Qual meu lugar aqui?

Os corpos não pedem “com licença” nem dizem “muito obrigado”: eles somente circulam, se movem pelo asfalto ou se sentam nas cadeiras dos quiosques. Mas há entre eles alguns jogos mais intensos, mais crus, que os colocam em permanentes encruzilhadas ou negociações: um deles é o jogo entre o nu e o vestido; outro é o jogo entre o seco e o molhado; também existe o jogo da luz e da sombra; e há ainda o jogo complexo do olhar e do ser visto, o regime de dispersão dos olhares, que obedece a uma série de coações e regras imbricadas entre o nu e o vestido, a luz e a sombra e o seco e o molhado... Eu poderia seguir expondo mais e mais jogos que observei ali: o jogo entre a velhice e a juventude, o jogo entre o rico e o pobre, o jogo entre o móvel e o estático, o jogo entre os homens e as mulheres... É que nossa história ocidental, pelo menos desde Platão, seguiu firme na construção de pares dicotômicos de pólos interdependentes. Num método de divisão de visava à pureza das representações e à busca da verdade, tudo no mundo foi constantemente submetido a classificações mais ou menos rigorosas que criaram buracos-negros opostos, porém interligados. Os binarismos foram úteis na história das ideias porque essencializam as verdades do mundo, donde se torna mais fácil, pelo menos para as mentes menos argutas, apreender o saber das coisas e ter poder sobre elas. Pelo menos deste o Século das Luzes cada vez mais investimos em pares binários para compreender e produzir o mundo em que vivemos. E vemos isso no chão do calçadão: há pedras brancas e pedras negras, intercaladas, formando curvas contínuas do Morro do Leme ao Forte de Copacabana, opondo-se mutuamente por mais de seis quilômetros – muitas e muitas vezes vi crianças brincando de correr somente sobre as pedras brancas ou somente sobre as pedras negras, disputando pra ver quem chegava primeiro no final do caminho. E essa imagem, de duas crianças colocadas em cada um dos dois tipos distintos e opostos de pedra disputando uma vitória ingênua, é exatamente essa imagem de frivolidade que perpassa a construção dos binarismos, dos pares dicotômicos. Porque nossa existência nunca esteve nos pólos extremos, mas sempre nos interstícios, no meio-do-caminho entre eles; seus significados sempre estão em disputa lá onde eles borram suas fronteias, e isso se dá exatamente na sua interdependência, no seu meio-termo, no entre-lugar que os binarismos criam, dos quais as dicotomias dependem pra existir. Exatamente porque os interstícios dos binarismos lhes são constitutivos, é na profunda interrelação de dois pólos opostos que está sua ruína. Desvelar, apontar, sublinhar, fazer crescer até implodir o entre-lugar que constitui a série de binarismos que recém descrevi é um modo de desconstruí-los. E é essa a intenção político-teórico-metodológica do uso da palavra “jogo”. O jogo entre os pólos de uma dicotomia é o movimento de seus significados, é a mediação da significação dada aos extremos do par. O jogo entre eles precisa ser narrado, seus deslizes, o ponto-cego onde o jogo das significações já não pode mais operar precisa ser construído. O jogo sutil das relações que instituem lugares para os sujeitos e para os corpos, o jogo dos princípios de inteligibilidade das palavras, das coisas, dos corpos e das subjetividades: é no jogo, estratégico ou não, sempre acontecendo mediante uma certa distribuição peculiar de coações, em que pretendo encontrar meios de desestabilizar os binarismos. Por “jogo” não conoto um vale-tudo onde nenhuma regra regula; nos “jogos” pretendo fazer ressaltar o conjunto coercitivo de permissões e proibições mais ou menos pesadas que balizam a relação entre os dois pólos de uma dicotomia.

(... CONTINUA ...)