[...]ão me recordo de ter escrito algo nessa direção, com esse intuito, objetivando produzir esse ou aquele efeito. pois neste exato momento em que te escrevo eu lembro de um outro assíduo leitor que já morreu. nos seus últimos anos já não convivíamos; ele havia se mudado pra Garopaba ou Guarda do Embaú (foda-se qual das duas) pra envelhecer quieto. quando eu soube disso achei digníssimo. altíssima dignidade, elegantíssima. retirar-se pra envelhecer; envelhecer consigo e com o mar; envelhecer na quietude. Garopaba é quieta?, acho que não (foda-se). buenas, ele era um leitor assíduo. uma vez ele me perguntou sobre os colchetes com os quais eu começo a escrever: "tu quer nos enlouquecer?". quero. pelo menos, quero que as pessoas intuam palavras, preencham palavras com as quais se pode começar um diálogo - ou, na pior das hipóteses, um monólogo, como o que acontece aqui. é um convite a começar o texto com aquilo que, pra quem lê, faz sentido. e não é sempre assim? às vezes. minhas leitoras e meus leitores são menos obedientes. que sejam pouco obedientes com meu texto. porque assim eu peço, ou convido, que insiram vida aqui. acho que ele se mudou pra Guarda (foda-se mesmo) e morreu lá. um dia, sem saber da sua morte, pensei tê-lo visto no parque da redenção, em Porto Alegre. em seguida, minutos depois, encontrei dois amigos nossos, em comum. foram eles quem me deram a notícia da sua morte. eu arrepiei: "mas vindo pra cá eu ainda achei ter visto ele ali no gramado!", ao que um dos amigos em comum retrucou: "e por que não haverá de ter visto?". muitas das minhas leitoras e parte dos meus leitores já morreram. elas, porque acham coisa melhor que fazer; eles, porque a) morrem de aids b) morrem em acidentes de carro c) morrem de câncer d) morrem assassinados por dívidas com drogas e) morrem de overdose de drogas f) morrem em quedas de aviões g) matam-se. me acostumei a escrever endereçando o texto a pessoas mortas. não escrevo pras pessoas vivas. e quando acontece de eu escrever pras vivas é quase sempre como se eu estivesse no limiar da morte, eu mesmo morrendo: eu bêbado, eu sob efeito de remédios, eu detestando a vida. escrevo narrativas mortas ou sou um escritor nos estertores da vida. sempre num limiar, num véu, numa transparência que divide a morte da vida. e se enlouqueço, se eu quero enlouquecer alguém, é pra disfarçar que logo ali, neste próximo segundo ou nesta próxima palavra, podemos estar vivos ou [...]