[...]ei se foi o meu ferro quente demais ou se tua pele muito jovem, mas deixei em ti uma marca que não vai desaparecer tão fácil, tão cedo, por completo. tu sabe disso. os açoites que te deram no dia em que nos conhecemos, nem eles são mais marcantes do que eu na tua vida, no teu corpo. eu permaneço fiel àquele homem que chegou carregado por três amigos, aquebrantado e torcido, com a pele das costas em lascas finas, com a carne dos músculos lacerada e com alguns ossos das costelas à mostra. tu foi jogado na cama inconsciente, envolto num lodo de terra, urina e sangue. nós te banhamos, limpamos de ti a sujeira cruel que te tinha abatido. eu, especialmente, me esmerei por horas para fazer os curativos na imensidão do teu corpo, da nuca às nádegas, de ombro a ombro, tentando costurar o que ainda poderia ser costurado dos nacos pendurados. os pedaços ainda vivos de ti: tu os deu, eu os recebi e eu os retribuí. eu reuni teus estilhaços e velei tua convalescença por mais de um mês, trocando os curativos uma vez ao dia, ritualmente, com respeito pela tua dor, pela tua revolta. era um homem forte, robusto, que eu tinha nas mãos; entretanto, devastado por uma brutalidade repulsiva. tua pujança estava opaca, deitado de bruços, uivando de dor. eu tratei de incendiar essa centelha que, toque após toque, gemido após gemido, visita após visita de limpeza das feridas, cresceu nos teus olhos a cada momento em que tu me via chegar. por mais rude e grosseiro que tu fosse comigo, exasperado com este estranho inserido na tua privacidade, o que é compreensível, eu sei que teus olhos e teus ouvidos gravavam na mente e no coração o rosto e a voz deste que te cuidava. quando recuperado, ao se por de pé novamente, habilitado a cuidar das vacas, cavalos e porcos, e da horta, e do jardim, as cicatrizes monstruosas não haviam diminuído fresta sequer do grande paredão que é teu orgulho. pelo contrário: tu suportou ser flagelado até cansar o carrasco porque não renunciaria àquilo em que acreditava. e eu sei, pelo modo como tu me acompanhava andar pelo quintal, à distância: havia acrescido na tua estima pelo mundo o amor que tu começou a sentir por mim. nem o teu cenho franzido despistava esse sentimento de proximidade, de comunhão, de fusão que tu já via emergir com força dentro de ti - à noite, deitado no feno do estábulo, um pouco antes de dormir tu te perguntava sobre mim e te perguntava sobre o porquê de te perguntar sobre mim, e nem o sono me afastava de ti, pois eu passei a habitar teus sonhos (o lugar mais poderoso onde já morei, no qual meu ferro quente chegou e permaneceu). instalei-me em ti muito antes de eu realmente te penetrar. e aos poucos, como felino desconfiado mas interessado, tu te acercou de mim, às vezes sozinho solicitando onde estavam o jardineiro, o cocheiro ou a cozinheira, às vezes junto com teus amigos rindo do meu corpo magro e esguio com piadas jocosas. naqueles primeiros meses, tu nunca me agradeceu pelo cuidado leal que dediquei a ti na cura dos teus ferimentos. talvez porque tu já soubesse que o verdadeiro cuidado e a verdadeira cura, ou que o cuidado e a cura mais importantes, eu ainda operaria em tempos porvir: na tua história, no teu sentimento de si, nas tuas memórias, nos modos como tu passaria a te narrar e a te apresentar para o mundo. foi somente depois de um amigo teu vir a mim aos gritos com um dedo decepado, e de eu ir até um amigo teu que delirava de uma febre misteriosa, e somente depois de eu cuidá-los e curá-los, que tu passou a trocar comigo frases curtas com teu sotaque acentuado. nós dois, um face ao outro, nos entregávamos lenta mas firmemente à força gravitacional que havia nos colocado um sob a mira do desejo do outro. até que tu inventou uma ferida infeccionada em uma das cicatrizes do açoite, próxima ao teu ombro esquerdo. tu coçava com as unhas longas e sujas um pedaço de carne ainda não fechado. te dei um sermão ríspido, relembrando-o do tempo e energia que eu havia dedicado a limpar e cuidar dos teus ferimentos, ressaltando as orientações expressas que eu havia dado sobre tua higiene: deveria passar a ser diária e meticulosa, coisa que tu não tinha seguido (pelo menos não com tanto afinco). e te avisei que a punição seria severa: tu teria que me suportar por mais catorze dias, ao longo dos quais eu te encontraria ritualmente de novo para fazer e refazer curativos com bandagens de panos fervidos, com whisky para desinfetar o buraco purulento. tu riu e disse que me aguardaria. um pouco surpreso e, sem dúvida, feliz, senti que eu havia escorregado com delicadeza para dentro de ti, e que algo em nós começaria: os amanheceres que testemunharíamos sentados lado a lado na varanda, pequenos fragmentos de dias frios e ensolarados que passaríamos juntos cuidando da horta, gotas de chuva e de suor que trocaríamos cortando lenha, as respirações contínuas e quentes que sentiríamos de nossos narizes se tocando, adormecendo juntos. uma partilha sensível de tempo, de espaço, uma experiência de amor que, por mais proibida que fosse naquela época e naquela sociedade, nós não deixaríamos de cultivar e goz[...]