Sonhei que eu era dois. Mas não apenas duplos: dois opostos. Um estava com o pai, que me chamou a atenção: "estou com teu gêmeo". O outro era eu. Meu gêmeo deixava o copo de cerveja cair no chão e se estilhaçar; cantava e bebia; gritava. O outro era incontrolável. Gerir também significa gestar. Conter algo em si por um tempo até o algo virar alguém: prover vida à vida. Significa parir depois disso. Por no mundo, dar à luz, fazer vir à vida. Um gêmeo veio da minha mesma gestão, mas pôs-se no mundo e viu-se à luz de outra forma. É um eu radicalmente Outro, um Não-Eu. Um Não-Eu que posa para fotos e que bebe, que grita, que canta. Um Não-Eu que, ao não existir, sublinha minhas bordas e meus limites, minhas praias, meus inalcances. Lá onde eu não vou. É a borda do meu rosto onde há espinhas, cravos e pelos inflamados, a borda inflamada e dolorida do rosto. Que errado é mover-se dentro de um corpo desconhecido ou pesado, um fardo, um erro ou um engano. O corpo enganado; O corpo renunciado. Aquilo que veio a ser o corpo não me serve. O adiamento daquilo que o corpo já é resume-se a poucos procedimentos: ou é de corte, ou é de cavocação, ou é de provocação da morte. Daí já não é mais gestação - ou gestão. Já não é mais prever a vida no corpo, neste corpo que pode gerir outro corpo e que pode pôr à luz outro corpo. Não é mais um gêmeo. É uma gestação abortada, sem eira. Não é mais eu duplicado, nem oposto: NÃO É MAIS EU.