Mesmo que tenha sido um pouco, mesmo que tenha sido menos do terço ou do quarto. Um silêncio gigante, daqueles que precedem o parto. Um parto longo, dolorido, forçado: nasceu a fórceps. A mãe, que era eu, morreu. Moribundeei por ainda algumas horas apenas para dar o primeiro leite. Liberei-o, enfim, para um mundo sem mim. Não haveria de ficar descuidado, pois o pai segurava minha mão. Não o odiou, o pai: acolheu aquela coisinha pouca com toda a ternura sem-mãe. Um pai doce e sorridente, viúvo. Depois da morte da mãe, o pai contou com um marido, que era eu novamente, que retornou do exterior para criar o filho recém nascido, órfão. O guri cresceu sólido, alto e esguio. Repete-se essa mesma história mais uma vez, as mesmas peças em posições diferentes. É o enigma do parto que tento desvendar, que tento inferir. Há alguma pista que perdi. O personagem central não sou eu: eu sou a mãe que morre, sou o pai, sou o marido do pai - recalcado pela família, pela sociedade - que retorna, eu sou o filho que cresce. Eu estou diluído um pouco em cada um deles, mas devo admitir que morro e nasço, que me separo e me reconcilio, que vou e retorno, que cresço e morro mais uma vez na repetição de uma história que não só foi criada por mim mas que foi vivida por mim. Estou recriando, reelaborando, redesenhando e reescrevendo a minha história. Isso explica a paixão por Douglas (Seco, Dougie, Doguito, conforme os apelidos que eu mesmo criei para ele). Douglas sou eu. Mas a história não é justificada - ela é uma ficção, uma realidade fantástica, uma biofantásticagrafia; pelo contrário, a história justifica, ela endossa e legitima, ela aponta uma reconfiguração da minha própria. Criei um mundo repetido do qual não estou completamente ausente (eu sou o pai viúvo, o filho órfão, a mãe morta, o marido/padastro que retorna), um mundo no qual tampouco estou integralmente inserido (é um mundo que não existe, que não existirá, é uma ficção impossível, uma inrealidade). Estou um pouco, menos do terço ou do quarto. Silenciosamente renascendo a fórceps.