Cartas a uma jovem bicha - Cuidado com os redemoinhos

Eu não sei de quem é essa chamada não atendida, mas acho que o texto da tua mensagem é péssimo. Porque tudo isso já foi escrito, e tudo já foi escrito deste mesmo modo. Não há novidade. Há uma recorrência aqui, o ‘devir-noivinha’, não te parece? O que repete? Se te chega um redemoinho tu te escondes num casulo ou te jogas nele? Não, não há resposta errada para isso, mas também não há a certa: veja o que te sobrou do que aconteceu hoje pela manhã. Louças para lavar e uns restos de comida de gato para pôr no lixo. O que te sobrou de ontem à noite foi uma camisinha usada pela metade, nem muito pra dentro e nem muito pra fora, e mais alguns meses de um rubor ingênuo ao lembrar dessa situação. O que te sobrou de ontem à tarde foi dez reais e cinquenta centavos que vão te fazer muita falta no próximo mês, já que nem pra comida terás. Tu sabes disso tudo, mas mesmo assim a noivinha se esconde dos redemoinhos mais belos e rodopia junto com os mais perigosos. E foi assim sempre. Sobrou de tudo também um pouco da casa vazia – que não é ruim, mas é estranho depois de tanto vigor – que ontem mesmo estava cheia de estórias fantásticas de viagens pelo deserto, aventuras, paisagens, rostos e corpos. Deixaste ir na enxurrada de causos, na torrente de contos. A paisagem, a visage, é exatamente esta: de água, de sentimentos que vêm em explosões. Foste seduzido por experiências que nunca serão tuas, que nunca estiveram presentes, que nunca foram pensadas. Tu nunca pensaste em chegar na tua idade com tantas narrativas. Todo contador é um sedutor. E tu só escutas as estórias, as narrativas, só ouves os contos e os causos: isso que sentes agora é apenas a ressaca do “efeito Sherazade” que logo, logo passa. Penso ser importante, talvez, assinalar que gostei da tua ousadia em alguns momentos. Admito que não esperava tanta segurança em pouco tempo. Contudo, não te animes, porque ainda há muito o que fazer para deixar de ser tão prisioneiro das tuas espinhas e cravos. Quem sabe pare de ouvir e passe a contar mais das tuas coisas? É uma dica, que não precisa ser levada ao pé da letra, mas que pode te ajudar: pense menos e faça mais. Ah, não! Não ligue! Não mande mensagem! Respondendo à tua pergunta: não era a ligação que tu esperavas nessa chamada não atendida, e não conte com um telefonema de carinho pelo menos nos próximos cinco dias. Isso porque quando perto do redemoinho tu ficas pequeno e insosso, insípido. Tu estavas profundamente desinteressante ontem. Ele é de ar, tu é de terra, te falta água. Os olhares da saída que tu lançaste para ele e que ele te lançou no momento em que fechavas o portão e no momento em que ele atravessava a rua foram pra ti um rastro de interesse e para ele um selo de uma carta que foi escrita enquanto ele dormia do teu lado – e enquanto tu ficavas acordado, assustado com o peso de um corpo estranho na tua já solitária cama –, postada de última hora. Era uma carta de oi-tchau. Tudo isso para dizer que a tua noivinha deve se recolher. Não haverá ligações – nem recebidas, nem perdidas – não haverá interesse. É próprio dos redemoinhos o nomadismo. Pois deixe que ele passe por outros lados, outros lagos, pequenos lagos de vazio. Se te doi a garganta hoje é porque represaste muitas estórias em ti ontem. [Represado] estás há muito tempo. Por isso tens problemas com a fala (te dói a garganta, prendes as palavras), por isso tens problema com excreção (diarreia e prisão de ventre, prende e escorraça em ti os sentimentos), por isso tens problema com a bebida (pões muita água pra dentro da represa com o único intuito de fazê-la transbordar). A figura que te significa é esta: de uma imensa e profunda represa que de tempos em tempos abre suas comportas. Quando isso acontece, és soberbo frente aos patéticos redemoinhos.