberto e já sabendo que para fazer avançar os meus sentidos eu dependo da citação daquilo que já foi dito por outrem, tatuarei mais uma frase na base da coluna, imediatamente acima das nádegas, da maneira exata como segue: “terei toda a aparência de quem falhou, e só eu saberei se a falha foi necessária.”

--XXX--
estou feliz. meus exércitos se apresentaram para lutar. o que haveria de marchar em direção ao front, às linhas inimigas? mas eis que surge o problema: não estou em guerra. estou parado dentro de casa, em um estado de potência aguardando o limiar da explosão. vibrando. pulsando. ondulando. estou feliz aqui, neste casulo de pura virtude. uma bomba de lava ou lama.
que tolo, querendo atualizar os acordes de invernos passados. que tolo, inspirando o ar e querendo que doa nas narinas, na traqueia, porque é frio. o ar nunca é frio do mesmo jeito. nunca é o mesmo inverno. nunca é a mesma neve, nem aquela que se viu no sul, nem aquela que se viu no norte. nem aquela que foi simulada com pedaços de papel a3. em papel a3 está colado "preliminar" em toda a extensão de um pensamento que não é preliminar a coisa alguma, mas que é a coisa toda de seu tempo. como eu quis chorar esta semana, pelas pessoas que se atravessam no meu caminho e pelos caminhos que se querem reivindicando lugar em mim: quiseram que eu resistisse, que eu fosse alguém forte, mas sou um brinco da orelha da princesa, pronto para quebrar. uma tristeza imensa me tomou, e me quis paralisar, que é o processo pelo qual, de modo eficaz, você me faz sentir-me feio, me faz sentir-me abjeto, nojento. menos que a barata de GH, menos que as larvas que saem do ralo do meu banheiro quando ali jogo água sanitária, menos que olhar e nausear. menos. e é um peso, uma vergonha, uma corrente que se amarra ao peito e que vou levando, movendo-me com lentidão porque arrasto no chão minha cara e tudo o que diz de mim, que atesta que eu sou eu, envergonhando o próprio chão.
pois se há: coisas só ditas no não dito, coisas só entendidas no espaço entre as linhas. pois sim: forma e conteúdo dóceis, cada qual no seu quarto contíguo e separado. há um jeito de ser, não sabe?, que deve ser no mínimo mencionado em cada tomada de voz. a imagem, a palavra, o sentido, o significado: e tudo se resume a isso. esta deveria ser uma pergunta e não uma afirmação. tenho passado mais tempo sozinho que acompanhado nas minas andanças pelas cidades. tempo de pensar em tudo: na anti-matéria, no poder de dirigir um carro, na inconveniência de ter dito algo inadequado. de não saber. de não ser suficiente para saber e para passar o saber, produzir o saber no outro. penso que o que eu sinto é uma coisa tão minha, a ponto de o outro ser totalmente desresponsável por qualquer pensamento ou afeto que me ocorrer: a responsabilidade por aquilo que sinto é inteiramente minha. quero coisas que estão fora do meu alcance - e não é justamente essa a função do querer? pela primeira vez em anos eu penso antes de digitar, e não raramente apago frases inteiras, principalmente as que abrem os parágrafos, porque não encontro a entrada para aquilo que quero dizer. denuncio e bloqueio tudo aquilo que me excita. e assim vamos mudando de cidade, de latitude, de língua, sem mexer um centímetro no que pode ser verdadeiramente interessante: a forma triste através da qual tudo ganha sentido, tudo ganha conteúdo, o não dito entre o silêncio das coisas.
parei o carro na vaga do estacionamento, desliguei o motor. situação e lugar sensivelmente diferentes daqueles de outrora, quando o sol metálico escorria pelo asfalto, pela água do rio, pela vista da cidade vizinha. eu estava apenas parado dentro de um estacionamento. apenas em silêncio com o motor parado. tive um pouco de medo, pois aquela sensação eu já havia tido dezessete anos antes: sensação de que tudo estava para acontecer, mas que a vida passava muito rápido. daqui dezessete anos eu terei 49, e isso é assustador. eu serei assustador. eu estarei sozinho. um ano passa depressa, cinco, dez; dezessete é praticamente amanhã. eu só tenho mais dezessete anos para fazer algo da minha vida, para fazer algo com a minha vida. pois eu não vou desafiar a morte. não vou postergá-la. que ela chegue; eu simplesmente vou. só por mais dezessete anos... pensei que era inútil recomeçar ou tentar fazer diferente. tudo já está terminando, em processo de finalização. há dezessete anos eu pensava "ainda vai dar tempo" ou "um dia eu farei...". hoje eu penso que dezessete anos já estão aqui.
menos uma de todas as paranóias e explicações apriorísticas sem verificação. se falo com o outro e se circulo em meio à alteridade, preciso tomá-los naquilo que são, e aquilo que são só pode ser como se apresentam. não sei há risos por detrás de todo aperto de mão, mas é mais econômico psiquicamente lidar apenas com o aperto de mão. deixo o riso, a suposição do riso ou a crença no riso para mais tarde, um pouco antes de dormir, na contabilidade diária e administrativa dos acertos e dos erros. se o outro se apresenta careca e com barba, pois bem, é com sua careca e com sua barba com quem terei de me a ver, sem nenhuma atualização de outros corpos virtuais, sem nenhuma elucubração de história de vida. reduzir as pessoas à estreiteza do modo como emergem entre as várias outras não parece uma operação de desprezo. é colocá-las num plano raso, numa tela oca, numa inteira possibilidade de ser tudo menos os meus acréscimos projetivos, meus medos vaidosos. não posso envernizar um aperto de mão, uma careca e uma barba com minhas fraquezas, nem vesti-los com meus vacilos.
qual é, me diga, e verdadeira contribuição? aquela que te deixa zonzo, aquela que te deixa sem chão? à espera por um toque, por um sinal sonoro, por uma mensagem de alguém que soube que tu estava online, é disso que se trata a espera e a promessa, a beleza e a fantasia, a gratidão e a tarde de sábado inteira subsumida por algumas páginas de word, uma térmica de chimarrão e dois e-mails de agradecimento? uma parte inteira do teu corpo que está fria, sem irrigação, quase isquêmica, insensível, enrugada e em processo de decomposição, e tu achando que é bolacha no pacote? um quadradinho online, uma foto de abdome, e basta para estragar os próximos quinze minutos? e não haveria nenhuma coragem em chorar em frente ao outro e em frente àquela que pelas costas fala de ti? haveria maior coragem? ou ela não faz nada disso e é mais sincera que tu mesmo, mais dona de si e de sua vida do que tu, mais bela e consistente? e se amanhã houvesse dois casacos de lã novos, duas camisetas, um par de sapatos, duas camisas, três perfumes: quantos reflexos no espelho ainda faltariam para um sorriso? quantos espelhos faltariam para uma folga ou férias da autocomiseração? e da beleza integral não sobra um resquício de feiúra e de vergonha, de desprezo por aquilo que o belo é? o belo não é desprezado, nunca? o esplendor sagaz de toda uma coluna tesa, rígida, jovem, não te causa inveja? o corpo morto embalsamado não te causa pena? o que haveria de se colocar entre mim e ti se é tu em quem eu penso e quem eu quero esquentar numa noite como hoje? e se haveria de que te querer, haveria de te expulsar, de te renegar, de te excluir, tão selvagem e chucro que tu é, e por isso mesmo tão sedutor e atraente? e tu não seria isso tudo, uma coisa inesperada em mim, avançando sobre minhas fronteiras, "pelos sete buracos da minha cabeça", como um salto alto avança sobre o piso, estridente, seco, impiedoso? não sou mais eu? já fui embora por ti e em ti? já estou lá, falando ainda aqui? e lá ainda não há voz? a palavra ficou ainda aqui? que desliza e fog....
parei o carro ao sinal vermelho. a faixa de pedestres à frente, o asfalto, os outros carros que aos poucos iam parando ao meu lado e atrás de mim não deixavam dúvidas de que eu estava na cidade, e na cidade grande. nos breves segundos da sinaleira fechada estava confirmada minha experiência urbana, minha experiência entre o concreto e a buzina. a vista da cidade mais próxima do outro lado do rio e suas colunas de fumaça, por do sol refletido nos vidros dos andares mais altos dos grandes prédios: era a cidade, era inegável, que me deixava exultante, cujo brilho do sol - até ele - é metálico. e na minha casa, no meu quarto, nas reentrâncias de tijolo empilhado e de casas amontoadas onde escolhi morar e descansar, reinava o silêncio citadino emoldurado pelos motores à combustão ao fundo. nenhuma pureza, nem do espaço, nem da luz, nem do silêncio. quando o sinal ficou verde, a cidade toda se abriu para mim.

eu quis falar sobre alguém e falei do ex-vizinho – de mim, em bem verdade, mas através do ex-vizinho. botei palavras no seu corpo. entretanto, não foi ele quem mais me fez pensar sobre mim hoje. por volta das cinco e meia da tarde meu celular tocou. era uma mulher. pediu para falar com Marcelo. recebo várias ligações de pessoas querendo falar com Marcelo. eu disse que o número não era mais aquele, que eu não era Marcelo. “ah, que pena... mas já aproveitando a oportunidade, o senhor já ouviu falar sobre nosso empreendimento imobiliário.... ?” e deixei aquela mulher falar sobre o empreendimento imobiliário do qual ela estava tentando me convencer a participar. “eu não tenho interesse agora; eu realmente não tenho interesse; eu não faço investimentos imobiliários.” nada adiantava para que ela se convencesse de parar de tentar me convencer. ela começou a me chamar de Marcelo. eu não a interrompi, tampouco a corrigi sobre quem eu era – do que serviria? ela tinha certeza de que eu era Marcelo. enquanto ela usava argumentos econômicos sobre a tripla valorização que se embutiria a qualquer imóvel que eu eventualmente comprasse, ou sobre a necessidade de eu confirmar presença em um feirão de imóveis a ocorrer no próximo dia para “garantir um bom lugar na fila da compra”, eu apenas pensava como era triste, imensamente triste, que essa pessoa falasse com um estranho acreditando que ele fosse alguém que não era, e que ela estivesse tentando me persuadir a comprar um imóvel quando mal tenho dinheiro para o pão. nada nela me comunicava algo, a não ser suas (as minhas?) agudas tristeza, pequenez, estreiteza. Eu pensava na tristeza dela, e ela pensava nos meus horários para amanhã, nos meus investimentos financeiros, no quanto ela precisava captar este cliente (o Marcelo) para garantir seu próprio emprego. o problema é que, ao falar de novo e de novo e de novo do corpo do ex-vizinho que me espreita, eu estou “garantindo um bom lugar na fila da compra” da minha trsiteza, da minha pequenez, da minha estreiteza. fecho-me em copas à possibilidade de o ex-vizinho não ser quem eu penso (quero) que ele seja: ele pode não ser Marcelo. não seja Marcelo.
aqui, de onde a vejo, a chuva é uma fumaça. uma nuvem, uma nódoa espessa que não cai, mas que flutua grudada ao céu. percebo o movimento da água no vidro da janela, superfície na qual a água desliza. o barulho é aconchegante. são salpiques de pingos moles nas pedras, azulejos, metais, zinco duros. é profundamente classista gostar de tempestades, gostar do som da chuva, dos raios e relâmpagos. só os admiro porque, abrigado de sua destruição e desolação, eu me refestelo nos lençóis de algodão recém lavados. e o que haveria de ser o corpo do vizinho (agora ex) senão o desabrigo, a desolação, o desespero e o anonimato de alguém a perambular nas ruas sob uma forte tempestade? o que haveria de ser o corpo do ex-vizinho senão uma imagem e uma sensação de forte desamparo? uma criptonita da vida. o corpo do ex-vizinho está se insinuando por outros corpos, pronto para capturá-los e neles se assentar. pois sim: o corpo do ex-vizinho está por aí perambulando na chuva, preparando-se para não ser mais ex, mas ser in, prestes a se atualizar na minha nova rede da vida, exibindo sua cara e sua pujança, seu gosto e cheiro fortes. ele não sorri, nem fala comigo. o corpo do vizinho é meu abandono, meu exílio, longe da minha cama morna, dos meus lençois bem lavados. é onde estou todo exposto à intempérie dos olhares dos outros.  
eu finalmente mudei para o meio da cidade, para o coração da cidade, para o centro da quadra entre os prédios. eu mudei para o espaço imerso no urbano, no concreto, nas casas empilhadas, nas luzes que nunca apagam. mudei para o trânsito e para o tumulto, para a agitação, para o barulho e para a bagunça. nunca outrora eu estive tão quieto e calmo, consistente no passo, seguro na mirada. se fico três dias sem escrever me seco por dentro. se escrevo, inundo. meu coração dispara ao ouvir motores de carros na rua. a cabeça dói pelo álcool. tudo faz parte da experiência de estar aqui, no meio de gente, no meio de gente anônima, no meio de gente que se dilui (mas que também se afirma) no mar cinza. eu me libertei do vizinho, por exemplo. não temo mais me aproximar das janelas (coisa que faço, aliás, com menos pudor do que eu fazia antes), nem impeço meu olhar de pousar nas janelas alheias (que, de modo geral, não me chama a atenção). me libertei dele e de seu corpo, e das promessas que eu vi em toda sua vida. sem dúvida ele continua existindo em mim, mas não do mesmo modo. ele está deslocado, ofuscado, obscurecido pelo brilho fosco da diluição urbana anônima. ganhei outros vizinhos. com seus problemas e com suas vidas, e com suas luzes, suas esperanças, suas belezas. troquei um vizinho por vizinhos, no plural, e isso já valeu a mudança. troquei meu singular pelo meu plural, e isso já valeu a mudança. valeu a coragem de administrar as coisas que precisavam ir embora, e fazê-las ir embora, e a coragem de assumir os erros oriundos da decisão. nunca me supus um corajoso. finalmente eu mudei para o meio de mim, com meus vinhos, no plural.
há de nascer mais um dia, como este que vejo, e mais outro por cima de todos que o antecederam. a luz do sol sobre todas as vozes exaltadas de ontem, a luz do sol sobre todo o medo, o céu pesando sobre aqueles que se escondem, o céu pesando sobre aqueles que se revoltam. mais um dia para esquecer e também mais um dia para reafirmar-se no que se crê, no que se luta, no que se aposta. o som tranquilo de aves gorjeando e cães latindo deslizando entre os rostos contritos e deformados de quem odeia e quer matar. todas as manhãs carregam essa marca incômoda, desconfortável, da paz e da beleza embaralhadas com promessas de horror.
peçam de mim um gole, uma lambida, um soco, peçam de mim uma palavra, e a terão. amaldiçoo o dia inteiro, e a noite inteira, que se acabam sem glória e sem promessa de repetição, sem zunido de festa, sem risos, sem alegria. desfaço qualquer nó ou tumba, qualquer farrapo e qualquer sarcófago, locupleto-me na morte sem ouro nem horizonte infindável. riam de mim. gargalhem. pego em armas se for preciso, pego nas rosas e nas gardênias, nas fardas, nas metralhadoras. solicitem bombas, ou livros, ou vídeos, ou música: eu os darei e lhes explicarei, todos ao reverso, todos ao contrário, as letras todas arranhadas de trás para frente, consolidando o que de mal há não só no som mas em todo o mundo criado por deus. dirijam-se ao palanque, à tribuna. haverá de falar em nome de mim e de todos vocês aquele que não tem mais voz e que se ocupa das nossas para proferir mentiras. prefira mentiras à hipocrisia, e verá quem é teu amigo. a mim nunca faltou véu, nem echarpe, nunca se deduziu coisa muito distante daquilo que eu manifestei, a não ser no dia em que fui tido como mau caráter. nada mais  injusto. de julgamentos em julgamentos vamos enchendo nosso escroto, bem avolumado, bem viril, que ostentamos em praça e tv públicas. honramo-nos e honramos a família. queríamos o pai e o filho, e o espírito santo veio apenas a calhar, como gel lubrificante para tudo o que aconteceria depois. pois venha você até mim e encontre-se, abra-me e verás o quanto há de contradição e de loucura em tudo o que falamos, desordene-se em face de mim e faça a melhor coisa que poderia fazer em vida, ou em morte, ou em coisa qualquer que não seja neste mundo: assuma o erro. errar não é humano. corra e fuja, mas haverá essas pontes e cadafalsos em sua mente onde tu estarás sempre enforcado. haverá plateia, haverá juri, haverá torcida, haverá transmissão ao vivo. queira sempre estar em volta, nas minhas costas, pressionando minhas glândulas lacrimais, lambendo minha virilha. tua barba na minha, friccionando, cantando hinos de louvor às Forças Armadas. da pele áspera sabe-se pouco, mas do sorriso macabro e da ilusão noturna não se tem dúvidas sobre as hordas que nelas avançam, em silêncio, assassinando tudo o que encontram, desde pontes até flores. consumam seus olhares em fogueiras abstratas feitas de livros em chamas, feitas de quadros em chamas, feitas de vestidos de cetim e renda, ou seda, que homens gostam de usar ao serem fodidos por outros homens. pois é isto: creiam que estarão fazendo justiça, creiam que seus juízes são os mais sábios, creiam que há lógica ou coerência, e será aí que hão de ruir e despencar, erodir, implodir. cortem minha língua e quebrem meus dedos. abram as portas no escuro.
mudei toda a disposição dos móveis em mim. resolvi botar a cama embaixo da minha janela e o sofá virado para minha parede. minha nova porta estará sempre aberta: não estou mais recluso em uma penitência, pagando pelo pecado da coragem. não estou mais radicado em exílio. mudei os móveis, mudei a geladeira, mudei as estantes de livro em mim. há uma nova vaga na minha garagem: haverá alguém a estacionar nela. cada cantinho com pó e teias de aranha, cada gaveta enferrujada, cada folha seca em mim mudou de lugar, deslocou-se. minha nova porta não terá chaves. não haverá segredo ou código para entrar em mim. haverá cada pedaço de teto para cada pedido de abrigo, para todas as noites possíveis, para todos os corpos que quiserem descansar ao meu lado.
hoje eu escrevi o seguinte, e falei para algumas pessoas:
"amar não é se esvaziar para o outro, como a colega recém opinou.
não acho que se trate de um esvaziamento de si em detrimento do outro.
não acho que se trate de oferecer ao outro uma falta nossa que o outro vem a preencher, que é chamado a preencher, que nós demandamos que preencha.
também não acho que se trate de amar primeiro a mim mesmo para depois amar outro.
amo o outro, na maioria das vezes, simultaneamente não gostando de mim ou estando pelo menos incomodado comigo mesmo. posso, na melhor das hipóteses, estar tranquilo com o que sou no ato de amar o outro.
acho que amar é dar-se, abrir-se, expor-se ao outro naquilo que se é, na medida do que se é, lidando com o outro no tamanho que ele tem. o tamanho do outro é precisamente apenas seu tamanho, sua própria dimensão, sua própria extensão e seu próprio peso, sem adicionar a ele nada (nem tamanho, nem volume, nem peso) que seja meu.
por isso, amor não tem nada, absolutamente nada a ver com liberdade."
não surtiu efeito.
me pegue pela mão, me mostre por onde tu caminhou, aponte para a casa abandonada onde tu e teus amigos costumavam brincar quando eram crianças. me pegue pela mão, me leve às ruas onde tu jogava bola e sapata. me pegue pela mão, passe em frente ao colégio onde tu estudou, contando sobre a vez em que mais te sentiu humilhado, da vez em que por primeiro se apaixonou, da professora que tu mais odiou e da que tu mais adorou, do primeiro amigo e do primeiro inimigo, da porta por onde tu saiu aos dezessete anos e nunca mais voltou. me pegue pela mão, fale sobre o por-do-sol do inverno, sobre o vento frio do inverno, sobre como tu odeia o frio e odeia tomar banho sentindo frio, sobre como tu odeia sair da cama no inverno. me pegue pela mão, conte sobre quando teu pai conheceu tua mãe e como ela roubou dele um beijo e como ele a pediu em casamento. me pegue pela mão, repita a frase que tu pronunciou ao contar a eles que, além de mulheres, tu também gosta de homens. me pegue pela mão, relembre dos apelidos que tu deu para teus irmãos mais novos e também os apelidos que eles te deram. me pegue pela mão, declare teu amor incondicional aos teus irmãos. me pegue pela mão, diga que nunca te sentiu assim com alguém antes. me pegue pela mão, me arraste para tua história, me conte histórias, seja o personagem de múltiplas histórias, mas seja o que tu puder ser e o que tu realmente foi, pegue minha mão e prometa segurá-la mesmo quando não houver mais razão.
acordei pouco antes das sete, garganta doendo, "lá vem gripe", e veio, voltei pra cama e me fechei entre as cobertas. eu tinha rolado a noite inteira, sonhando perturbações, e o lençol estava todo enrolado, desorganizado, desajustado. eu não quis levantar. não quis nada do mundo. com muita dificuldade pus me de pé às nove. entre às sete e às nove sonhei com o rosto da minha mãe desaparecendo em um retângulo de terra e cascalho, entre outros absurdos constrangedores. parece que eu queria algo do mundo, afinal. o dia transcorreu como uma tortura de sucesso. ninguém desfez minhas crenças que o mundo será melhor numa próxima vez. "o mundo" ficou martelando na minha cabeça: andei pelas ruas desertas hoje, dia nublado de nuvens cinzas, senti o vento fresco e algumas gotas de chuva na face, e pensei precisamente nisto, n'o "mundo", no que será do "mundo", que "mundo" estranho é este em que vivo, o "mundo" é este que eu vejo ou este é somente um perspectivismo tolo e, em verdade, o "mundo" é muito maior e surpreendentemente mais simples que o "mundo" que cabe na minha compreensão tacanha do que quer que seja? meu "mundo" é minha gripe hoje, o lençol desalinhado, rostos desaparecendo na terra.
vou escrever na minha pele algumas frases que crio. decidido. nada de figuras, faces, coisas aleatórias. eu que crio, eu escrevo no meu próprio corpo - que não é meu, todavia. não são frases fascinantes, nem frases eloquentes, mas são marcas que eu quero no meu corpo - e não são marcas do corpo ou para o corpo, são marcas da vida, das coisas todas que eu tive em vida, os rasgos e os ruídos da vida a 220 volts correndo por mim. não são símbolos, não são desenhos. são palavras. inscrever o significante no corpo como forma de conjurá-lo.
vivendo de todas as expectativas, as apostas: sou um jogador. esvaziando as razões pelas quais se pode viver não se vive mais. e há razões. não tive coragem de dizer a uma amiga que penso na morte causada todos os dias. minha amiga é muito viva. não penso na morte causada como um drama, como uma vingança; penso a morte causada como um fim pragmático. não estou certo, contudo, de que qualquer fim da vida possa ser considerado pragmático. não me parece que é dessa forma que a vida se finda em si mesma. é possível imaginarmos que a vida quer acabar consigo? ou a vida vai deixando de querer, aos poucos, até que desiste? "esvaziando", eu pensei hoje enquanto dirigia. mas ainda sim em pé, como um boneco que se mantém pelas dobras, não por estar inflado. esvaziando do engano, da cena, do drama. um personagem que morre, cuja vida vai desistindo dele. e outro que revolve dentro da pele podre desse ator maldito, feto inesperado, que diz: "haja tudo em meu caminho, por tudo haverei de passar, e haverá morte onde precisar haver, pois nenhum obstáculo precisa ser intransponível, nenhum corpo há de ser imortal, tudo deve perecer e saber sorrir quando é chegado seu fim".
sempre soube ao longo da vida de pessoas que ouviam vozes. apenas isto: que ouviam vozes. era intrigante pra mim essa proposição tão radical: ouvem-se vozes. é óbvio que nossa primeira consideração é: de onde elas vêm? quem as enuncia? quem são os donos das vozes? e o mais interessante é saber quem é essa pessoa que ouve, que dá atenção às vozes pronunciadas por não se sabe quem. hoje eu soube, afinal, do que se trata ouvir vozes. pois eu as escuto às vezes. ouvir vozes é pensar palavras, em primeiro lugar. eu particularmente não penso em palavras; na maioria esmagadora das vezes eu penso em imagens. até mesmo para fazer cálculos matemáticos eu uso imagens: para acrescentar três ao nove eu imagino 3 tijolos, três lacunas; para cozinhar a massa, eu imagino 5 espaços do relógio (por exemplo, dos 20 aos 25 minutos de qualquer hora) mais dois espaços pequeninos dos ponteiros. ouvir vozes não é pensar em imagens; é pensar em palavras. começa com palavras soltas, porém densas, como se fossem pedradas na mente: "viado", "incompetente", "burro", "brocha", "pedante". essas palavras podem aparecer a qualquer momento e te fazer estremecer. são pedradas mesmo. anos mais tarde, já acostumado com as palavras soltas como se fossem pedras, aparecem as frases inteiras, as frases de ordem, sempre depreciativas acerca de nós mesmos: "tu é um lixo", "tu é ridículo", "ele te odeia", "ele sente vergonha de ti", "ela te esqueceu". fica mais grave quando o pensamento se complexifica e atribui às frases declinações plurais: "eles te ignoram"; "nós não valemos a pena". hoje eu entendi o que significa ouvir vozes. é deixar de pensar em imagens, é pensar na frase, no tom da voz, no timbre, na entonação. é ler a frase como imagem, no pensamento. é acordar do cochilo pensando em "fracasso" - e a palavra fulgura como um slide show. pois não se trata de "ouvir" vozes, mas de ler vozes no pensamento.
estou um pouco desorganizado, um pouco obtuso em relação àquilo que
quero e àquilo que vi. não entendo bem o que quero para amanhã, nem
entendo o que sonhei ou de onde veio o que sonhei. espero respostas
dos outros (e haveria alguma resposta que não viesse do outro, nem que
sejam aquelas que temos que dar a nós mesmos?), respostas que nunca
vêm, cuja bifurcação me levariam para caminhos completamente
diferentes. mudo ou não mudo? permaneço ou não permaneço? aprovou-se
ou não aprovou-se? devolvo a casa ou não devolvo a casa? o ato de
devolver é sofrível, pois nunca "devolvemos" a coisa; a coisa está
sempre transformada, transfigurada, convertida, amassada, disforme por
aquilo que fizemos dela, com ela. não devolverei uma casa: devolverei
algo diferente de uma casa, algo que um dia foi um casa, com seus
compartimentos tão bem separados, tão bem climatizados, tão bem
decorados, tão bem pintados, tão bem localizados, tão bem iluminados:
não é mais uma casa. devolverei um buraco, uma caverna, uma rocha
vazada, um túnel, uma colmeia, uma ilhota, uma distopia. e onde entrarei?
esse lugar para onde vou, como me está sendo entregue? como um buraco?
estou indo morar no buraco, no túnel de outrem? espero um pagamento, o resto
majoritário do pagamento que me devem. o resto rico do meu trabalho. o resto dos
meus finais de semana, o resto de várias noites. espero que me paguem
o resto a que tenho direito - e é perverso pensar que tenho direito a
restos. o resto de amizade, o resto do sorriso, o resto do respeito.
hoje, por exemplo, vi um homem que me considera um resto esquecido (o
resto esquecido ainda goza do status de resto?). eu não o esqueci. pra
mim ele não é resto. eu não sou resto, pois nada em mim resta da vida,
nada em mim resta a viver: eu não sou hoje aquilo que de mim restou de anos
atrás.
mais uma vez: chutando paredes, descendo até o chão com a testa, ajoelhando no asfalto quente. segmentos lacunares de pessoas que preencho com todas as hipóteses e suposições. elas vêm de algum lugar, fluem para dentro de mim de uma exterioridade e se divertem. chamam meus esqueletos para dançar - os esqueletos de pessoas mortas, que eu matei, que já não estão mais na minha vida, mas que mesmo assim ainda mantêm seus restos mortais na coisa viva que é minha história: a narrativa que faço de mim. não vou destituir os mortos (os assassinados por mim) do seu lugar na minha memória, do seu espaço nas lembranças que eu resgato e aciono para contar de mim. esses estão aqui com seus restos mortais, com sorrisos em suas caveiras, mortos (assassinados) porém presentes. pessoas que eu odeio - odeio? é ódio o que eu sinto? ou o que sinto é uma janela aberta no temporal, sinto uma superfície pública vulnerável, sinto um buraco vazio exposto - uma parte de mim que é cemitério em dia de finados. uma parte de mim que é um leprosário em dia de parto. isto não é nenhuma novidade: pensei que (desejei que) hoje talvez pudesse ter sido apenas um sonho ruim. não um pesadelo, apenas um sonho desconfortável, um dia que tenha a duração e o conteúdo de um dia angustiante. não houve momento na minha vida em que eu tenha pensado que talvez o dia pudesse ter sido alguma vez um sonho bom (ou apenas, como dizem os felizes, "este dia foi um sonho!"). nenhum dos meus dias foi sonho até hoje. pensei que (desejei que) a morte talvez pudesse ser algo não totalmente expulso do campo de possibilidades de se lidar com o mundo. morrer (assassinar) pode ser uma forma de lidar com o mundo. volto a ajoelhar no asfalto quente, lidando com a vida.
não tenho medo, e é impressionante que eu não tenha medo, não tenho medo do escuro ou do breu, não tenho medo da distância nem do carro que precisarei guiar, nem da estrada, nem do preço da gasolina: em menos de quatro horas emergiu de mim, como uma Atlântida perdida, uma parte destemida, um rosto nem furioso nem benevolente, mas simplesmente calmo. um rosto que pode levar o tapa, que sofrerá com o tapa, que talvez sentirá vergonha do tapa. ainda assim um rosto, uma parte pública do meu corpo que olha para frente, em prospectiva e não em retrospectiva. o fato de eu ter morrido para algumas pessoas é bastante libertador. permite-me vaguear, nomadizar. cumpro minhas tarefas num silêncio a-egoico, como um monge, como um lavrador, como um burocrata do saber. não quero meu nome em referências bibliográficas pirotécnicas. quero meu salário e minhas alunas, meus alunos. quero poder escrever - o que não é brilhante, nem inovador, nem midiático, nem televisivo. não sei sequer qual a estrutura de um romance, não sei como planejar uma narrativa, nem como costurar uma história. não sei dar densidade aos personagens, não sei fazer ficção de longo fôlego. em verdade, domino pouco as normas do português escrito, cometo erros de grafia e de sintaxe. às vezes me cansa o exercício woolfiano de grudar as palavras nas costas de um ritmo, estetizar a onda e o fluxo das frases para focar ou adensar uma situação, um diálogo, a descrição de um espaço, a passagem do tempo, as águas. porque, a rigor, não faço ficção. não consigo criar personagens. meu mito individual de neurótico restringe muito minha capacidade criativa de fantasiar com vidas outras. não tenho mais medo nem de admitir isto: que não sou criativo e que não escrevo para além de um palmo além do meu umbigo (já ia escrevendo "nariz"). no entanto, é importante de dizer que jamais assino os comentários que faço acerca da minha própria vida. invisto na prosa, na possibilidade de encontrar palavras imprevistas e modos de narrar o que me acontece de uma maneira impensada - ou de uma maneira bastante laboriosa. jamais assino. não é meu nome que dá princípio de unidade àquilo que escrevo. não tenho medo do meu nome. se tivesse, seria ele que eu poria logo abaixo de cada parágrafo.
estou prestes a mudar. o emprego do reflexivo "mudar-me" faria mais sentido e toda a diferença. no entanto, quero salientar precisamente a beirada da iminência de trocar, renovar, substituir, refazer. como numa roupa nova que vestimos em frente ao espelho, que tocamos com as mãos, tocamos as costuras com as pontas dos dedos, num esboço de sorriso frente à nossa imagem refletida. e nos orgulhamos de cada detalhe, da cor e do caimento no corpo, dos botões: trocados, renovados, substituídos, refeitos. um novo chão onde pisar (ainda sim um chão e ainda sim pisando), novas paredes e novos tijolos em que se pode arranhar as unhas, novas divisórias que levam a novas formas de olhar, novos cheiros, novas luzes, amanheceres desconectados de qualquer glória. são apenas um sol surgindo, tomados exatamente naquilo são, sem promessas de novas vidas ou de vidas diferentes. porque minha vida permanecerá esta, se caso eu não operar mudanças no que vejo, sinto, penso, digo e faço. apenas mais um sol circundando o globo, sem nenhuma promessa de melhoria, de sabedoria, de um pau maior e mais duro, de um romance ou de reconhecimento profissional nacional ou internacional. apenas um sol me acordando, só isso, só mais uma luz, que se afasta daqueles que perdem seu significado. resquícios de vozes, que sei de quem são, chegam à minha janela. em breve não será mais minha janela, nem mais essas vozes. o mesmo sol, a mesma vida, para outras vozes e para outras janelas.
todo impacto dessa massa terrível e cinza se faz em uma parte desconhecida de mim que absorve a pancada, como um colchão pequeno mas vigoroso. não apenas os vizinhos, as suas vozes, os seus tamancos, as suas gargalhadas, as suas crianças, as suas vidas. não apenas as tempestades que batem na minha sacada, que eu vejo chegar, que eu vejo desfazer minha crença num outono primal. tudo é uma barricada de pneus em chamas contra o outro. há essa outra parte, que são os ouvidos moucos, os olhos vesgos, o corpo sincero. sou uma corrente magnética que impede um asteroide gigante de se chocar contra mim mesmo. sou os aneis de saturno embelezando um planeta mórbido. sou uma desorganização que te fascina, que te faz ficar, que te faz querer mais, que te faz estar aqui por perto.
uma semana surpreendente. descobri duas coisas: quem eu julgava me odiar comigo simpatiza; outros, que eu julgava me odiarem, de fato me odeiam. quem eu julgava me julga. é apenas fechando a porta e ficando em paz com o chão, deixando as pessoas partirem, que se pode ouvir as risadas indo embora, os comentários desaparecendo no silêncio do corredor, se afastando. no chão ainda, sendo deixado por quem te despreza. ou, de outra forma, achando formas civilizadas de evitar encontrar o amigo que está namorando e viajando e em lua-de-mel e rico. não seria suportável sem um toque de mau humor. o único mau humor com que consigo (sofregamente) lidar é o meu próprio. o mau humor dos outros considero uma afronta. tudo o que é meu eu suporto com dificuldade. precisamente por isso esta semana foi surpreendente: coisas minhas agradaram quem eu não esperava - minhas aulas, minha voz, minhas ideias, minhas discussões. meu corpo expressou sua mais concreta sinceridade em termos sexuais - novamente. quem gostou, gostou. "Queria ter um namorado, parceiro, pra todas minhas fantasias, mas que houvesse respeito, acho que isso é impossível!", ela escreveu. e é realmente impossível. é realmente intocável, irrealizável. mas ela espera alguém que a absolva daquilo que ela deseja e daquilo sobre o que ela fantasia; o parceiro e o namorado para todas as fantasias não existe. ele, em si, é a fantasia-toda. quantas camadas de dores prévias dessa mulher não recairiam sobre um homem, se acaso ele existisse, que viesse sentar-se no trono de "parceiro". localizar o sofrimento em sua própria medida, sem adicionar nem tirar nada àquilo que lhe dá tamanho, é um descanso imenso. tomar o sofrimento em seu próprio tamanho é fazer as pazes com deus. e liberar as pessoas da nossa história, desvencilhá-las, desconectá-las de nós como um cabo caído e inoperante é seguir. afastar-se dessas pessoas, as arrastadas e pesadas, que carregamos como quem carrega um saco, é também deixá-las flutuar: colocá-las em liberdade de nós. quem carrega peso é tão responsável pelo peso do que a própria pessoa pesada. nesta semana eu liberei três pessoas pesadas da responsabilidade de eu carregá-las. é ainda bonito lembrar que me dei conta disso dirigindo um carro: um peso mais pesado que eu e que me carrega.
cheguei ao ponto de ter um fio de cílio inflamado. um ponto dolorido no canto do meu olho esquerdo, que pulsa e incha, avermelhado. um cantinho de mim, um ponto mais ou menos profundo, um resto de olho, uma esquina pequena das minhas curvas: inflamada. aqui estou avançando a madrugada ao som do ar-condicionado da vizinha, de uma ave desregulada que canta e pia, de um cão latindo muito ao fundo, de um zunido surpreendente de silêncio que sobrepõe as demais vibrações. um silêncio ao redor, em volta do meu cílio inflamado. atravessei corredores hoje com um passo firme e um rebolado cativante, vestido em calça e camisa justas: pisando um dois, um dois, um dois, bem firme, para o solado do sapato estremecer quem me via (e ouvia) passando. numa dessas travessias, me perguntei o que eu estava fazendo lá. não por estar perdido, não por ter momentaneamente esquecido o que eu tinha para fazer. não, a pergunta era bastante consciente, consciente do trajeto do corredor e do fio de cílio, consciente de mim naquela caminhada de avestruz: "o que eu estou fazendo aqui?". percorri o corredor sem nenhuma resposta. o percurso foi silencioso, apensar de meus passos firmes. mesmo assim, aqui estou avançando a madrugada com a mesma pergunta. tenho ainda dois dias pela frente, mais tudo o que poderá advir de suas horas, de suas maldades. devo corrigir-me inteiramente para refazer a pergunta; do contrário o cílio permanecerá inflamado e o corredor, silencioso.
[os dias têm sido problemática precípua desde que retomei o exercício de "diariamente" revolver minha linguagem. acredito que parte desse interesse diz respeito à obsessão pela rotina, obsessão em desmantelar a rotina, obsessão em achar o momento final. a necessidade pelo fim é o que me faz grudar na narrativa dos dias, das sensações disparatadas de um dia, dos intervalos incoerentes dos dias. eu sei quando o dia começa, o que eu preciso fazer no seu percurso e, o mais importante, eu aguardo pelo seu fim. pois, nos seus derradeiros minutos, faço o que mais me dá prazer em um dia: adormeço.]
quando ele foi embora o dia estava como o de hoje: o sol aparecia vez que outra, impedido por nuvens um pouco cinzas. ventava muito, a ponto de uivar na quina do prédio. fazia calor quando o sol brilhava, e em seguida fazia frio quando era encoberto pelas nuvens um pouco cinzas. ele foi embora numa segunda-feira. hoje foi um dia em que aconteceu de tudo um pouco, como no dia em que ele foi embora: teve sol, teve vento, teve nuvem, teve frio, teve calor; teve suor, teve lágrima e teve sêmen; teve reconciliação e em seguida teve traição; teve dor de cabeça, teve azia. teve todos, menos ele. ele que dava consistência àquilo que eu queria, à coisa toda da minha vontade. ele que me olhava e tecia uma história inteira a partir de um gesto meu ou de uma palavra minha. ele que entendia o sintoma de um silêncio. ele hoje não houve.
acertar os ponteiros do despertador, mais cinco dias de ranger de dentes. raiva pelo chão onde rolam fios de cabelo, onde se amontoa pó, onde aranhas montam suas teias. raiva pelos tijolos todos. a solução é engolir tudo, dissipar na digestão enquanto se lê um trecho da biografia. a solução é engolir tudo. virar-se e tentar dormir. virar-se. virar-se. tentar, tentar. e quando finalmente adormecer, embarcar no sono de três, quatro horas, para despertar e ouvir os sons da vizinhança ainda acordada. há ruídos de pessoas fechando porta de carros e acionando alarmes, outras afastando móveis, luzes nas salas e cozinhas, televisões ligadas. e uma risada lá no fundo. pânico ao acordar e perceber que dormiu pouco, e que o pouco que dormiu cabe no dia produtivo de outras pessoas. e há mais cinco desses por vir. a solução é engolir tudo, de uma vez, fingir que está tudo calmo ao ler um livro. mais um relógio que não acerta minha hora.
hoje foi um dia extremamente silencioso na minha casa. por todo o lado. apenas a chuva trazia algum som. não houve sol. perambulei um pouco pela sala e pela cozinha, às vezes no banheiro. limitei-me ao interior da casa, não cheguei perto das janelas. há dias, talvez semanas, eu não vou à sacada. estou de pés descalços há mais de quarenta e oito horas. toquei com as pontas dos dedos as paredes pintadas, ásperas, deslizei os dedos e arranhei levemente as unhas no concreto. sentei-me num canto, junto da porta de entrada. permaneci ali enquanto ouvia a chuva amainar e depois retomar sua força. comi pouco. desejei ser outro, alguém diferente deste, e quis ir embora.
há momentos em que eu aposto, ou desejo acreditar, que na vida há certo equilíbrio, para não dizer mas já dizendo: justiça. penso que se tenho pouco aconchego no coração é porque tenho dinheiro sobrando no banco. penso que se tenho poucos músculos inflados, ou pelo menos definidos, é porque fui doutor aos 28. penso que se tenho poucos amigos é porque tenho muitos admiradores nem tão secretos. é imensamente triste pensar a vida nesses termos. é pobre, cinza, estreito e sufocante. é um toma-lá-dá-cá magro de qualquer coloratura ou densidade. não há nenhum equilíbrio, menos ainda justiça. há, sim, luta e disputa, ecos embaralhados. experiências desconexas que urdimos com cuidado, uma articulada com outra, criando uma linha entre tais que depois viemos a chamar de "nossa história de vida". isso não é o equilíbrio na forma de uma balança de dois braços, na qual o que falta de um lado é compensado de outro; não há nenhuma compensação. isso é equilíbrio na forma do equilibrista que se mantém sobre a corda-bamba, linha traiçoeira, rodeada pela queda. não há justiça, pois a justiça só precisou ser inventada, e só precisa vigorar, quando o equilíbrio da balança é perturbado. no equilíbrio do equilibrista, da corda-bamba, da linha traiçoeira, não existe justiça que restaure o estado ótimo do equilibrista; o equilibrista simplesmente cai da corda. isso é vida para quem não acredita que viver é algo reconfortante.
no momento em que eu morrer, peço humildemente por um pôr de sol amarelado, desses que acometem o céu quando tempestades acontecem pouco antes das dezoito, e por já ter chovido encontram-se pingos de água sobre as janelas, sobre os telhados e nas bordas das folhas das árvores, o chão úmido, e ainda se ouvem trovões distantes acompanhados pelas gotas de chuva que continuam caindo ali perto, e certo ar se movimenta fresco por entre aqueles que me jazem. apenas tranquilidade.
a Vida nos fode, nos presenteia, nos falta, nos celebra, nos prega peças, mente... e depois vai embora. pra sempre - como um namoro, um casamento. pois hoje seria mais um domingo da Vida. ela começou bagunçando meu sono. roubou minha manhã. me adulou com chuva e vento fresco. quis me anestesiar com cerveja. e já no fim, no fim do dia, no momento e no espaço onde já não cabia mais sonho ou energia, um rapaz veio me visitar. e minutos antes de ele entrar no meu apartamento eu pensei sobre quem eu apresentaria para ele. eu, ou débil? ou o frágil? ou o brocha? não tinha energia para nenhum. quando a campainha tocou, e eu arrumei meu cabelo, abri um pouco a camisa, olhei a distância o olho mágico da porta - havia um ser do outro lado, arredondado pela lente - eu fui eu onde eu não pensava. um eu que não pensava em si. e gostei de seduzi-lo, de beijá-lo, de lambê-lo. não pensei em que fazer e como fazer. junto com ele eu fui descobrindo o que a Vida queria de nós. a Vida quer pouco, mas um pouco intenso.
a minha necessidade de escrever nunca foi tão urgente, mas justamente por isso recuso a ideia de abrir a tela em branco e rasgar as linhas, de empurrar o cursor com as palavras até o fim da margem, de responsabilizar-me pelo sentido geral do que será escrito. preciso escrever, preciso, e fujo da autoria. a fuga, contudo, não me auxilia em nada a lidar com o amplo espectro de fantasias que habitam meu dia a dia, meu cotidiano. eu estava deitado agora há pouco, já com as luzes do apartamento todas apagadas, deitado de bruços, querendo dormir. impossível, pois cogitei que se escrevesse mais sobre cada grão de pensamento atordoante que me ocorre - escrita mesclada com exercícios de drama, de romance, de ficção -, se eu escrevesse mais sobre cada bandeirola fincada a força no trajeto, eu talvez seria mais calmo, mais sereno, mais consistente. são pequenas as coisas, as coisinhas sobre as quais eu poderia escrever: a) o reincidente olhar de relance para minha bunda refletida no espelho, orgulhando-me de tê-la empinado pela prática regular de exercícios nos últimos meses; b) o pavor, a aflição e o fascínio pelo vizinho do prédio ao lado, que me impedem de usar mais minha sacada e certas beiradas do meu escritório próximas à janela, temendo e desejando ser visto por ele; c) o medo da emergência de um período de ditadura no país, regido pela violência e intolerância de toda ordem, no qual seremos todos governados por quem odeia e odiaremos uns aos outros como forma paradigmática de relação; d) meu cabelo, sempre meu cabelo, comprido e cacheado, ondulado e anelado, já grisalho em estado avançado para minha idade, cujos fios caem às dezenas por dia acumulando-se no ralo do chuveiro e nos cantos dos cômodos; e) memórias pontuais, porém repetidas, de desilusão e tristeza pelos ex-amigos, ex-companheiros, que de súbito escolheram não mais falar comigo, e que eu com isso concordei pois por isso desejava, roendo as pontas das desde sempre frágeis cordas que me atam a este mundo; f) dinheiro, sua existência e a perspectiva de sua falta, produzindo o receio de dívida próxima e alimentando uma fantasia (também permanentemente atualizada) de empobrecer até o fim dos meus dias e morrer sem um tostão, sem um amigo, sem aquilo que é tão fundamental para os fracos: reconhecimento; g) a dúvida sobre a profissão de docente no ensino superior, se é esse mesmo o ofício ao qual devo me agarrar ou do qual devo me desgarrar - o que se junta ao medo de empobrecer; h) flashes de uma experiência sexual e afetiva com um homem casado, cujos primeiro e último encontros foram para mim vergonhosos, de quem nunca mais obtive nenhuma palavra, homem sobre o qual fantasio que sente pena de mim e arrependimento por ter praticado sexo comigo, lembranças e suposições que só fazem sentido se articuladas a um forro denso de neurose depreciativa que é indubitavelmente atravessada pela experiência singular que tenho do meu próprio corpo - daí, talvez, a razão de olhar reincidentemente para minha bunda refletida no espelho e orgulhar-me por tê-la empinado, ao mesmo tempo apavorar-me com o olhar do vizinho, temer a ascensão de um ditador (que no mais já existe em mim), supor minha pobreza (com que já vivo), admirar meu cabelo crespo e grisalho, magoar-me com quem um dia me magoou... colocar essas coisinhas em palavras e frases é responsabilizar-me pelo significado que vão adquirir. é ter de medir a extensão da linha, equilibrar as vírgulas, eventualmente trocar um verbo por outro e achar aquele substantivo preciso. é fazer da frase uma flecha, ou míssil. é ter de reler o que me atordoa e o que me desfaz, o que me transforma em borrão, é ter de realinhar e reagrupar em novas unidades de sentido tudo isso que me dá sentido. parar de escrever só quando sinto fome, aquela fome que dói. eu não sei pesar a frase, medi-la, não sei encontrar a proporção da descrição nem o equilíbrio da precisão em relação à sugestão. tenho que me haver com a escrita, com aquilo que escrevo, responsabilizar-me pelo sentido. escrever é responsabilizar-se. é assustador porém necessário, e eu não consigo viver sem esse terror mesmo que me falte técnica, mesmo que me falte domínio da língua, mesmo que me falte maturidade literária. estou comprometido com minhas próprias narrativas.
as coisas pelo meio, meio não ditas e meio olhadas, coisas pela metade, ô como me incomodam! ou olha pra mim e diz tudo o que queres ou não olha - neurótico, diriam? mas que coisa escrota seria a recusa de toda a miríade entre o olhar e não olhar? eitcha, que cansaço! ou olha ou não olha, cabra! porque não há nenhuma dúvida no olho de quem me olha: ou me olha ou me ignora. Ou me sabe aqui ou apenas se deita na rede. Eu quero falar sobre ele, sobre ele, sobre mim. Que sou eu, na verdade. Eu quero falar sobre ele, eu quero vê-lo, eu quero, eu faço tudo, que horror, eu faço tudo para que ele me veja. Oi. To de boas lendo  biografia da Virginia Woolf. Sou culto. Sou rico. Não tenho pau grande, nem barriga tanquinho - IH, PERDEU, PLAYBOY, SAI DA PRAIA QUE A BAIA É NOSSA. Não me venha com coisas meigas ou bonitas, ninguém dá uma piça por coisas bonitas. Pessoas querem aquilo que rasga seu cu. Não me cause coisa, erupção ou cândida, não me cause coisas no tumulto que já sou. Sim, ele está ali do lado, Não, ele não sabe quem eu sou, Sim, ele sabe que meu andar é o sexto, Não, ele não sabe que eu sou vindo, Sim, ele é vindo, Não, não tenho corpo como dele, Sim, ele ignora quem tem um Fiesta e um corpo normal. Sou eu. Sou eu o tempo todo no outro apartamento, e quando me dei conta disso nada mudou, sabe? eu continuei achando uma merda ser quem eu sou e uma maravilha ser quem ele é. Porque é isso, não tem uma medida, uma coisa bonita na qual o ponteiro pare ou balance. Não. Não tem. É isso mesmo, essa coisa cheia de areia, cheia de coisas esfareladas que te jogam na cara o tempo inteiro, e hoje sobretudo. Hoje mais do que nunca, mais do que eu desejaria. E eu desejei, ô, se eu desejo, e eu queria saber - alou, PROCON da Vida! - eu queria saber se o pau dele é maior que o meu. Vou ser direto e já propor o que eu quero saber. Sim, eu já sei a resposta, mas a coisa toda não gira em torno da resposta, mas da pergunta. As coisas todas girando num redemoinho feio, com dor e coisas. Coisas no meu nariz também - mas olha amiga, faz tempo que não faço. To bem sóbrio, bem coisinha, bebeu vaziozinho de tudo o que VOCÊ ME PRIVOU, sua porra. tu não sabe o que tá perdendo - e isso é sempre o que diz o narcisista louco e impossível. Eu sou possível. A frase mais linda e adequada que eu poderia escrever na porra deste teclado, com as coisas todas queimando e ficando feias, tudo isso é tão ridículo frente ao "eu sou possível", e eu sou tão absurdamente meio-fio da rua. aos pés de quem sabe pisar. Sou eu. Eu e tudo mais, a história, o sotaque, e toda a música que puder carregar. Coisas belas, ô, belíssimas. DEIXA EU SAIR COM UAM COISA CLARA: EU TO MELHOR SEM ESSA MERDA RESSENTIDA QUE É TU. merda = ralo; ressentida = esquecimento.toda essa coisa afável é porque rola $. não é porque tu é tu. É porque tu pode ser qualquer coisa que o $ pagar.
E eu não sou assim,