Reler é um ofício obrigatório para quem sabe que escreve mais do que pensa ou para quem sabe que as palavras contêm em si um excesso, um excedente, um plus, um grito de significância que foge à grafia ou à vocalização. Reler é um exercício, um abdominal. Reler é tortura, uma agulha entre a unha e a carne dos dedos. Reler é colocar-se em frente a um espelho que não é imagético: é imag-ético. Reler é recompor aquela figura, recolocar-se naquela paisagem, restituir-se naquele cenário. Reler é o ato de maior humildade para quem se põe a escrever.
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Durante um momento de recreação no parque, colocamos toalhas sobre a grama para sentarmos. Comíamos e bebíamos com crianças brincando ao nosso redor. Apoiei-me no chão, colocando a mão sobre uma das tolhas. Um bicho qualquer me picou ou me mordeu, mas não o vi, pois estava debaixo da toalha, na grama. Não acho que tenha sido uma mordida - que bicho tem boca, maxilar e dentes para morder minha mão? Mordida não tem veneno: cães mordem. Penso que foi uma picada, uma incisão venenosa. Aposto em uma formiga, uma aranha ou um escorpião. Acordo à noite, às vezes, com o coração batendo forte por acreditar que há um escorpião na minha cama, debaixo dos lençóis. Aposto o escorpião entocado em alguma das dobras do tecido. Não sei se ele me ataca, se me pica, se me envenena. Aposto um escorpião dormindo comigo. O que me fascina no escorpião, assim como nas aranhas e nas cobras, em alguns tipos de peixe, moluscos, e em algumas lesmas, é a maravilha dos seus corpos vivos que carregam em si a dose da morte. O mais fascinante dos escorpiões é o fato de, quando percebem estar encurralados e com sua própria vida ameaçada, suicidarem-se. Sua cauda dobra sobre si próprios e picam a si mesmos, matando-se. É intrigante e muito, muito humano - com a diferença que os humanos podem, eventualmente, dar suas vidas em sacrifício de outros humanos. Algo que um escorpião jamais fará por outro, ou outros.
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Sonhei que eu tinha companhia no quarto, que me observavam dormindo e que massageavam minhas costas. Tenho sempre alguém comigo. Sempre fantasio com acompanhantes, com parceiros. Há sempre alguém me olhando, me observando, pousando olhares de avaliação em mim. Há sempre uma fantasia de ser objeto do olhar e do escrutínio de outrem. Há sempre um medo, uma perseguição e uma crença no fracasso. Há sempre algum tipo de inquisição, de julgamento, de júri e de veredicto. "Vere-dicto" é o dizer verdadeiro - ou o olhar dizível. O que não é visto não é enunciável, nem verdadeiro. Há sempre um veneno.