[...]ença, o corpo sentado ao meu lado: me recolocou perguntas cujas respostas me têm sido confiscadas. o modo como avisou que vinha, como entrou em minha casa, como me olhou, como me ouviu, e pediu para ver meu sexo, tudo isso atualizou experiências já tidas com outros homens - tristes. em parte, tentei não vacilar nos mesmos erros do passado, embora minha atitude 'bela, recatada e do lar' não seja a mais adequada para quem pretende conviver com o animal selvagem do desejo, nem seja a mais performática para quem se traveste de o-outro imaginando-se o-único. mas tenho respeitado o silêncio e a distância nesses dias que se passaram. não sem expectativa de alguma palavra, qualquer que seja, uma tal que não demorarei para responder com acolhimento. (será que agindo assim estarei incorrendo em outro erro? a ver.) não foi somente pelos cabelos ou pela barba, nem somente pela roupa. pode bem ter sido, entre outros, pela voz. e a história que aquela voz contava, isso sim me reaproximava dos trechos inacabados de encontros pregressos com homens. alguns dizem: "gostou da postura de homem..."; não se trata de postura, mas da forma como ele narra a própria história, escolhendo quais palavras e dando quais entonações, impondo becos sem saída a certas frases; lacunas daquilo que ele me contou dele mesmo, foi nelas onde me grudei e me enganchei. nas duas horas em que ele esteve aqui, eu adiei tocá-lo. e quando toquei durou quinze minutos - vinte, no máximo. para agora repetir as imagens e cheiros, e evocá-los, colonizando o que poderá ser uma segunda vez: a expectativa é que a vontade dure semanas. não tenho como garantir que haverá segunda vez. nem ele. nem ele verdadeiramente quer ter segunda vez. nem verdadeiramente ele quer. sou apenas eu quem quer verdadeiramente: respostas às perguntas que faço, um alinhavo mais consistente com os pedaços de homens que conheço. montar uma figura, senão acabada, pelo menos agregada a ponto de ter uma voz que me conte suas histórias sem becos, nem atalhos. que seja, eu aceito, o contorno vazado, furado, de um homem: mas de um homem que também me dirija perguntas. sem essa de caminhos sem saídas, sem essa de dead ends. meu toque foi feito para durar horas - que ele volte e exp[...]
[...]inuei crescendo, mas não parei de fantasiar. talvez tenha sido esse o problema. não entendia o porquê de cessar a imaginação sobre quem eu poderia ser, sobre quem eu poderia ter sido. ativamente, eu criava mundos, e pessoas habitantes desses mundos, e histórias de vida para as pessoas habitantes desses mundos. grandes ficções. em vários momentos sinalizaram que eu não era mais criança e que, portanto, aquilo deveria parar. passei a fantasiar escondido; passei a falar sozinho. da transição entre a brincadeira de criança para a argumentação de vida adolescente, mantive essa alça imaginativa que funcionou por anos como um corrimão. falava sozinho com a mesma fecundidade com que ouvia músicas e criava cenas para os sons. não me recordo de ter tido um corpo desconexo, desajeitado, mas lembro de comentários sobre minha voz. é isto: não ouvia o som da minha voz, mas os outros ouviam e a detestavam. não porque era feia, mas porque não era apropriada a um jovem adolescente. esperava-se do jovem adolescente que fosse mais decisivo em seu gênero, em sua masculinidade - tarefa difícil mesmo pra nós, hoje com quarenta. pensando melhor: talvez detestassem minha voz não pelo seu tom, mas porque eu a gastava falando com pessoas que não existiam. eu falava sozinho porque estava sozinho, porque me sentia sozinho. e esse era o problema, propriamente, e não o fato de falar sozinho. eu criava mundos, e nesses mundos eu tinha muito pra dizer, havia muitos pra me ouvir. não cessei, nunca - pelo menos não até às portas dos quarenta - de fantasiar: fazer o exercício de querer outra vida. não nego que talvez essa brincadeira tenha se alongado por anos demais ou que de brincadeira não tenha nada. talvez seja mesmo um traço patológico. não tenho medo ser doente. tenho medo de me encontrar já na segunda metade da minha vida e ainda depender do vintém do seu olhar. eu não cessei de fantasiar outras vidas porque a pura imaginação era o melhor aprendizado que tive na infância, porque era a forma como alguma cor poderia sobressair no morno quadro de natureza morta do dia a dia do interior do brasil da década de noventa. eu imaginei, eu fantasiei, eu falei com meus personagens por anos. continuo falando com eles, com gente que não existe. essa gente que não existe ainda se desdobra em torno de mim, essa gente se coloca ao meu redor como personagens que são. olho para elas com carinho e as escuto em suas demandas, essa gente que não existe, e pra elas dirijo perguntas sobre por que da sua gargalhada e por que do seu nervosismo. um monte de gente que não existe, das quais não tenho medo nem quero me ver livre, com quem mantenho diálogos e sobre quem construo razões para serem bobas, tímidas ou desonestas. nada é estranho ou doentio. enquanto imaginação, enquanto fantasia, é mais inocente do que men[...]
[...]ei se foi o meu ferro quente demais ou se tua pele muito jovem, mas deixei em ti uma marca que não vai desaparecer tão fácil, tão cedo, por completo. tu sabe disso. os açoites que te deram no dia em que nos conhecemos, nem eles são mais marcantes do que eu na tua vida, no teu corpo. eu permaneço fiel àquele homem que chegou carregado por três amigos, aquebrantado e torcido, com a pele das costas em lascas finas, com a carne dos músculos lacerada e com alguns ossos das costelas à mostra. tu foi jogado na cama inconsciente, envolto num lodo de terra, urina e sangue. nós te banhamos, limpamos de ti a sujeira cruel que te tinha abatido. eu, especialmente, me esmerei por horas para fazer os curativos na imensidão do teu corpo, da nuca às nádegas, de ombro a ombro, tentando costurar o que ainda poderia ser costurado dos nacos pendurados. os pedaços ainda vivos de ti: tu os deu, eu os recebi e eu os retribuí. eu reuni teus estilhaços e velei tua convalescença por mais de um mês, trocando os curativos uma vez ao dia, ritualmente, com respeito pela tua dor, pela tua revolta. era um homem forte, robusto, que eu tinha nas mãos; entretanto, devastado por uma brutalidade repulsiva. tua pujança estava opaca, deitado de bruços, uivando de dor. eu tratei de incendiar essa centelha que, toque após toque, gemido após gemido, visita após visita de limpeza das feridas, cresceu nos teus olhos a cada momento em que tu me via chegar. por mais rude e grosseiro que tu fosse comigo, exasperado com este estranho inserido na tua privacidade, o que é compreensível, eu sei que teus olhos e teus ouvidos gravavam na mente e no coração o rosto e a voz deste que te cuidava. quando recuperado, ao se por de pé novamente, habilitado a cuidar das vacas, cavalos e porcos, e da horta, e do jardim, as cicatrizes monstruosas não haviam diminuído fresta sequer do grande paredão que é teu orgulho. pelo contrário: tu suportou ser flagelado até cansar o carrasco porque não renunciaria àquilo em que acreditava. e eu sei, pelo modo como tu me acompanhava andar pelo quintal, à distância: havia acrescido na tua estima pelo mundo o amor que tu começou a sentir por mim. nem o teu cenho franzido despistava esse sentimento de proximidade, de comunhão, de fusão que tu já via emergir com força dentro de ti - à noite, deitado no feno do estábulo, um pouco antes de dormir tu te perguntava sobre mim e te perguntava sobre o porquê de te perguntar sobre mim, e nem o sono me afastava de ti, pois eu passei a habitar teus sonhos (o lugar mais poderoso onde já morei, no qual meu ferro quente chegou e permaneceu). instalei-me em ti muito antes de eu realmente te penetrar. e aos poucos, como felino desconfiado mas interessado, tu te acercou de mim, às vezes sozinho solicitando onde estavam o jardineiro, o cocheiro ou a cozinheira, às vezes junto com teus amigos rindo do meu corpo magro e esguio com piadas jocosas. naqueles primeiros meses, tu nunca me agradeceu pelo cuidado leal que dediquei a ti na cura dos teus ferimentos. talvez porque tu já soubesse que o verdadeiro cuidado e a verdadeira cura, ou que o cuidado e a cura mais importantes, eu ainda operaria em tempos porvir: na tua história, no teu sentimento de si, nas tuas memórias, nos modos como tu passaria a te narrar e a te apresentar para o mundo. foi somente depois de um amigo teu vir a mim aos gritos com um dedo decepado, e de eu ir até um amigo teu que delirava de uma febre misteriosa, e somente depois de eu cuidá-los e curá-los, que tu passou a trocar comigo frases curtas com teu sotaque acentuado. nós dois, um face ao outro, nos entregávamos lenta mas firmemente à força gravitacional que havia nos colocado um sob a mira do desejo do outro. até que tu inventou uma ferida infeccionada em uma das cicatrizes do açoite, próxima ao teu ombro esquerdo. tu coçava com as unhas longas e sujas um pedaço de carne ainda não fechado. te dei um sermão ríspido, relembrando-o do tempo e energia que eu havia dedicado a limpar e cuidar dos teus ferimentos, ressaltando as orientações expressas que eu havia dado sobre tua higiene: deveria passar a ser diária e meticulosa, coisa que tu não tinha seguido (pelo menos não com tanto afinco). e te avisei que a punição seria severa: tu teria que me suportar por mais catorze dias, ao longo dos quais eu te encontraria ritualmente de novo para fazer e refazer curativos com bandagens de panos fervidos, com whisky para desinfetar o buraco purulento. tu riu e disse que me aguardaria. um pouco surpreso e, sem dúvida, feliz, senti que eu havia escorregado com delicadeza para dentro de ti, e que algo em nós começaria: os amanheceres que testemunharíamos sentados lado a lado na varanda, pequenos fragmentos de dias frios e ensolarados que passaríamos juntos cuidando da horta, gotas de chuva e de suor que trocaríamos cortando lenha, as respirações contínuas e quentes que sentiríamos de nossos narizes se tocando, adormecendo juntos. uma partilha sensível de tempo, de espaço, uma experiência de amor que, por mais proibida que fosse naquela época e naquela sociedade, nós não deixaríamos de cultivar e goz[...]