duas cartas sem sangue

[não vou concluir este post, que era a ideia original, porque me descobri uma pessoa feliz.]

A CULPA É O QUE GARANTE A UNIDADE DOS EVENTOS

[carta 1]

oi, Pequena. me surpreendi com teu email. falei com a D., e ela me disse que tu tinha voltado do rio pra sampa, que tinha encontrado outro apê na zêéle. tomei a liberdade de pedir pra D. teu endereço e te escrever esta carta a mão, comprar envelope, ir aos correios, colocar selo, tchá-tchá-tchá. quis ser analógico, romântico. "conservador", tu diria. ainda diz?

hoje o dia foi lindo, e acordei feliz. e decidi te escrever, feliz.

também sinto saudades de ti e também sofro um pouco ao lembrar da nossa criança. e acho lindo tu te referir à criança como "nossa". obrigado por me contemplar nas tuas memórias como pai da tua criança.

e agradeço também por tu te referir a mim como "a mais profunda e leal das tuas paixões, por mais que passageira". incomoda um pouco, mas é lindo. me reconheço enquanto alguém profundo e leal. e acho que o fato de eu ter sido "passageiro" diz mais sobre ti do que sobre mim. e isso não é uma crítica, é um elogio. porque tu sabe que os encontros entre as pessoas são "passagens". passamos, pois. nossa criança, passarinho.

tu fala sobre nosso fim. eu penso - sinto - ainda sobre nosso começo. tu me perguntou "o que nós temos, afinal? o que estamos vivendo juntos?". e eu respondi. dei uma definição, uma palavra para nós. a letra mata; ali morremos. tu tentou me dar uma criança, e nós dois fomos incapazes de dar um nome a ela. incapazes não; a morte foi mais rápida. nossa criança nem tocou a linguagem.


[carta 2]

não entendi esta tua msg. depois de mais de um ano tu ainda tem meu whats?

depois de mais de um ano tu ainda pensa em mim? seria ridículo se não fosse patético, sofrível. revoltante.

arrastei meu cu no asfalto quente do minhocão, sabia? e tudo do que lembro de ti, das memórias e trechos de fala, tão numa zona de muito sofrimento pra mim. então, respondendo:

não te quero mais na minha vida. qual a parte sutil dessa frase tu não entendeu?

uma amiga morreu de câncer semana passada. sabe no que eu pensei? "poderia ter sido eu no lugar dela." sabe o que mais dói disso? não é pensar em morrer. todo mundo deveria pensar em morrer, eu perdi uma criança de quem eu era pai. a morte tá aqui do outro lado da pele.

o que mais dói é pensar no que eu penso de mim mesmo a ponto de achar que não tem mais lugar na vida pra mim.

e, sim, tua passagem pela minha história tornou meu cercadinho menor. porque acreditei nas tuas mentiras e porque achava correto tu me detonar, me espezinhar e me desprezar. achava que tu tinha razão. e não tinha, e não tem.

não adianta comprar um novo chip e mandar msg. sim, eu te bloqueei.

e vou seguir bloqueando, bem como eu faço com os números de telemarketing.

porque tu não passa disto: um desconhecido que vende algo mentiroso.

e algo chato.

quer saber se sinto saudade?

então acompanhe:

0:00 sou eu correndo na direção contrária de ti.

0:32 sou eu com coragem.

1:03 sou eu na solidão da direção de um carro, pra distrair.

1:10 sou eu na distração do artesanato, pra reconectar.

1:19 sou eu tentando me apaixonar.

1:24 sou eu tentando ser mais bonito, pra variar.

1:35 sou eu esperando, sem chegar.

1:43: sou eu trabalhando.

1:51 sou eu experimentando, apostando.

2:03 sou eu com frio na barriga.

2:11 sou eu como meu pai. e sem vergonha.

2:19 sou eu.

2:27 sou eu apostando, como apostei em ti.

2:35 sou eu viajando, pra esquecer.

2:43 sou eu viajando, pra conhecer.

2:51 sou eu ouvindo aquela nossa primeira música.

2:57 sou eu fazendo as pazes com aquela cidade.

3:03 sou eu na companhia de quem não sabe que eu existo.

3:07 sou eu quando tu te aproxima.

3:12 sou eu quando tu acha que é macho.

3:18 sou eu quando me acho feio.

e assim sou eu com saudade de tu.