Cartas a uma jovem bicha – eu sou assim

E se eu choro é porque sou ator, e se eu desejo é porque sou ator também. Eu não posso assim, do jeito que tu quer eu não posso, eu não consigo. O sorriso descarrilhado e os olhos afiletados eu só descobri depois. Mas depois pra mim não é longe, não é inalcançável: eu sei o que fiz, eu sei que eu não quis, e eu não me arrependo. Eu me arrependo, talvez, dessa minha impetuosidade, dessa minha vontade de ser trator. Minhas mãos longínquas, com dedos superlativos, te escrevem isso porque estão desocupados. Porque se tivessem outros corpos pra digitar (que não fossem esses tão solícitos quanto são o laptop [nem tão ardentes quanto fossem meus dedos]) elas estariam calmas e dançantes talvez folheando um livro de Proust ou um livro de ti, mas de qualquer forma estariam aqui e não aí onde tu lês isso que escrevo. E o que fazes aí? Por que motivo não vais ler, ou estudar, ou dialogar consigo? Por que lês isso? Não há nada aqui: só há imitação e deboche, recalque, repressão, mas tudo com um pouco de doçura. Porque sempre lembro de ti e por onde tu andas e por onde tu estás e por onde tu respiras me diga que eu quero saber porque tu me faz falta e teu corpo se encaixa no meu... morreste? Eu pensava que sim. Eu levo comigo um pouco da tua morte? Eu ainda penso em ti, ainda te quero e ainda te procuro nesses outros corpos: cadê teu corpo? Procuro tuas letras iniciais, teus recuos de parágrafos, mas me diz: onde estás? Se soubesses o quanto minhas mãos aracnídeas batem e rebatem nesse teclado negro à tua procura. E isso acontece não porque sou bêbado (também porque sou bêbado, mas acima de tudo porque sou uma lâmina, um filete, uma fatia bem fina [uma coisa delgada através da qual passa tudo aquilo que mais desejo], um sopro e um riso, uma cédula ou moeda que cai do bolso, um esquecimento), elas acontecem porque não há nada. Nada. Nunca houve. Cadê você em mim? Não há! Saia já daqui: não há motivo nenhum para eu me enrolar nos lençóis verdes com perfume amadeirado. As veias que cobrem minhas mãos mantêm a aranha que desliza pela teia das minhas confusões. Te amo mesmo assim. E aí tu estás, não é?!?! Insinuando-se pelas minhas superfícies e se querendo pelas minhas aderências!!!! Te denuncio!!!! Onde vais querer ficar (fica comigo [fica na minha mão, na minha boca] fica no meu quarto), onde vais querer dormir? Sempre dormes comigo de algum modo, mas nunca de um jeito tão traduzido, tão ligeiro, tão simpático. Saia daqui: não há nada pior que um corpo simpático, por favor, saia agora para sempre.