foi em mim diagnosticada uma doença incurável. meu intestino produz gases assim que qualquer pedaço de comida, sobretudo as sólidas, entra no meu estômago. os movimentos peristálticos se põem em marcha e a superfície das microvilosidades reage com os sucos gástricos. posso atenuar os sintomas tomando algum remédio em gel ou evitando ingerir alguns alimentos. mas nada existe no mundo que possa curar essa reação do meu corpo. isso significa que eu solto gases permanentemente, ou pelo menos enquanto eu comer. se fizer greve de fome será pior, pois o jejum prolongado provoca aerofagia, o que incrementa aritmeticamente os gases. por conta disso não saio mais de casa. recuso convites para boteco e para jantas. recuso ir a festas, a baladas e a orgias. é inconcebível praticar sexo anal sem me imaginar ejetando-me como um ônibus espacial em direção à lua. vou me separando do mundo e me subtraindo das relações, por pura vergonha.
foi diagnosticada em mim outra doença incurável. as ramificações lombares dos meus nervos que saem da coluna podem eventualmente ser atacadas pelas próprias células de defesa do meu corpo. isso produz fortes dores no abdome transverso e quase sempre acaba numa reação dérmica, cujas marcas acompanham o entorno do meu tórax, como se fossem feridas abertas por sobre as linhas onde os feixes de nervos se espalham. no mais das vezes só sinto dores lancinantes quando a água do banho (quente demais ou fria demais) passa por sobre um desses feixes de nervos - e eu tomo banho duas vezes por dia. as marcas mais severas são provocadas quando me encontro sob muita pressão psíquica, seja pela ansiedade ou pela depressão. às vezes as crises deixam cicatrizes. é como se eu tivesse sido punido com cem chibatadas. vou me separando do mundo e me subtraindo das relações, por pura vergonha.
olho para meu corpo cada dia mais, com mais curiosidade. as costas, todos os cantos do rosto, até a parte de trás dos joelhos. por debaixo da pele corre um líquido borbulhante. em torno da minha pele há uma aura estranha de vento revolto, uivante. a pele engrossa nos pés e torna-se flácida embaixo dos olhos. meu rosto cada vez mais cheio de vincos. será mesmo que já está tudo perdido? será mesmo que já perdi todos os anos, e que de agora em diante haverá um permanente velório pela minha vida que ainda não morreu? estarei eu em luto? desde quando? por que ainda não abandonei o preto da dor da perda? será que não há mais por que estar no mundo deste jeito, nesta forma, com este corpo? devo me responsabilizar estoicamente pelas tristes escolhas que fiz? devo tentar mudar algo em mim para mudar algo no mundo? devo mesmo insistir na vida, na criação de alguma vida que valha a pena; devo deixar de ser egoísta e reconhecer a benevolência do mundo ao me conceder, ou ao permitir que eu conseguisse, uma casa, roupas, comida? devo querer mais? é de mais vida que preciso? devo me fazer menos perguntas? que eu ande mais sob o sol, sob o vento, que eu me exponha mais aos olhares? que eu trabalhe mais? que eu sorria mais tentando parecer integrado, bem-posicionado, satisfeito com o percurso que me fez chegar até aqui? não posso olhar para trás e assumir que errei? posso querer despir-me do meu corpo? posso recusar esta vida sem ser censurado, sem ser criminoso, sem ser louco? posso ser apenas triste? ou tenho que dar razões da minha tristeza? elas seriam suficientes? vou me separando do mundo e me subtraindo das relações, por pura vergonha.
encontrei-te-nos-emos. pura carne sem o vinco irreparável daquilo que deve vir a ser. é uma camiseta a ser passada a ferro quente: prega de calça que, se muito insistirem, ficará marcada pra sempre. a hora qualquer, em todo o tempo possível, em que tu quiser desistir, eu sofrerei, mas entenderei e não subsidiarei com instrumentos ou estratégias. é a única ajuda que te nego desde agora. porém, se tu quiser fugir, com medo, eu te darei guarida. e se tu quiser insurgir, com raiva, eu te darei o álcool. e se tu quiser revolucionar, com força, eu me unirei a ti.
e se tu quiser mudar para outra casa, para outra cidade ou país, para recomeçar tal como eu te conheci - começando uma vida -, eu desde já apoio e peço que cuide bem dos detalhes. não vá para longe antes de ter certeza de que a latitude não remove o insatisfeito. aquilo que se deve fazer se impõe, aconteça o que acontecer, com cada vez mais força se negado. portanto, faça de primeira: vá embora, conteste, chore, grite, pergunte, acuse. do contrário, vão te deixar, vão se opor a ti, vão sofrer por ti, vão te questionar, vão te responsabilizar por crimes cujo responsável é o tempo. faça de primeira, senão o tempo te culpará pelos erros dos outros.
encontrei-te-nos-emos. que linda a tarde em que tu nasceu. não havia nuvem no céu, como se o infinito, para ti, estivesse circunscrito por uma membrana fina, longínqua, de cor azul radiante, que tu pudesse em qualquer momento, com trabalho árduo, perfurar. o sol tão imenso quanto o céu. e tua pequinês tão leve quanto uma semente. o peso da tua vida está na tua potência. o dia seguinte àquele em que tu veio ao mundo foi de pura chuva, raios e trovões, e coisas estranhas das mais múltiplas. inexplicáveis. por exemplo, pedras deslizantes e oblíquas nas quais precisei caminhar para te ver. drogas (tua mãe estava chapadíssima). acidentes de carro. por-de-sol amarelo no rio. calor e umidade atravancavam a tarde. o vento soprou forte e a temperatura amena deu lugar ao frio, anunciado pelas nuvens cinza-claro que se destacavam contra o céu escuro da noite. o mundo se revolvia pela tua chegada, te estranhando. as árvores dançaram. a água encrespou. o sino dobrou brabo. alguém estava entre nós para fazer algo diferente.
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entristeci na escrita e vou parar aqui, embora eu tivesse coisas mais bonitas para dizer sobre ele.
"Todo ser que viveu a aventura humana sou eu" (YOURCENAR, 2003, p. 267).

a da mais plástica solidão. da condição permanente de precariedade, estado de vulnerabilidade cujo volume ora aumenta, ora diminui. "todo" ser não é "todos" os seres. eu sou um ser inteiro a quem aconteceu o acidente de viver a aventura humana. nem tudo do meu ser a viveu. mas as partes minhas que viveram habitaram a humanidade esvaziada de companhia como um grito na noite chuvosa que não tem eco. a vida é um grito no vazio, sem eco. nem todo ser que vive sabe da aventura humana. há quem viva e não se aventure pelo humano. não se pode conferir qualquer precariedade humana a qualquer aventura que os seres eventualmente tenham em vida; há critérios. ser precário é condição de todo ser em vida, mas a precariedade é distribuída de maneira desigual entre aqueles que vivem. a aventura consiste em espreitar os gradientes mais intensos da precária condição de viver. a condição precária de viver sou eu. tornei-me a própria aventura, a própria e intensa precariedade. eu não sou todos os seres, mas somente aqueles que viveram a aventura humana: sou um só. como eu, outros podem tê-la vivido, mas suas condições precárias os impedem de conversar comigo. que outro tipo de aventura existe além da humana? o triste testemunho de quem só ouve a narrativa de sua própria vida por meio de rumores mal articulados pelas bocas dos outros. a flácida imagem de si mesmo que só emerge na superfície míope dos olhares dos outros. a decepcionante memória deslegitimada que não conta com nenhum companheiro para compartilhar a verdade aventureira que é ser humano. todo ser que viveu a aventura humana sou eu: sozinho.
o que esperar dos encontros, não é mesmo?, se não o choque que trepida a expectativa que temos um do outro e, dos estilhaços, fazemos um cadinho de ressentimento daquilo que esperávamos ter sido e ter tido, do quinhão que nos habilita ser humanos nem um décimo ter podido preencher, com as posturas secas e sorridentes que mandam as etiquetas para fotografias e redes sociais, a lacuna básica que nos faz seres (humanos) que sorriem para quem os despreza em busca de uma resposta, reconhecimento, se nenhuma das posturas-palavras-gestos-faces-garrafas-de-vinho-e-presentes serão suficientes para desfazer qualquer ferrugem, intoxicação ou miopia, sobre a relação mesma que está se pondo ao encontro porque precisa afirmar-se enquanto choque, estilhaço, vidro quebrado.
uma porta aberta do roupeiro, escancarada, me atira para dentro de redemoinho de bagunça, coloca em toda a superfície algo desorganizado, desigual e heterogêneo que treme a imagem que tenho do quarto. não me ocorre pensar em arrumar as camisetas, meias e casacos; quando o faço, extraio sangue da carne entre as unhas de tanto por em ordem. mortifico-me pela bola de pó que se acumula no canto do quarto, ou da sala, mas junto as pequenas bolas com as mãos sem cogitar varrer o chão, sem cogitar passar pano úmido; quando o faço, arranco partes do assoalho que se descolam do cimento graças ao excesso de desinfetante. um silêncio enganoso equilibra-se no ar frio do quarto: um cão latindo ao fundo, um carro acelerando várias quadras daqui, surpreendentemente a vizinha hoje não assiste tv no quarto ao lado; um engodo de silêncio que mais ou menos paira junto com o ar gelado. quais crueldades estão sendo maquinadas enquanto me aconchego no suposto silêncio do meu quarto? quais maldades nos aguardam para amanhã, "em mais um dia de tempo estável e temperatura amena"? ouço alguns passos andares acima, que cessam em seguida. uma porta bate. todos dormem, mas eu não. quero escavar os barulhos e quero atribuir histórias a eles. quero alocá-los no mundo, embutir sentidos nesses ruídos. quais maledicências estão sendo ditas sobre mim? qual mantra de incompetência me circunda e me eleva do chão, como névoa? o tecido da minha pele se esgarça aos poucos, instaurando vincos nas superfícies planas do meu rosto, esticando a pele grossa das mãos cuja textura se aproxima da dos papéis a4, os lábios craquelam e racham prendendo palavras que não podem sair, não agora. a boca sangra. uma desordem aparente no roupeiro, confusão de cores e tamanhos, com a porta toda aberta, escancarada. calças muito apertadas, mal costuradas, surradas do suor. camisas amarrotadas, desbotadas. não sei dizer quantos botões faltam nos suéter e nos pulôver - na verdade nem sei escrever essas palavras e ignoro a diferença entre as duas peças. ouço alguém tossindo no andar de cima: princípio de pneumonia, mulher solteira de quarenta anos, filha única de viúva, antibióticos não funcionam. sigo acordado tentando criar narrativas para aquilo que não tem ou que não merece história. crio-as mesmo assim, porque sem besuntar de memórias, de passados e de razões para existir qualquer coisa que seja eu não consigo viver neste mundo, um mundo que de mim confisca as memórias, os passados e as razões para eu existir. invisto a bola de pó de reivindicações políticas e o roupeiro esculhambado de crises existenciais. ponho significações no silêncio como etiquetas. vou desfigurando essa solidão dando nomes, profissão e signo astrológico para cada taco do piso de parquê da minha sala.
meu corpo tem estado diferente. as carnes estouram a pele. a pele tem sido rasgada e, no rasgo, tenho colocado tintas. estou bastante pintado. tenho pintas por dentro e por fora de mim. tenho rosas sangrando nos pulsos. meu corpo tem estado aguardando a morte de um jeito ansioso, e talvez alguma parte dessa tensão seja precisamente o que tem feito dele mais pujante, mais carnudo, mais polpudo. hoje, por exemplo, acreditei ser de outro a bela coxa peluda refletida no espelho, grossa e roliça. era a minha. é possível dizer, sem erro de engano grosseiro, que a precipitação em direção à morte incrementou-se. tanto mais próximo do sol, maior a claridade que incendeia o que dele se aproxima. talvez seja esse clarão, essa explosão de luz da qual meu corpo se serve agora. estou indo morrer em direção ao sol.
das razões pelas quais rastejantes reivindicações de glória fazem a pose e o viço de uma pulga à beira do ralo, precipício e abismo, despenhadeiro para um ser tão pequeno, das coisas que a pulga grita na beirada e cujos sons reverberam do fundo do desfiladeiro no qual ela inequivocamente cairá e que voltam, potentes, para o mundo todo saber que ela está prestes a cair, da palidez da pulga saltitante na beirada, borderline, esvaída de toda sua substância mas quicando como um ser cheio de vida, da mentira completa, fake news, que a pulga grita na beirada locupletando-se do eco falso que sobe de onde ela inescapavelmente descerá até o fim, já tudo sabido sobre a trapaça da pulga decidam-se afinal se a salvarão (sim, claro que o farão), se a manterão no topo do ralo (o mais baixo do banheiro), goela que engole o resquício da espuma que lava minha sujeira: pulga, tu serás salva por quem de ti precisa.
pequenos animaizinhos; não era um monstro grande, horrendo, que o atormentava. eram pequenos animaizinhos. três ou quatro vezes ao ano ele tinha certeza de que era habitado por vermes. compunham, esses animaizinhos, o reino de seus "companheiros". desde aqueles que habitavam os poros de seu nariz, causadores da acne severa, até os pequenos escorpiões, aranhas e cobras que ele supunha dormir consigo. supunha deitar-se na cama e eventualmente encontrar um desses entre os lençóis - razão pela qual sempre estendia os cobertores e batia os travesseiros na parede antes de dormir. acreditava que ao estender os cobertores e ao bater os travesseiros ele mataria os animaizinhos ou pelo menos os espantaria, faria com que fugissem. mas sabia (fantasiava...) que voltariam e que se aninhariam ali, num canto fofinho, escuro e quente. dormindo com pequenos animaizinhos peçonhentos, ele sonhava. e não sonhava com um monstro recorrente, aterrorizante. sonhava com pessoas. três a quatro vezes ao dia ele tinha certeza de que um dia teria um namorado. compunham, essas pessoas, o reino de seus "fantasmas". desde aqueles que habitavam esses sonhos diurnos, causadores de distrações no trânsito, até os pequenos amantes, maridos, amigos-coloridos que ele supunha dormir consigo. supunha deitar-se na cama e eventualmente encontrar um desses entre os lençóis - razão pela qual perfumava-se com colônia e hidratava a pele seca com creme antes de dormir. acreditava que ao perfumar-se e ao hidratar-se ele conquistaria as pessoas ou pelo menos as encantaria, faria com que voltassem. mas acordava (relembrava...) e sabia todos os cantos fofinhos, escuros e quentes da cama e de seu corpo completamente vazios, abandonados. sonhando com pessoas que o desejassem, ele acordava. pequenos escorpiões, aranhas e cobras espreitavam-no no quarto. pequenos animaizinhos;
não há garantias, não posso estar seguro nem afirmar como testemunho, mas não devo suportar até o fim. é provável que o fim chegue sutil, sem anúncio, inaudito e imprevisível, pouco antes da curva gloriosa do nascer do dia. hei de ter cansado de comer diariamente o mingau amargo da comiseração. ao que tudo indica, sofrerei de certa vertigem causada pela altura. terei dificuldades em transpor o parapeito e o farei como quando criança eu transpunha o cercado do berço. ainda não estou certo se estarei de frente, encarando o sol em meia-lua subindo a linha do horizonte, ou se estarei de costas, tocando as pontas da sombra da minha cabeça. é como um nado sem sinalização de chegada à borda da piscina. quando as palavras são duras, nenhum chão está à altura de impor-se ante a queda do corpo. cada um possui seu próprio e onipresente empuxo, sua intransferível força centrípeta, que apontam para seu não-herançável oco pesado. cada um tem sua queda, caída desde a beirada arrombada de um parapeito. não posso ter certeza.
"Além das quatro civilizações de vermes florescendo no intestino..." (HERINGER, 2016, p. 142)

a primeira civilização foi marcada pelo tribalismo, forma de vida baseada na transmissão de valores por meio da cultura oral. a primeira civilização era composta de algumas comunidades, membros que se reuniam em pequenos grupos, que compartilhavam não da mesma fala mas das mesmas crenças sobre a origem de sua existência, sobre vida após a morte e, sobretudo, sobre a natureza mágica que fornecia alimentos para todos. houve um deles que, entrevendo o comum entre o diverso das diferentes tribos, e expressando-se maleporcamente nas variadas línguas faladas dessas pequenas comunidades, uniu-as todas e pela primeira vez sob o signo de um conjunto de valores transcendentais (embora poliglotas): foi Ascaris Lumbricoides, da tribo dos nematódeos. entrou pra história como Áscaro, o Conciliador, por ter entretecido politicamente os fios da unificação que resultaram na primeira civilização. reinou por longas décadas, na qual a coexistência das diferentes culturais orais das tribos unificadas foi defendida por meio do exercício da mais fina diplomacia. o período de reinado de Áscaro é hoje conhecido como a pax lumbricaa.

a segunda civilização, diferente da primeira, foi marcada pela escravização das comunidades tribais unidas por Áscaro e pelo totalitarismo no governo dos seres. a crença de que uma raça, e somente uma, era a melhor para governar o mundo baseou-se na fé de que uma energia literalmente superior havia escolhido os cestóda como os merecedores para reinar. os cestóda eram monoteístas, ao passo que os nematódeos eram politeístas. um orador carismático e populista passou a empregar as antigas crenças ancestrais dos nematódeos para pregar palavras sobre um futuro glorioso, de uma civilização guerreira e temível, da qual seria o líder. trata-se de Taenia Saginata, ou Tênio, o Terrível (ou Tênio, o Rude). em sua ânsia por governar, Tênio dizimou as muitas tribos nematódeas que resistiram à sua pregação fanática. tinha porte pesado e tinha maneiras grosseiras, de um genuíno soldado. articulou uma brigada e marchou sobre a comunidade de Áscaro, cuja essência humilde e política obrigou-o a tentar dialogar com Tênio. as tentativas foram vãs, e Tênio assassinou Áscaro. dizendo-se emissário de uma força maior, Tênio submeteu as tribos nematódeas a um governo centralizado em seu ser, anexando territórios e escravizando a maior parte do povo. ele, Tênio, e apenas ele, decidia sobre o futuro deste que foi o primeiro império da civilização. constituiu um enorme exército do qual fez seu filho general. embora marcada pela violência, a civilização sob o reinado de Tênio aprofundou as trocas comerciais e a produção agrícola familiar. até onde guardam os registros, Tênio supostamente morreu de causas naturais depois de superar Áscaro  em tempo de duração como soberano. especula-se, entretanto, que tenha sido vítima de eutanásia realizada pelo próprio filho.

a terceira civilização aconteceu sob o reinado de Tênio Segundo, o Grande (ou Tênio, o Solitário para os solidários; ou Tênio, o Virgem para as máslínguas). Nome de batismo: Taenia Solium. não tinha o aspecto forte e rude do pai: era magro, alto, longilíneo, de aparência até frágil. porém, sua inteligência aguçada fazia com que suas astúcias fossem uma verdadeira armadilha para seus opositores. não era um líder, um populista, um carismático como o pai. Tênio Segundo era mais discreto, mais sutil, e infinitamente capaz de disfarçar suas opiniões com o objetivo de assegurar seu lugar de cabeça do império. abominava o exército construído pelo pai e odiava o longo período em que serviu as forças, mas justamente por ter passado a maior parte do tempo da sua vida na caserna podia (e sabia como ninguém) manejar os capitães de modo a transformar as tropas em seus emissários diretos junto ao povo. fez do exército um ministério público. fez do totalitarismo um status adorado. fez-se um imperador respeitado até pelos revolucionários insurgentes nematódeos. transformou alguns quartéis em bibliotecas. de meros comerciantes locais e produtores agrários familiares, Tênio, o Solitário extinguiu impostos e estimulou as trocas de riquezas entre as várias comunidades do império. e, pela primeira vez, mandou emissários para terras-além-mar, encarregados de enviar notícias a outras civilizações da existência de sua própria. entretanto, sua política de gestão interna passou a dar sinais de defasagem nos últimos anos de sua vida. apesar de combater o espírito de medo implantado pelo seu pai e de converter soldados em agentes públicos de cidadania, Tênio Segundo ainda encontrava problemas em lidar com a participação popular no seu reinado, bem como resistia a entender e deixar debater sobre regimes de governo diferentes do império. morreu velho e sem filhos nos braços de um antigo companheiro de serviço militar, que acompanhou a vida inteira do soberano atuando como seu secretário particular. esse amigo de longa data suicidou-se após os trabalhos fúnebres de Tênio Segundo e deixou apenas um bilhete: "enfim juntos novamente, agora para sempre".

a quarta e última civilização começou com um período de regência, no qual alguns generais revezaram-se no trono imperial até que se decidissem sobre que rumo a política deveria seguir. alguns defendiam a prospecção de um novo líder nematódeo, ancestral, que resgataria a pax lumbricaa; outros, mais ansiosos, apostavam em um perfil de soberano agressivo e inquisidor, crentes de que a confusão popular produzida pelo estado do governo acéfalo seria sanada com um líder forte e incisivo; outros apostavam na coroação de um dos sábios formados pela educação das bibliotecas, cuja inteligência apaziguaria o império. um dos generais a ocupar o trono durante a regência tentou dar um golpe nos demais. por três dias houve lutas, rebelião, mortes, com greves e incêndios, bloqueio de estradas. o tal general foi morto numa emboscada de radicais nematódeos. sem que a maior parte dos generais percebessem, a tribo dos enteróbios infiltrou-se em todos os escalões do exército, tornando-se maioria entre os agentes públicos de cidadania. por um longo período durante o reinado de Tênio Segundo, a tribo dos enteróbios planejou e executou o plano de imiscuir-se em todas as esferas do governo, começando pelas tropas e subindo para os altos postos, ocupando sobretudo cargos burocráticos que os cestódas não achavam digno ocupar. por décadas os enteróbios espalharam-se em todo o império, multiplicando-se discretamente e tornando-se indispensáveis para o funcionamento da gestão imperial. tal plano foi concebido pelo singelo Oxiurus Vermicularis - ou Oxioro, o Conquistador. pequeno a ponto de ser quase invisível se comparado aos solenes Tênio, o Terrível, e Tênio, o Grande, ele conseguiu orquestrar uma invasão tão silenciosa quanto eficaz em toda a máquina de gestão imperial. tornou os velhos equipamentos governamentais mais ágeis, eliminando boa parte da burocracia que sua tribo conhecia tão bem. arrojou as bibliotecas, ampliando-as. agilizou as trocas comerciais suspendendo impostos (mas aumentando juros dos empréstimos), implementou políticas de formação especializada para os agricultores. e treinou os exércitos para, em vez de matar, vasculhar e colonizar novas terras (algo que os emissários diplomáticos de Tênio Segundo não tinham e, ao que parece, nunca conseguiram, posto que jamais voltaram de suas missões em terras estrangeiras). o próprio Oxioro liderou uma missão de vasculhamento e colonização de terras além-do-império. poucos relatos temos hoje dos resultados de tal empresa. pois a civilização do império de Oxioro, o Conquistador, foi dizimada por meteoros que caíram do céu em bolas de fogo durante cinco dias ininterruptos. não há hoje documentos que provem que Oxioro tenha conseguido fixar-se em terras estrangeiras. sabe-se apenas que os remanescentes históricos dessas quatro civilizações memoráveis não são mais do que ruínas em desertos desolados, inabitáveis.
cheguei perto da janela e senti o cheiro da tinta usada para pintar as aberturas. o mesmo cheiro que senti na primeira vez que entrei pela porta do apartamento. cheiro de vida nova. lascas de realidades vindouras que vão grudando ora no nariz, ora nos olhos, ouvidos e boca. da primeira vez que entrei neste apartamento, senti minha vida toda vibrando nas paredes. quis abraçar as peças inteiras. meu quarto, por exemplo, pode ser desmembrado em dois: antessala e cama. na cama está meu íntimo, o mais íntimo. é onde eu sonho, mas somente quando eu lembro que sonho. tenho sonhado com escorpiões e seus rabos venenosos. o escritório é do tamanho de uma cozinha de um outro apartamento onde morei anos atrás. coincidentemente, ou não, aquela cozinha foi onde eu mais gostei de cozinhar e aqui é onde eu mais gosto de trabalhar. meu trabalho tem um aspecto culinário: preparações, sabores, degustações. houve uma vez alguém, não lembro quem [e, se lembro, não quero dizer quem é] me disse  que eu fazia alquimia com a escrita. não sei se cozinho as palavras. acho que não. minha escrita tem mais a ver com vômito mesmo, uma coisa irrefreável que é expulsa pelo meu corpo. não sem ressaca, não sem vergonha, não sem um gosto amargo e ácido na boca logo depois que sai, violenta. minha sala tem quatro ambientes: vestíbulo [onde guardo os tênis e sapatos, pois logo que entro no meu apartamento eu os tiro], sala de jantar [com uma mesa de dois lugares, sempre vazios e sem cadeiras], sala de estar [com uma tv imensa, potente, lisa, plana magnética] e uma sala de estar íntimo [a sacada, que é fechada, com duas poltronas sempre vazias e uma espécie de sofá oriental com algumas almofadas]. uma longa tripa bem iluminada pelo sol, de paredes brancas, vazia na maior parte do tempo. a cozinha é o tamanho da minha vontade e desejo de cozinhar: nem sempre, nem tão sincera, nem tão bonita, nem tão gostosa. mas eu gostaria de morar, mesmo mesmo, é na área de serviço: imensa, longilínea, tem até um banheiro separado, é fresquinha e é onde os primeiros raios de sol entram no apartamento; tem quatro janelas grandes que molham bastante quando chove; eu poderia deslocar uma cama de solteiro para dormir na área de serviço e a transformaria na minha suíte. e não seria isso, afinal: a crença de que sou mais adequado para a área de serviço do que para o quarto de casal? que feitiço eu me lancei, me pergunto, para que eu ficasse tão hipnotizado com a solidão? que feitiço eu lancei, me pergunto, na porta de entrada do apartamento que impede pessoas de atravessá-la? que feitiço lançaram, eu pergunto, no meu fígado para eu beber tanto tanto tanto tanto tanto e ainda assim ter uma saúde de ferro & zinco? mês passado eu tive o diagnóstico de "nódulo no fígado". vibrei! [como as paredes do meu apartamento.] morreria, enfim, de um câncer fulminante, morreria elegantemente, coroado pela sabedoria transcendental de quem tem hora para morrer. receberia as inimigas e inimigos numa maca de um hospital duro e seco, leito de morte no qual eu perdoaria suas traições e malfeitorias contra minha pessoa. daria minha bênção para continuarem suas vidas sempre lembrando da minha misericórdia e altivez. e me poria a escrever um último livro, talvez o único, no qual eu registraria meus últimos dias com marca autoral, chocante e arrasadora, que inauguraria uma nova fase na literatura nacional. chegaria a ser cogitado para o Nobel de Literatura póstumo. no dia da minha morte, sabendo que meu corpo já se entregava para a lama obscura, eu escreveria as últimas duas ou três sentenças [frases, períodos] do meu livro, com certa dificuldade devido à fraqueza e à desorientação causada pela medicação pesada, administrada para despistar a dor. \quis uma vida simples e sempre trabalhei para complicá-la/ \o corpo que odiei hoje finda sua vingança contra mim/ \hoje eu vibro pelo fim/ "oh, como foi digno até o fim!", diria até quem nunca me conheceu. o povo todo se arrependeria de não ter me conhecido. e meu funeral seria quase como um ato político da esquerda, no qual estariam presentes os nomes mais cotados para fazer frente à onda conservadora que cresce no Brasil. o caixão [simples, de madeira compensada, sem rococós e sem trabalhos de marchetaria, uma "caixa grande" literalmente, pois tanto maior é a comoção quanto menor é a pompa] seria carregado por uma multidão de anônimos, levado até uma praça ou descampado à beira do mar ou do rio, onde seria pousado sobre toras/galhos/galhetos/tocos/troncos de madeira seca. ali meu corpo seria cremado, convertido de carne em pó pelas altas labaredas coloridas de fogo. haveria palmas e lágrimas. haveria abraços e reverências. a multidão faria por mim um minuto de muito barulho, pois de silêncio minha vida já teria sido repleta. e as cinzas do meu corpo seriam recolhidas por garis em seus uniformes, pois eles sim são honrados o suficiente para lidar com meus restos da mesma forma como eu sempre os respeitei em vida, porque eles lidaram com meu lixo sem me abandonar e sem reclamar. e as cinzas do meu corpo seriam levadas para uma horta comunitária na qual seriam cultivadas hortaliças, legumes e frutas orgânicas. as cinzas do meu corpo seriam misturadas à terra. e lá seriam colocadas sementes, raízes, adubos. finalmente, numa aurora discreta, as primeiras folhas e flores alimentadas pelas cinzas do meu corpo despontariam, desabrochariam, estenderiam-se na linha do horizonte abrindo-se ao sol, ao novo sol, ao belo sol que se derramaria sobre elas. folhas e flores simples, de cor pastel, pequenas.

de volta para todo o espaço que habito, de volta da fantasia de morte e do egocentrismo, de volta da viagem egóica sobre a impossibilidade do esquecimento dos outros por quem eu sou: de volta para a concretude das paredes deste apartamento que vibram a vida que aqui levarei. o nódulo é só uma névoa no fígado, muito provavelmente algo que eu tenho desde que a primeira célula se desprendeu e fez outra de mim. nada estranho ou assustador: só uma parte de mim que desponta nos exames. o nódulo é eu coagulado. então é aquilo que eu já sabia: vida simples, de cor pastel, pequena.
voltei pra casa passeando de Uber. olhava pra ângulos e paisagens que eu nunca via quando eu dirigia meu próprio carro. a cidade abria-se inusitada, ampla. quis escrever sobre tudo o que eu via. teve histórias longas sobre moradores de rua e sobre árvores bem iluminadas: a narrativa das sementes que os puseram ali. me intriga o corpo e o tronco. e se eu parasse agora de fazer todas as coisas, e qualquer coisa, se eu parasse de agir e permanecesse imóvel na cama. e se. se houvesse um você Outro a me dar uma medida, um limite. e se. perceba que não há ponto de interrogação: pois é uma afirmação. a possibilidade de haver outras luzes, outros troncos e outros corpos não é uma pergunta que eu jogo pro além. é uma afirmação eu eu faço pra mim.
se ninguém me interromper eu vou vazando e deslizando pelo meio-fio da rua até ficar todo exposto a ti e ao teu olhar desprezante, ignóbil, pelo qual eu lambo os paralelepípedos e tomo a água da poça na esquina, em nome do teu olhar, eu como o lixo, eu durmo suspenso em desfiladeiros.
fui mesmo no instante que doía, em mim e nele. arrasei quartéis. mas me enlouquecia o chão brilhoso e as teias de aranha no teto: havia alguma esquizofrenia que impedia de entender o teto como sujo. o teto é sujo. há sujeira no teto. o chão pode ser limpo, mas o teto... buenas, continuei. ele reclamou porque botei a long neck de cerveja no sofá, escorada no braço. do sofá. maníaco por limpeza. eu quis um mundo, uma pintura em preto e branco, pode ser carvão, ou pode ser óleo, eu quero um mundo: já não faz muito que eu não reconheço a pele das minhas mãos e hoje ambas estão muito àsperas [me pergunto se estão indo embora de mim?], coisa corriqueira e sem valor no meu diaadia trouxa, que me faz ser eu mesmo trouxa e sem valor, desfazendo qualquer abismo vaidoso daqueles que querem e pensam que tÊm, mas eu que nada nem tenho meu próprio corpo que produz nódulos e manchas e pintas irregulares a seu bel prazer, meu corpo querendo ir embora, que acho estranho porque sempre foi forte e sempre pareceu querer ficar neste mundo de bosta e agora arranja um nódulo ou uma pinta, e cadê minha cerveja ah! achei, no sofá, e quisera eu morrer sabendo da morte com amigos e parentes (parentes não) e bonitinhos e adjacentes, portanto: no banheiro, certo? quando tu tira a roupa, certo? e entra, certo? a água vai caindo e te envolvendo e chicoteando, lambendo e coisando [não achei verbo adequado] a ponto de a gente escutar a água rolando na pele num som que hipnotiza e faz dormir ou faz sonhar; eu quis pisar em assoalhos neutros e descobri com dureza que não há ..... assoalhos. nada em que pisar. doem meu pés e minhas mãos. não tenho coragem em admitir que tenho artrose, embora essa doença me impedirá de escrever em algum momento. não deixe, você que está lendo, que eu pare de escrever por dor. eu permito a tortura somente neste caso: se for pra eu escrever. e escreverei toques lindos, sons e olhares, como eu sei de enquadramentos e de cheiros, e o corpo [não poderia faltar!] discreto e sem cheiro que me pousa a coroa do rei do cotidiano, nemfeionemlindo, uma palavra comprimida e sem hidratante que performa toda a secura e solidão [secura e solidão já foram juntadas antes; portanto: rever]. é a coisa mais feia do mundo esperar. pergunto-me por quê. será o sol que queima? o ar que enche? a luz que rasga? meu pai cheirava como eu cheiro hoje: pelos da perna escamando, nariz avolumando, cabelo grisalho. o cheiro da palma da minha mão é tão meu pai. e a embalagem do sabonete. e a casa: ele me acordava pra tomar água na tampa do pote do talco: um pompom vermelho dentro de uma esfera de plástico. aonde cheguei, clarice? me tira daqui. há uma [?] beleza...
Prezados [Prezadas?], boa noite [bom dia, boa tarde? mas que dia é hoje na escuridão?].

Quero manifestar meu desconforto em saber que a vida é diferente do que eu imaginava. Porque todo mundo disse, desde criança, que o mundo é imaginativo.

Eu imagino e nada acontece.

Quando acontece eu me endivido muito, porque o mundo que eu achava OK custa caro.

E também saio com dor no cu, porque o mundo real é bem dotado.

Não quero ser bonito, nem rico. Quero ser tranquilo [veja, nem feliz eu quero ser]. Por gentileza, apenas saibam que eu quero uma vida simples e leve.

Não quero tortura, nem ressentimento, nem mentira pra satisfazer o outro. Não tentem extrair dos outros uma verdade que é somente sua.

Oi, tá me lendo ainda? Desculpe, escrevo como quem caga. Haverá um momento em que escreverei palavras de amor.

Caguei,
Beijos,
Me tira daqui.
aos dezessete dias do mês de abril, numa noite de quase outono ainda verão, sequei o rosto em frente ao espelho ao sair do banho. é claro, eu já estava na segunda metade da vida. sequei o cabelo e olhei novamente para o espelho. é claro, décadas haviam se passado. aquilo que um dia fora o amanhã estava incrustado em mim, enrugando minha testa e empapuçando meus olhos. o amanhã estava chegando, pousando não como uma máscara, mas como minha própria face. aquilo que um dia fora o amanhã já me estava todo em manchas e barba branca aos dezessete dias de abril. e eis que o amanhã um dia vira ontem. o ontem estourava, derramava, acumulando-se como um obeso. é claro, a morte estava próxima. e que vida se havia passado por mim? o ontem gorducho se avolumava até os cantos da sala e da cozinha. mas não era saliente, esse ontem: sabia que haveria um dia de ser esquecido, de modo discreto, tal como chegara silenciosamente em mim meu amanhã aos dezessete dias do mês de abril. no amanhã de hoje as pessoas vão esquecer de contar histórias sobre mim, vão esquecer de lembrar de mim e do meu nome, do meu rosto. e aí meu próprio ontem, que engorda hoje minha vida, terá se evaporado como gota de água em panela quente de ferro. me diziam "um dia tu vai perceber que a vida passou..." "um dia as pequenas coisas serão mais relevantes que as grandiosas..." "um dia a gente cansa de tentar mudar os outros..." "um dia um ano passará rápido demais"; pois foi aos dezessete dias do mês de abril. me havia chegado num só dia todos os dias que outrora me avisaram que chegariam. e chegaram todos no meu rosto; cansado; torpe; caolho; flácido nas bochechas; inchado nas olheiras e no papo. de que rosto fez-se meu amanhã dos tempos de criança... ah, se eu criança soubesse... é claro, ainda era eu. no espelho ainda reconhecia no meu rosto alguns traços familiares, comuns, de cristalizada memória cotidiana, que me permitiam encontrar rastros do ontem do ontem do ontem ... do meu ontem. meu ontem tinha vários rostos. se eu seguisse cada filete do cristal da memória cotidiana eu veria meu rosto rejuvenescendo até a primeira divisão celular que me fez. hoje eu era o amanhã da minha primeira célula; torta; desproporcional; tumultuada; agitando-se no útero de minha mãe; inquieta com a recusa de minha mãe. aos dezessete dias do mês de abril finalmente lacrou-se em mim aquilo que um dia fora meu amanhã.
eu n [...]ão estou aqui por ti; estou por todos nós. estou para um tempo que precisa de mim, para um tempo que precisa de vocês mas que vocês perdem ou desinvestem. estou aqui todos os dias são dias de julgamento. dias de júri, de inspeção da narrativa que conto sobre meu passado e de investigação das suas relações com a verdade. estou aqui por todos nós, tu vê, por toda necessidade de responsabilização pelo passado. por toda a necessidade de retomá-lo, de re-invocá-lo, de lançá-lo novamente como projeção de um tempo que não é este mas que em breve será. e deverá ser. estou aqui para colocar em movimento por tudo o que corta e separa, tudo o que modifica e altera, tudo o que bifurca e cruza. todos os dias são dias de julgamento para mim, para ti, para todos nós. para quem cuida da espécie viva que 'circula a calma do nosso íntimo'. [é necessário colocar entre aspas nas apropriações das vozes de outros. não é possível simplesmente incorporar letras de música, trechos de livros como se fossem teus. não são, por mais que apareçam em uma enunciação que muda radicalmente o sentido daquilo que é citado. ainda assim, são vozes alheias ao texto e precisam ser creditadas, marcadas como exterioridades da narrativa.] estou aqui por todos nós, para garantir que nosso julgamento será justo. estou aqui para evitar ilusões e falsidades. estou aqui porque sou lúcido e porque vocês precisam de mim. estou aqui pelo hoje, pelo agora, pelo tempo presente, pela dádiva que será o amanhã. eu sou o arauto, o anunciador, a trombeta que grita [vale a pena antropomorfizar uma trombeta - que grita? não seria esteticamente mais forte humanizar o julgamento, descrever o cenário do julgamento, falar do juiz ou explicar o porquê de tu ser tão importante hoje, para mim e para todos nós?] a força de estar aq[...]
foi dado a ele um chinelo que massageia os pés. massagem bonita, coisa fina que faziam com as mãos. mas não era com as mãos: era um chinelo. quando tu pisava, massageava. permitiria mais autonomia, mais beleza. permitiria mais corpo na vida. mas o chinelo intrigou e incomodou. guerra eterna para uma punheta ou chupada. devo me culpar? devo. deve. devemos. ficaria hoje contemplando a lua num circle jerk. ela rasga o céu rápido. cospe. de uma lambida já fiz minha negação.
encontrou uma doçura no caminho de volta pra casa. tal qual coisa de açúcar, no seu corpo desagregou-se toda, irradiando-se. ainda encontrava algumas pedras pontiagudas e mal-cheiros em alguns de seus trajetos. eram impossíveis de desaparecer por completo. mas já era capaz de distinguir o gosto do doce. escapava aos poucos do destino de ser macabeia. mas não estava a salvo por completo. havia ainda a chance de morrer achando-se especial, num sopro único e último de esperança: na hora de brilhar. urdia aos poucos fios finos, sutis, de um véu quase transparente que talvez deixaria cair sobre o rosto. uma expressão de presença cautelosa, de presença que está ciente mas que se mantém em leve distância do momento intenso. para não ser macabeia, passava rente às incandescências do presenteísmo da vida, mesmo sabendo delas. pois sabia. já as via. agora, porém, passou a tropeçar nelas. mais recentemente, conseguiu sentir seus cheiros. hoje lambeu.
cruzando os domínios da rotina, o firme capuz da rotina, bagunçando um pouco o relógio biológico (como se o tempo estivesse inscrito na carne), transformando a madrugada num viveiro, num canteiro, numa horta escura e silenciosa onde cresce a dúvida: quem quer? da qual desdobram outras dúvidas: quem teria a coragem de querer? quem é esse que quer? posso supor que exista esse que quer? nada mais são além de variações da simples e direta dúvida "quem quer?". nem em um leilão público a pergunta é mais simples. no leilão, "quem dá mais?" é uma pergunta muito densa. supõe que alguém queira e que alguém tenha o que dar em troca com o objetivo de ter. a dúvida tipicamente noturna é outra. quer saber de algo mais elementar, mais conciso, quer saber da pequenina parte fundamental, da mínima partícula comum dos seres urbanos: querer.
eu posso, na verdade, falar de pedaços, fatias ou cortes. cada um tem sua história. cada um grita mais alto que o outro. mas tem algo que atravessa os pedaços, fatias ou cortes: a coisa separada de si. é, na verdade, a primeira coisa que vivemos, acredito. nos tiraram de algum lugar de onde jamais sairíamos. as mãos e os pés já se separam no primeiro choro: e eu quero estar com os vizinhos que cantam Djavan - e eles contam com backvoice inclusive. estarei eu no apartamento certo? claro que não estou. ...."que me remete ao frio que vem lá do sul"... isso é a coisa menos descobridora do mundo. mas abre algo, o frio: o frio abre. porque agride e fragiliza, e porque marca uma aproximação dos corpos que o verão apenas põe em urgência. a urgência sempre houve, ela atravessou o frio. eu posso recusar tudo, o vínculo em si. a única coisa que eu sei do vínculo, e eu posso acabar com minha vida toda por acreditar no vínculo. eu quero legislar sobre o vínculo: tu não pode sobre mim e eu não posso sobre ti. nem tua voz que grita cantando no outro apartamento. que bonita tua voz que me chega do outro apartamento. ela canta uma canção de resistência. devo eu lembrar da sua canção quando eu estiver num porão sendo torturado? é a minha fantasia: torturado. minha epifania: vocês cantando no outro apartamento. "passar a noite em claro dentro de ti". jamais poderia. quero saber o que posso fazer de fantástico para poder apresentar-me dentro de alguém. (temo jamais poder.)
o dia em que eu não souber onde eu estava, qual meu propósito, a bebida que eu bebia, com quem eu estava, o que eu fazia, os filhos que vocês tiveram, e que eu eventualmente teria, os pais que eu tenho.... pois se fosse hoje: eu aceito ficar sozinho sob o protesto de ser o primeiro a saber que não posso estar sozinho porque minhas fraldas estão cheias ou porque os drenos não se desligam sozinhos. desliguem tudo, eu quero somente paz. deixem-me. uma coisinha pequena que se esvai. sozinho.