Quinta-feira de cinzas

[...]erma na minha boca, e eu gosto disso, daqueles jatos e daquele gosto. Gosto do constrangimento leve e suave de olhar nos olhos e sentir que houve um prazer ali. Mas não houve naquela vez. Foi horrível, me senti péssimo. Foi embaraçoso ter que me levantar e lavar meu rosto, lavar o corpo, tomar banho junto dele. Queria fugir pra longe, mas estávamos na minha casa. Não sei se foi ali mesmo que a gente desconectou, acho que não. Acho que foi antes disso, uns minutos antes disso, nuns beijos um pouco atravessados que nos demos, numas frases um pouco truncadas que falamos. Ou foi antes ainda, quando as nossas roupas não combinaram, quando a cor dos nossos olhos não eram as mesmas, ou quando as texturas dos nossos cabelos estavam em disparate. Ou antes? Quando eu nasci e fui lavado com água benta, quando ele nasceu e teve a pele do pênis cortada? Sim para todas essas possibilidades. Não houve momento em que estivéssemos juntos. E fiquei pensando sobre esses desencontros por horas e horas, penteando com escova fina todos os fios do tempo que passamos, procurando os sinais e acenos de tudo que nos interrompeu. Procurei por desvios de olhares, procurei por palavras cuja pronúncia em Português ele havia esquecido, procurei por fotografias que não me diziam rigorosamente nada, procurei inclusive pelo tamanho do corpo dele que fazia a minha cama sobrar nos pés e na cabeça. Achei tudo, estava tudo lá. Mas nesse penteado eu também achei umas frases de promessas, ou de convites, que acabam por colonizar o futuro da relação: “quando fores assistir a esse filme, me chamas?”, “estou te devendo um café!”, “sobre isso te conto com o tempo...”. É nisso que a gente se escora, ou se agarra, pra justificar o devir-noivinha. O querer-ser-noivinha. Desejar-estar-noivinha. Como podemos nos deixar se acreditávamos que éramos, ou que estávamos, noivinhos? De um denso e promissor relacionamento de carnaval, colonizado precocemente, só sobrou de verdade o devir-viúva de uma quinta-feira de cinzas. O querer-ser-viúva. O desejar-estar-de-luto. O devir-viúva vê sinais do marido morto em todos os lugares: “isso aqui ele me deu naquela viagem...”, “nós passamos por aqui uma vez e ele me disse aquela palavra...”, “foi ele quem sentou nessa cadeira pela última vez, foi ele quem se secou nessa toalha pela última vez, foi ele quem gozou na minha cara pela última vez...”. Todos os sinais que remetem ao marido morto gritam, seja na tela da TV, no cinema, na música, na arquitetura, nos sonhos, no espelho. Em todo o lugar estão rastros do falecido. O devir-viúva é tão cruel quanto o devir-noivinha. E tudo é uma invenção nossa, uma criação momentânea pra gente ter do que se ocupar. Em menos de 24 horas já não há mais rastro, nem sinal, nem referência, nem luto, nem grinalda. Apagou-se. Nunca foi. Em menos de um dia depois, o volume de desejo caiu pelos dois terços e vagamente lembro do formato do nariz, do perfume do desodorante, da distribuição de pelos no corpo. Talvez um flash de memória de um dedo do pé que é torto, de um dente apinhado, de um beijo burocrático, mas logo que lembro disso em seguida me ocupo da receita que acompanho pela TV a cabo. Quando toca novamente o celular, uns quinze dias depois, eu olho e penso “que número é este? Não vou atender, deve ser de call Center pra vender cartão de crédito”. E desligo, e nem me dou conta que duas semanas antes eu morreria por aquela ligação. Esse talvez seja o meu devir-Alzheimer.

Sim, claro, disso eu não tenho dúvidas. Estávamos em contextos de vida bem diferentes, não havia como eu me interessar por ele, nem ele por mim. Ele vem daquele jeito intenso, furacão, tornado, ciclone do deserto de Gaza. E eu nesse meu passo lento, lago de superfície tranquila e água profunda. Ele foi tão desinteressante, tão estranho, tão inadequado. Será que o fato de eu não ter me comovido com ele é culpa da minha insensibilidade? Mas o risco é justamente esse, o de tentar alcançar algum estrato de intimidade para depois pôr pesadas compressas de silêncio nesse buraco que cavamos um no outro. O risco de tentar auscultar uma interioridade que é rasa, a ansiedade em arranhar uma peça que é folheada. Bater na porta de um apartamento desocupado. E essa vizinha horrorosa continua a falar no telefone na janela do quarto! Odeio isso, porque acompanho como ouvinte de rádio os dramas dessa vidinha ridí[...]