preciso deixar a torneira aberta, senão a água limpa não vem.

[carta aos amigos]

ao dobrar a esquina da avenida joão pessoa e entrar na josé bonifácio, eu quis morar naquela paisagem que vi, pra sempre. as árvores (ipês amarelos?) exibiam folhas e flores robustas, que projetavam sombras discretas por toda a extensão dos canteiros. havia um cheiro leve de ano que se aproximava do fim. era surpreendentemente fresca a temperatura apesar do sol brilhante. havia certa luminosidade inclusive na sombra das árvores. isso porque alguns raios de sol atravessam as flores, as folhas, que caíam em arco por sobre a calçada. um túnel verde, amarelo, resplandecente, fresco, me convidava para atravessá-lo. não havia trânsito pesado naquela ponta da avenida. por isso, só percebia um silêncio que deixava transpassar toda a tranquilidade daquele momento preciso, isolável. uma calma tão harmoniosa que se confundia com o asfalto, os paralelepípedos, o vento ameno, a luz e o verde, o cheiro de final de ano. paz, enfim, entre as coisas vivas e inanimadas que faziam possível aquela paisagem. eu quis morar naquele momento.

porque havia um dulçor, uma frescura naquela sombra. uma vida, então doce e levemente fria. era onde eu queria morar, era como o mundo deveria ser pra mim. fresco e doce. não foi por pressa nem por preguiça, mas minha vida tomou outro rumo. meus ombros queimaram ao sol. ardiam. minha pele converteu-se em pelanca. todo meu perfume ou se evaporou ou virou o cheiro forte que exalam os corpos velhos - a velhice tem um cheiro. rolei pela rua. me vi morto. me arrependi de quase tudo. nenhuma tomada de decisão estava certa. eu estou trancado num momento que não vai acabar, nunca. só mais desespero, só mais choro. antes de vir ao mundo eu desfiz minhas ilusões - para aquilo que seria minha vida, minha pessoa, meu caráter e a estima que as demais pessoas sentiriam de mim. mas agora as decepções passaram de qualquer limite. não há modalidade de rancor, de pena, de lástima que não caiba tão perfeitamente em cada segundo que passei na estrada, à noite, sustentando aquela realidade. eles são a medida do arrependimento que pesa amarrado aos meus pés. eu caí e rolei na rua. ninguém me ajudou.

eu sei, amigos: não é sempre que minha companhia é fácil. eu sei: às vezes dá vontade de não me ajudar. eu sei: dá vontade de me fazer sofrer. eu sei, amigos: inclinam-se para que a vida me ensine, pelo mal, o seu valor para que eu, quebrado, constitua o meu próprio. eu sei. é por isso que os mato quando posso. porque querem me ensinar pelo mal. desculpem-me.

o tempo não me passa, não me atravessa. o tempo pra mim é espacial. habito o tempo como quem habita um quarto, uma sala. o tempo da infância foi um quadrado cercado, largo, amplo - porém vazio, úmido. abri uma porta, passei para outro tempo: de paredes espinhentas, anoitecidas, teto mofado, chacoalhado por terremotos - a adolescência. atravessei um corredor longo, estreito, asfixiante: o tempo na faculdade. desemboquei num grande, imenso balcão que dava para um bosque a terminar no horizonte, um balcão de um palácio no qual ventava e o vento, em curvas, uivava nos meus ouvidos - a jovem adultez. de onde caí em degraus de uma escada que só permitia descida: a adultez em si. e a adultez velha, ou a jovem velhice, é este trecho público da rua josé bonifácio num mês de outubro, com árvores, luzes e sombras radiantes. cada tempo tem sua sala.