[...]inuei crescendo, mas não parei de fantasiar. talvez tenha sido esse o problema. não entendia o porquê de cessar a imaginação sobre quem eu poderia ser, sobre quem eu poderia ter sido. ativamente, eu criava mundos, e pessoas habitantes desses mundos, e histórias de vida para as pessoas habitantes desses mundos. grandes ficções. em vários momentos sinalizaram que eu não era mais criança e que, portanto, aquilo deveria parar. passei a fantasiar escondido; passei a falar sozinho. da transição entre a brincadeira de criança para a argumentação de vida adolescente, mantive essa alça imaginativa que funcionou por anos como um corrimão. falava sozinho com a mesma fecundidade com que ouvia músicas e criava cenas para os sons. não me recordo de ter tido um corpo desconexo, desajeitado, mas lembro de comentários sobre minha voz. é isto: não ouvia o som da minha voz, mas os outros ouviam e a detestavam. não porque era feia, mas porque não era apropriada a um jovem adolescente. esperava-se do jovem adolescente que fosse mais decisivo em seu gênero, em sua masculinidade - tarefa difícil mesmo pra nós, hoje com quarenta. pensando melhor: talvez detestassem minha voz não pelo seu tom, mas porque eu a gastava falando com pessoas que não existiam. eu falava sozinho porque estava sozinho, porque me sentia sozinho. e esse era o problema, propriamente, e não o fato de falar sozinho. eu criava mundos, e nesses mundos eu tinha muito pra dizer, havia muitos pra me ouvir. não cessei, nunca - pelo menos não até às portas dos quarenta - de fantasiar: fazer o exercício de querer outra vida. não nego que talvez essa brincadeira tenha se alongado por anos demais ou que de brincadeira não tenha nada. talvez seja mesmo um traço patológico. não tenho medo ser doente. tenho medo de me encontrar já na segunda metade da minha vida e ainda depender do vintém do seu olhar. eu não cessei de fantasiar outras vidas porque a pura imaginação era o melhor aprendizado que tive na infância, porque era a forma como alguma cor poderia sobressair no morno quadro de natureza morta do dia a dia do interior do brasil da década de noventa. eu imaginei, eu fantasiei, eu falei com meus personagens por anos. continuo falando com eles, com gente que não existe. essa gente que não existe ainda se desdobra em torno de mim, essa gente se coloca ao meu redor como personagens que são. olho para elas com carinho e as escuto em suas demandas, essa gente que não existe, e pra elas dirijo perguntas sobre por que da sua gargalhada e por que do seu nervosismo. um monte de gente que não existe, das quais não tenho medo nem quero me ver livre, com quem mantenho diálogos e sobre quem construo razões para serem bobas, tímidas ou desonestas. nada é estranho ou doentio. enquanto imaginação, enquanto fantasia, é mais inocente do que men[...]