qual é, me diga, e verdadeira contribuição? aquela que te deixa zonzo, aquela que te deixa sem chão? à espera por um toque, por um sinal sonoro, por uma mensagem de alguém que soube que tu estava online, é disso que se trata a espera e a promessa, a beleza e a fantasia, a gratidão e a tarde de sábado inteira subsumida por algumas páginas de word, uma térmica de chimarrão e dois e-mails de agradecimento? uma parte inteira do teu corpo que está fria, sem irrigação, quase isquêmica, insensível, enrugada e em processo de decomposição, e tu achando que é bolacha no pacote? um quadradinho online, uma foto de abdome, e basta para estragar os próximos quinze minutos? e não haveria nenhuma coragem em chorar em frente ao outro e em frente àquela que pelas costas fala de ti? haveria maior coragem? ou ela não faz nada disso e é mais sincera que tu mesmo, mais dona de si e de sua vida do que tu, mais bela e consistente? e se amanhã houvesse dois casacos de lã novos, duas camisetas, um par de sapatos, duas camisas, três perfumes: quantos reflexos no espelho ainda faltariam para um sorriso? quantos espelhos faltariam para uma folga ou férias da autocomiseração? e da beleza integral não sobra um resquício de feiúra e de vergonha, de desprezo por aquilo que o belo é? o belo não é desprezado, nunca? o esplendor sagaz de toda uma coluna tesa, rígida, jovem, não te causa inveja? o corpo morto embalsamado não te causa pena? o que haveria de se colocar entre mim e ti se é tu em quem eu penso e quem eu quero esquentar numa noite como hoje? e se haveria de que te querer, haveria de te expulsar, de te renegar, de te excluir, tão selvagem e chucro que tu é, e por isso mesmo tão sedutor e atraente? e tu não seria isso tudo, uma coisa inesperada em mim, avançando sobre minhas fronteiras, "pelos sete buracos da minha cabeça", como um salto alto avança sobre o piso, estridente, seco, impiedoso? não sou mais eu? já fui embora por ti e em ti? já estou lá, falando ainda aqui? e lá ainda não há voz? a palavra ficou ainda aqui? que desliza e fog....
parei o carro ao sinal vermelho. a faixa de pedestres à frente, o asfalto, os outros carros que aos poucos iam parando ao meu lado e atrás de mim não deixavam dúvidas de que eu estava na cidade, e na cidade grande. nos breves segundos da sinaleira fechada estava confirmada minha experiência urbana, minha experiência entre o concreto e a buzina. a vista da cidade mais próxima do outro lado do rio e suas colunas de fumaça, por do sol refletido nos vidros dos andares mais altos dos grandes prédios: era a cidade, era inegável, que me deixava exultante, cujo brilho do sol - até ele - é metálico. e na minha casa, no meu quarto, nas reentrâncias de tijolo empilhado e de casas amontoadas onde escolhi morar e descansar, reinava o silêncio citadino emoldurado pelos motores à combustão ao fundo. nenhuma pureza, nem do espaço, nem da luz, nem do silêncio. quando o sinal ficou verde, a cidade toda se abriu para mim.

eu quis falar sobre alguém e falei do ex-vizinho – de mim, em bem verdade, mas através do ex-vizinho. botei palavras no seu corpo. entretanto, não foi ele quem mais me fez pensar sobre mim hoje. por volta das cinco e meia da tarde meu celular tocou. era uma mulher. pediu para falar com Marcelo. recebo várias ligações de pessoas querendo falar com Marcelo. eu disse que o número não era mais aquele, que eu não era Marcelo. “ah, que pena... mas já aproveitando a oportunidade, o senhor já ouviu falar sobre nosso empreendimento imobiliário.... ?” e deixei aquela mulher falar sobre o empreendimento imobiliário do qual ela estava tentando me convencer a participar. “eu não tenho interesse agora; eu realmente não tenho interesse; eu não faço investimentos imobiliários.” nada adiantava para que ela se convencesse de parar de tentar me convencer. ela começou a me chamar de Marcelo. eu não a interrompi, tampouco a corrigi sobre quem eu era – do que serviria? ela tinha certeza de que eu era Marcelo. enquanto ela usava argumentos econômicos sobre a tripla valorização que se embutiria a qualquer imóvel que eu eventualmente comprasse, ou sobre a necessidade de eu confirmar presença em um feirão de imóveis a ocorrer no próximo dia para “garantir um bom lugar na fila da compra”, eu apenas pensava como era triste, imensamente triste, que essa pessoa falasse com um estranho acreditando que ele fosse alguém que não era, e que ela estivesse tentando me persuadir a comprar um imóvel quando mal tenho dinheiro para o pão. nada nela me comunicava algo, a não ser suas (as minhas?) agudas tristeza, pequenez, estreiteza. Eu pensava na tristeza dela, e ela pensava nos meus horários para amanhã, nos meus investimentos financeiros, no quanto ela precisava captar este cliente (o Marcelo) para garantir seu próprio emprego. o problema é que, ao falar de novo e de novo e de novo do corpo do ex-vizinho que me espreita, eu estou “garantindo um bom lugar na fila da compra” da minha trsiteza, da minha pequenez, da minha estreiteza. fecho-me em copas à possibilidade de o ex-vizinho não ser quem eu penso (quero) que ele seja: ele pode não ser Marcelo. não seja Marcelo.
aqui, de onde a vejo, a chuva é uma fumaça. uma nuvem, uma nódoa espessa que não cai, mas que flutua grudada ao céu. percebo o movimento da água no vidro da janela, superfície na qual a água desliza. o barulho é aconchegante. são salpiques de pingos moles nas pedras, azulejos, metais, zinco duros. é profundamente classista gostar de tempestades, gostar do som da chuva, dos raios e relâmpagos. só os admiro porque, abrigado de sua destruição e desolação, eu me refestelo nos lençóis de algodão recém lavados. e o que haveria de ser o corpo do vizinho (agora ex) senão o desabrigo, a desolação, o desespero e o anonimato de alguém a perambular nas ruas sob uma forte tempestade? o que haveria de ser o corpo do ex-vizinho senão uma imagem e uma sensação de forte desamparo? uma criptonita da vida. o corpo do ex-vizinho está se insinuando por outros corpos, pronto para capturá-los e neles se assentar. pois sim: o corpo do ex-vizinho está por aí perambulando na chuva, preparando-se para não ser mais ex, mas ser in, prestes a se atualizar na minha nova rede da vida, exibindo sua cara e sua pujança, seu gosto e cheiro fortes. ele não sorri, nem fala comigo. o corpo do vizinho é meu abandono, meu exílio, longe da minha cama morna, dos meus lençois bem lavados. é onde estou todo exposto à intempérie dos olhares dos outros.  
eu finalmente mudei para o meio da cidade, para o coração da cidade, para o centro da quadra entre os prédios. eu mudei para o espaço imerso no urbano, no concreto, nas casas empilhadas, nas luzes que nunca apagam. mudei para o trânsito e para o tumulto, para a agitação, para o barulho e para a bagunça. nunca outrora eu estive tão quieto e calmo, consistente no passo, seguro na mirada. se fico três dias sem escrever me seco por dentro. se escrevo, inundo. meu coração dispara ao ouvir motores de carros na rua. a cabeça dói pelo álcool. tudo faz parte da experiência de estar aqui, no meio de gente, no meio de gente anônima, no meio de gente que se dilui (mas que também se afirma) no mar cinza. eu me libertei do vizinho, por exemplo. não temo mais me aproximar das janelas (coisa que faço, aliás, com menos pudor do que eu fazia antes), nem impeço meu olhar de pousar nas janelas alheias (que, de modo geral, não me chama a atenção). me libertei dele e de seu corpo, e das promessas que eu vi em toda sua vida. sem dúvida ele continua existindo em mim, mas não do mesmo modo. ele está deslocado, ofuscado, obscurecido pelo brilho fosco da diluição urbana anônima. ganhei outros vizinhos. com seus problemas e com suas vidas, e com suas luzes, suas esperanças, suas belezas. troquei um vizinho por vizinhos, no plural, e isso já valeu a mudança. troquei meu singular pelo meu plural, e isso já valeu a mudança. valeu a coragem de administrar as coisas que precisavam ir embora, e fazê-las ir embora, e a coragem de assumir os erros oriundos da decisão. nunca me supus um corajoso. finalmente eu mudei para o meio de mim, com meus vinhos, no plural.
há de nascer mais um dia, como este que vejo, e mais outro por cima de todos que o antecederam. a luz do sol sobre todas as vozes exaltadas de ontem, a luz do sol sobre todo o medo, o céu pesando sobre aqueles que se escondem, o céu pesando sobre aqueles que se revoltam. mais um dia para esquecer e também mais um dia para reafirmar-se no que se crê, no que se luta, no que se aposta. o som tranquilo de aves gorjeando e cães latindo deslizando entre os rostos contritos e deformados de quem odeia e quer matar. todas as manhãs carregam essa marca incômoda, desconfortável, da paz e da beleza embaralhadas com promessas de horror.
peçam de mim um gole, uma lambida, um soco, peçam de mim uma palavra, e a terão. amaldiçoo o dia inteiro, e a noite inteira, que se acabam sem glória e sem promessa de repetição, sem zunido de festa, sem risos, sem alegria. desfaço qualquer nó ou tumba, qualquer farrapo e qualquer sarcófago, locupleto-me na morte sem ouro nem horizonte infindável. riam de mim. gargalhem. pego em armas se for preciso, pego nas rosas e nas gardênias, nas fardas, nas metralhadoras. solicitem bombas, ou livros, ou vídeos, ou música: eu os darei e lhes explicarei, todos ao reverso, todos ao contrário, as letras todas arranhadas de trás para frente, consolidando o que de mal há não só no som mas em todo o mundo criado por deus. dirijam-se ao palanque, à tribuna. haverá de falar em nome de mim e de todos vocês aquele que não tem mais voz e que se ocupa das nossas para proferir mentiras. prefira mentiras à hipocrisia, e verá quem é teu amigo. a mim nunca faltou véu, nem echarpe, nunca se deduziu coisa muito distante daquilo que eu manifestei, a não ser no dia em que fui tido como mau caráter. nada mais  injusto. de julgamentos em julgamentos vamos enchendo nosso escroto, bem avolumado, bem viril, que ostentamos em praça e tv públicas. honramo-nos e honramos a família. queríamos o pai e o filho, e o espírito santo veio apenas a calhar, como gel lubrificante para tudo o que aconteceria depois. pois venha você até mim e encontre-se, abra-me e verás o quanto há de contradição e de loucura em tudo o que falamos, desordene-se em face de mim e faça a melhor coisa que poderia fazer em vida, ou em morte, ou em coisa qualquer que não seja neste mundo: assuma o erro. errar não é humano. corra e fuja, mas haverá essas pontes e cadafalsos em sua mente onde tu estarás sempre enforcado. haverá plateia, haverá juri, haverá torcida, haverá transmissão ao vivo. queira sempre estar em volta, nas minhas costas, pressionando minhas glândulas lacrimais, lambendo minha virilha. tua barba na minha, friccionando, cantando hinos de louvor às Forças Armadas. da pele áspera sabe-se pouco, mas do sorriso macabro e da ilusão noturna não se tem dúvidas sobre as hordas que nelas avançam, em silêncio, assassinando tudo o que encontram, desde pontes até flores. consumam seus olhares em fogueiras abstratas feitas de livros em chamas, feitas de quadros em chamas, feitas de vestidos de cetim e renda, ou seda, que homens gostam de usar ao serem fodidos por outros homens. pois é isto: creiam que estarão fazendo justiça, creiam que seus juízes são os mais sábios, creiam que há lógica ou coerência, e será aí que hão de ruir e despencar, erodir, implodir. cortem minha língua e quebrem meus dedos. abram as portas no escuro.
mudei toda a disposição dos móveis em mim. resolvi botar a cama embaixo da minha janela e o sofá virado para minha parede. minha nova porta estará sempre aberta: não estou mais recluso em uma penitência, pagando pelo pecado da coragem. não estou mais radicado em exílio. mudei os móveis, mudei a geladeira, mudei as estantes de livro em mim. há uma nova vaga na minha garagem: haverá alguém a estacionar nela. cada cantinho com pó e teias de aranha, cada gaveta enferrujada, cada folha seca em mim mudou de lugar, deslocou-se. minha nova porta não terá chaves. não haverá segredo ou código para entrar em mim. haverá cada pedaço de teto para cada pedido de abrigo, para todas as noites possíveis, para todos os corpos que quiserem descansar ao meu lado.
hoje eu escrevi o seguinte, e falei para algumas pessoas:
"amar não é se esvaziar para o outro, como a colega recém opinou.
não acho que se trate de um esvaziamento de si em detrimento do outro.
não acho que se trate de oferecer ao outro uma falta nossa que o outro vem a preencher, que é chamado a preencher, que nós demandamos que preencha.
também não acho que se trate de amar primeiro a mim mesmo para depois amar outro.
amo o outro, na maioria das vezes, simultaneamente não gostando de mim ou estando pelo menos incomodado comigo mesmo. posso, na melhor das hipóteses, estar tranquilo com o que sou no ato de amar o outro.
acho que amar é dar-se, abrir-se, expor-se ao outro naquilo que se é, na medida do que se é, lidando com o outro no tamanho que ele tem. o tamanho do outro é precisamente apenas seu tamanho, sua própria dimensão, sua própria extensão e seu próprio peso, sem adicionar a ele nada (nem tamanho, nem volume, nem peso) que seja meu.
por isso, amor não tem nada, absolutamente nada a ver com liberdade."
não surtiu efeito.
me pegue pela mão, me mostre por onde tu caminhou, aponte para a casa abandonada onde tu e teus amigos costumavam brincar quando eram crianças. me pegue pela mão, me leve às ruas onde tu jogava bola e sapata. me pegue pela mão, passe em frente ao colégio onde tu estudou, contando sobre a vez em que mais te sentiu humilhado, da vez em que por primeiro se apaixonou, da professora que tu mais odiou e da que tu mais adorou, do primeiro amigo e do primeiro inimigo, da porta por onde tu saiu aos dezessete anos e nunca mais voltou. me pegue pela mão, fale sobre o por-do-sol do inverno, sobre o vento frio do inverno, sobre como tu odeia o frio e odeia tomar banho sentindo frio, sobre como tu odeia sair da cama no inverno. me pegue pela mão, conte sobre quando teu pai conheceu tua mãe e como ela roubou dele um beijo e como ele a pediu em casamento. me pegue pela mão, repita a frase que tu pronunciou ao contar a eles que, além de mulheres, tu também gosta de homens. me pegue pela mão, relembre dos apelidos que tu deu para teus irmãos mais novos e também os apelidos que eles te deram. me pegue pela mão, declare teu amor incondicional aos teus irmãos. me pegue pela mão, diga que nunca te sentiu assim com alguém antes. me pegue pela mão, me arraste para tua história, me conte histórias, seja o personagem de múltiplas histórias, mas seja o que tu puder ser e o que tu realmente foi, pegue minha mão e prometa segurá-la mesmo quando não houver mais razão.
acordei pouco antes das sete, garganta doendo, "lá vem gripe", e veio, voltei pra cama e me fechei entre as cobertas. eu tinha rolado a noite inteira, sonhando perturbações, e o lençol estava todo enrolado, desorganizado, desajustado. eu não quis levantar. não quis nada do mundo. com muita dificuldade pus me de pé às nove. entre às sete e às nove sonhei com o rosto da minha mãe desaparecendo em um retângulo de terra e cascalho, entre outros absurdos constrangedores. parece que eu queria algo do mundo, afinal. o dia transcorreu como uma tortura de sucesso. ninguém desfez minhas crenças que o mundo será melhor numa próxima vez. "o mundo" ficou martelando na minha cabeça: andei pelas ruas desertas hoje, dia nublado de nuvens cinzas, senti o vento fresco e algumas gotas de chuva na face, e pensei precisamente nisto, n'o "mundo", no que será do "mundo", que "mundo" estranho é este em que vivo, o "mundo" é este que eu vejo ou este é somente um perspectivismo tolo e, em verdade, o "mundo" é muito maior e surpreendentemente mais simples que o "mundo" que cabe na minha compreensão tacanha do que quer que seja? meu "mundo" é minha gripe hoje, o lençol desalinhado, rostos desaparecendo na terra.
vou escrever na minha pele algumas frases que crio. decidido. nada de figuras, faces, coisas aleatórias. eu que crio, eu escrevo no meu próprio corpo - que não é meu, todavia. não são frases fascinantes, nem frases eloquentes, mas são marcas que eu quero no meu corpo - e não são marcas do corpo ou para o corpo, são marcas da vida, das coisas todas que eu tive em vida, os rasgos e os ruídos da vida a 220 volts correndo por mim. não são símbolos, não são desenhos. são palavras. inscrever o significante no corpo como forma de conjurá-lo.
vivendo de todas as expectativas, as apostas: sou um jogador. esvaziando as razões pelas quais se pode viver não se vive mais. e há razões. não tive coragem de dizer a uma amiga que penso na morte causada todos os dias. minha amiga é muito viva. não penso na morte causada como um drama, como uma vingança; penso a morte causada como um fim pragmático. não estou certo, contudo, de que qualquer fim da vida possa ser considerado pragmático. não me parece que é dessa forma que a vida se finda em si mesma. é possível imaginarmos que a vida quer acabar consigo? ou a vida vai deixando de querer, aos poucos, até que desiste? "esvaziando", eu pensei hoje enquanto dirigia. mas ainda sim em pé, como um boneco que se mantém pelas dobras, não por estar inflado. esvaziando do engano, da cena, do drama. um personagem que morre, cuja vida vai desistindo dele. e outro que revolve dentro da pele podre desse ator maldito, feto inesperado, que diz: "haja tudo em meu caminho, por tudo haverei de passar, e haverá morte onde precisar haver, pois nenhum obstáculo precisa ser intransponível, nenhum corpo há de ser imortal, tudo deve perecer e saber sorrir quando é chegado seu fim".
sempre soube ao longo da vida de pessoas que ouviam vozes. apenas isto: que ouviam vozes. era intrigante pra mim essa proposição tão radical: ouvem-se vozes. é óbvio que nossa primeira consideração é: de onde elas vêm? quem as enuncia? quem são os donos das vozes? e o mais interessante é saber quem é essa pessoa que ouve, que dá atenção às vozes pronunciadas por não se sabe quem. hoje eu soube, afinal, do que se trata ouvir vozes. pois eu as escuto às vezes. ouvir vozes é pensar palavras, em primeiro lugar. eu particularmente não penso em palavras; na maioria esmagadora das vezes eu penso em imagens. até mesmo para fazer cálculos matemáticos eu uso imagens: para acrescentar três ao nove eu imagino 3 tijolos, três lacunas; para cozinhar a massa, eu imagino 5 espaços do relógio (por exemplo, dos 20 aos 25 minutos de qualquer hora) mais dois espaços pequeninos dos ponteiros. ouvir vozes não é pensar em imagens; é pensar em palavras. começa com palavras soltas, porém densas, como se fossem pedradas na mente: "viado", "incompetente", "burro", "brocha", "pedante". essas palavras podem aparecer a qualquer momento e te fazer estremecer. são pedradas mesmo. anos mais tarde, já acostumado com as palavras soltas como se fossem pedras, aparecem as frases inteiras, as frases de ordem, sempre depreciativas acerca de nós mesmos: "tu é um lixo", "tu é ridículo", "ele te odeia", "ele sente vergonha de ti", "ela te esqueceu". fica mais grave quando o pensamento se complexifica e atribui às frases declinações plurais: "eles te ignoram"; "nós não valemos a pena". hoje eu entendi o que significa ouvir vozes. é deixar de pensar em imagens, é pensar na frase, no tom da voz, no timbre, na entonação. é ler a frase como imagem, no pensamento. é acordar do cochilo pensando em "fracasso" - e a palavra fulgura como um slide show. pois não se trata de "ouvir" vozes, mas de ler vozes no pensamento.
estou um pouco desorganizado, um pouco obtuso em relação àquilo que
quero e àquilo que vi. não entendo bem o que quero para amanhã, nem
entendo o que sonhei ou de onde veio o que sonhei. espero respostas
dos outros (e haveria alguma resposta que não viesse do outro, nem que
sejam aquelas que temos que dar a nós mesmos?), respostas que nunca
vêm, cuja bifurcação me levariam para caminhos completamente
diferentes. mudo ou não mudo? permaneço ou não permaneço? aprovou-se
ou não aprovou-se? devolvo a casa ou não devolvo a casa? o ato de
devolver é sofrível, pois nunca "devolvemos" a coisa; a coisa está
sempre transformada, transfigurada, convertida, amassada, disforme por
aquilo que fizemos dela, com ela. não devolverei uma casa: devolverei
algo diferente de uma casa, algo que um dia foi um casa, com seus
compartimentos tão bem separados, tão bem climatizados, tão bem
decorados, tão bem pintados, tão bem localizados, tão bem iluminados:
não é mais uma casa. devolverei um buraco, uma caverna, uma rocha
vazada, um túnel, uma colmeia, uma ilhota, uma distopia. e onde entrarei?
esse lugar para onde vou, como me está sendo entregue? como um buraco?
estou indo morar no buraco, no túnel de outrem? espero um pagamento, o resto
majoritário do pagamento que me devem. o resto rico do meu trabalho. o resto dos
meus finais de semana, o resto de várias noites. espero que me paguem
o resto a que tenho direito - e é perverso pensar que tenho direito a
restos. o resto de amizade, o resto do sorriso, o resto do respeito.
hoje, por exemplo, vi um homem que me considera um resto esquecido (o
resto esquecido ainda goza do status de resto?). eu não o esqueci. pra
mim ele não é resto. eu não sou resto, pois nada em mim resta da vida,
nada em mim resta a viver: eu não sou hoje aquilo que de mim restou de anos
atrás.
mais uma vez: chutando paredes, descendo até o chão com a testa, ajoelhando no asfalto quente. segmentos lacunares de pessoas que preencho com todas as hipóteses e suposições. elas vêm de algum lugar, fluem para dentro de mim de uma exterioridade e se divertem. chamam meus esqueletos para dançar - os esqueletos de pessoas mortas, que eu matei, que já não estão mais na minha vida, mas que mesmo assim ainda mantêm seus restos mortais na coisa viva que é minha história: a narrativa que faço de mim. não vou destituir os mortos (os assassinados por mim) do seu lugar na minha memória, do seu espaço nas lembranças que eu resgato e aciono para contar de mim. esses estão aqui com seus restos mortais, com sorrisos em suas caveiras, mortos (assassinados) porém presentes. pessoas que eu odeio - odeio? é ódio o que eu sinto? ou o que sinto é uma janela aberta no temporal, sinto uma superfície pública vulnerável, sinto um buraco vazio exposto - uma parte de mim que é cemitério em dia de finados. uma parte de mim que é um leprosário em dia de parto. isto não é nenhuma novidade: pensei que (desejei que) hoje talvez pudesse ter sido apenas um sonho ruim. não um pesadelo, apenas um sonho desconfortável, um dia que tenha a duração e o conteúdo de um dia angustiante. não houve momento na minha vida em que eu tenha pensado que talvez o dia pudesse ter sido alguma vez um sonho bom (ou apenas, como dizem os felizes, "este dia foi um sonho!"). nenhum dos meus dias foi sonho até hoje. pensei que (desejei que) a morte talvez pudesse ser algo não totalmente expulso do campo de possibilidades de se lidar com o mundo. morrer (assassinar) pode ser uma forma de lidar com o mundo. volto a ajoelhar no asfalto quente, lidando com a vida.
não tenho medo, e é impressionante que eu não tenha medo, não tenho medo do escuro ou do breu, não tenho medo da distância nem do carro que precisarei guiar, nem da estrada, nem do preço da gasolina: em menos de quatro horas emergiu de mim, como uma Atlântida perdida, uma parte destemida, um rosto nem furioso nem benevolente, mas simplesmente calmo. um rosto que pode levar o tapa, que sofrerá com o tapa, que talvez sentirá vergonha do tapa. ainda assim um rosto, uma parte pública do meu corpo que olha para frente, em prospectiva e não em retrospectiva. o fato de eu ter morrido para algumas pessoas é bastante libertador. permite-me vaguear, nomadizar. cumpro minhas tarefas num silêncio a-egoico, como um monge, como um lavrador, como um burocrata do saber. não quero meu nome em referências bibliográficas pirotécnicas. quero meu salário e minhas alunas, meus alunos. quero poder escrever - o que não é brilhante, nem inovador, nem midiático, nem televisivo. não sei sequer qual a estrutura de um romance, não sei como planejar uma narrativa, nem como costurar uma história. não sei dar densidade aos personagens, não sei fazer ficção de longo fôlego. em verdade, domino pouco as normas do português escrito, cometo erros de grafia e de sintaxe. às vezes me cansa o exercício woolfiano de grudar as palavras nas costas de um ritmo, estetizar a onda e o fluxo das frases para focar ou adensar uma situação, um diálogo, a descrição de um espaço, a passagem do tempo, as águas. porque, a rigor, não faço ficção. não consigo criar personagens. meu mito individual de neurótico restringe muito minha capacidade criativa de fantasiar com vidas outras. não tenho mais medo nem de admitir isto: que não sou criativo e que não escrevo para além de um palmo além do meu umbigo (já ia escrevendo "nariz"). no entanto, é importante de dizer que jamais assino os comentários que faço acerca da minha própria vida. invisto na prosa, na possibilidade de encontrar palavras imprevistas e modos de narrar o que me acontece de uma maneira impensada - ou de uma maneira bastante laboriosa. jamais assino. não é meu nome que dá princípio de unidade àquilo que escrevo. não tenho medo do meu nome. se tivesse, seria ele que eu poria logo abaixo de cada parágrafo.
estou prestes a mudar. o emprego do reflexivo "mudar-me" faria mais sentido e toda a diferença. no entanto, quero salientar precisamente a beirada da iminência de trocar, renovar, substituir, refazer. como numa roupa nova que vestimos em frente ao espelho, que tocamos com as mãos, tocamos as costuras com as pontas dos dedos, num esboço de sorriso frente à nossa imagem refletida. e nos orgulhamos de cada detalhe, da cor e do caimento no corpo, dos botões: trocados, renovados, substituídos, refeitos. um novo chão onde pisar (ainda sim um chão e ainda sim pisando), novas paredes e novos tijolos em que se pode arranhar as unhas, novas divisórias que levam a novas formas de olhar, novos cheiros, novas luzes, amanheceres desconectados de qualquer glória. são apenas um sol surgindo, tomados exatamente naquilo são, sem promessas de novas vidas ou de vidas diferentes. porque minha vida permanecerá esta, se caso eu não operar mudanças no que vejo, sinto, penso, digo e faço. apenas mais um sol circundando o globo, sem nenhuma promessa de melhoria, de sabedoria, de um pau maior e mais duro, de um romance ou de reconhecimento profissional nacional ou internacional. apenas um sol me acordando, só isso, só mais uma luz, que se afasta daqueles que perdem seu significado. resquícios de vozes, que sei de quem são, chegam à minha janela. em breve não será mais minha janela, nem mais essas vozes. o mesmo sol, a mesma vida, para outras vozes e para outras janelas.
todo impacto dessa massa terrível e cinza se faz em uma parte desconhecida de mim que absorve a pancada, como um colchão pequeno mas vigoroso. não apenas os vizinhos, as suas vozes, os seus tamancos, as suas gargalhadas, as suas crianças, as suas vidas. não apenas as tempestades que batem na minha sacada, que eu vejo chegar, que eu vejo desfazer minha crença num outono primal. tudo é uma barricada de pneus em chamas contra o outro. há essa outra parte, que são os ouvidos moucos, os olhos vesgos, o corpo sincero. sou uma corrente magnética que impede um asteroide gigante de se chocar contra mim mesmo. sou os aneis de saturno embelezando um planeta mórbido. sou uma desorganização que te fascina, que te faz ficar, que te faz querer mais, que te faz estar aqui por perto.
uma semana surpreendente. descobri duas coisas: quem eu julgava me odiar comigo simpatiza; outros, que eu julgava me odiarem, de fato me odeiam. quem eu julgava me julga. é apenas fechando a porta e ficando em paz com o chão, deixando as pessoas partirem, que se pode ouvir as risadas indo embora, os comentários desaparecendo no silêncio do corredor, se afastando. no chão ainda, sendo deixado por quem te despreza. ou, de outra forma, achando formas civilizadas de evitar encontrar o amigo que está namorando e viajando e em lua-de-mel e rico. não seria suportável sem um toque de mau humor. o único mau humor com que consigo (sofregamente) lidar é o meu próprio. o mau humor dos outros considero uma afronta. tudo o que é meu eu suporto com dificuldade. precisamente por isso esta semana foi surpreendente: coisas minhas agradaram quem eu não esperava - minhas aulas, minha voz, minhas ideias, minhas discussões. meu corpo expressou sua mais concreta sinceridade em termos sexuais - novamente. quem gostou, gostou. "Queria ter um namorado, parceiro, pra todas minhas fantasias, mas que houvesse respeito, acho que isso é impossível!", ela escreveu. e é realmente impossível. é realmente intocável, irrealizável. mas ela espera alguém que a absolva daquilo que ela deseja e daquilo sobre o que ela fantasia; o parceiro e o namorado para todas as fantasias não existe. ele, em si, é a fantasia-toda. quantas camadas de dores prévias dessa mulher não recairiam sobre um homem, se acaso ele existisse, que viesse sentar-se no trono de "parceiro". localizar o sofrimento em sua própria medida, sem adicionar nem tirar nada àquilo que lhe dá tamanho, é um descanso imenso. tomar o sofrimento em seu próprio tamanho é fazer as pazes com deus. e liberar as pessoas da nossa história, desvencilhá-las, desconectá-las de nós como um cabo caído e inoperante é seguir. afastar-se dessas pessoas, as arrastadas e pesadas, que carregamos como quem carrega um saco, é também deixá-las flutuar: colocá-las em liberdade de nós. quem carrega peso é tão responsável pelo peso do que a própria pessoa pesada. nesta semana eu liberei três pessoas pesadas da responsabilidade de eu carregá-las. é ainda bonito lembrar que me dei conta disso dirigindo um carro: um peso mais pesado que eu e que me carrega.