O PÓ SOBRE MIM

Num momento de desatino, eu até poderia ter feito algo do qual meu corpo se orgulharia mais tarde. Mas não fiz. Bebi, bebi muito, e beberia mais. Porque pouco me importa a saúde do meu fígado, ou o estado do meu estômago. Pouco me importa a segurança da minha cidadania quando eu sento nas raízes das árvores querendo sexo na madrugada. Pouco me importa a decência das minhas roupas. Eu apenas me perfumo para despistar minhas misérias. Houve um momento de desatino, de grito, de coisa estridente, de barulho. Um momento me perdendo nos olhos, e nos dedos, e na roupa, e na história. E não haveria algo de mais sublime que perder-se na história de alguém? Me conte toda ela, não seja tímido, me desvende tua vida com tua literatura – com aquelas histórias que tu narras e que tua achas que são verdadeiras, ou que sabes que são ficção: são lindas. Me conta do teu corpo, de como ele envelheceu e criou rugas, de como tu cortas a tua pele, de como nascem teus pelos, de como tu te deitas e de como tu comes. Tudo é algo novo sobre mim, espana meu pó pra longe. Eu já deveria ter limpado essa casa do avesso não sei quantas vezes, seus vidros, suas louças sujas, suas tolhas pra lavar. E eu faço: minha tristeza é não ter mais vidros, mais louças, mais roupas, mais pó. Eu não sei se há mais perguntas a serem feitas, mas também não te convido para entrar, pois há tantos outros que eu convidaria para entrar, há tantos outros com quem eu passaria uma noite, ou uma tarde, que já não sei se tu és tu nisso que eu quero. Não sei se tu é pó ou espanador. Nem mais a bebida eu aceitaria depois disso. Quando eu me viro pra luz eu vejo que meu corpo todo é recoberto por essa penugem ingênua de quem crê em tudo o que é puro e sincero. Acorde: a vida toda é feita de pequenas perversidades. Não me custaria nada rasgar tua cara, te sodomizar em frente a todos. Tua feiúra grita nessas brechas ocas de uma beleza que não tem nada a dizer, de uma beleza reticente, inabitada até por mosquitos. Um beijo meu te salvaria? É disso que tu precisas? Venha cá, te dou de bom grado tudo o que tu precisas para uma viagem migratória, um cruzeiro em alto mar, uma noite em paz. Te dou o que precisas, eu sei que posso. Jamais escreverei palavras de amor, mas os meus murmúrios e meu pó vão ecoar, como ondas, nesse teu labirinto opaco – que truque interessante, apagar tua luz: tudo em ti brilha pros meus olhos. Não tens como te esconder.