As viagens pra fora e as viagens pra dentro

[...] para isso, e eu acho que a ida foi bem tranquila. Eu não bebi na noite anterior e eu acordei cedo, bem antes do que eu imaginava. Deu tempo e vontade de comer granola, a granola mais insossa e pastosa que já comi. Eu sempre tenho essa esperança tola, porém plausível, de comprar a poltrona 37 e viajar ao lado de um homem que esteja disposto a se entregar aos prazeres da viagem, se é que me lês com atenção. Tenho esse paradigma de viagem perfeita, de viagem que dá certo, de viagem que rende. Nunca aconteceu, é claro. E eu acho que nunca aconteceu porque eu não entendo o corpo como um fluxo. E corpo é fluxo. É uma coisa que vai crescendo de dentro pra fora, que vai escamando e se regenerando, que vai gastando, produzindo poeira de corpo, pó de carne. Corpo é como o ato de urinar, falando em termos sadeanos. É um fluxo contínuo, denso, colorido, que sai de algum lugar e vai parar em outro que não sabemos. Produz-se em condições insondáveis, não sabem o que estamos mijando. E sai, precisa sair, não fica contido por muito tempo. Não pode ficar contido por muito tempo. Corpo é isso, é uma coisa que não se contém. Que não fica sempre assim, que muda, que pressiona, que tensiona. Imagine aquela vez, daquele porre de cerveja, daquelas 6 latas de Polar que tu bebeste sem janta e sem ir ao banheiro: lembra do alívio em mijar? Aquilo é o alívio do corpo. O corpo é um alívio. Mas eu vou costurando fio por fio porque na verdade não quero me perder, não quero me desagalhar. Um agasalho feito com tricot de ponto frouxo e esparso é estético, mas não é útil: não esquenta. Meu problema com o corpo é exatamente este: pra mim o corpo é um ponto frouxo, só serve pra estética. Erro com isso. Não vejo o corpo como um fluxo – pra mim ele é frouxo –, não o vejo como algo que vem e muda, que explode e que se torna outro, que já não era o que eu pensava e imediatamente depois de eu achar que o sabia já não me pertencia mais. Não sei do meu corpo, não o vejo. Pessoas dizem “ta fortinho!”, ou “que pancinha!”, ou “muito magro”, ou “não curto magricelos”, ou “muito peludo”, ou “tu é circuncidado?”, ou “que sacão”, ou “fica melhor de cabelo raspado”, ou “que lindo teu cabelo cheio”, e nada disso compõe meu corpo. Nada disso é meu corpo, não traduz meu corpo de modo legível. Não há corpo traduzido. Tenho horror do meu cabelo ‘escabelado’, tu bem sabes. Pois ele ‘escabelou’ meu cabelo na hora do boquete. Pegou meu cabelo e esfregou, desarrumou, puxou forte, entrelaçou pelos dedos e ainda sobrou por entre as mãos, os fios escorregaram e foram pulsados junto com a cabeça. Meu cabelo e minha cabeça, minhas mãos e meus dedos, minha língua, todos engajados num boquete. Terminou gloriosamente, como (quase) sempre termina: num esguicho na minha bochecha. E o corpo? Cadê o corpo? Tava perdido na sala, mas não estava no boquete. O corpo, tal como urina, também é gota que escorre, que sobra do fluxo. Há corpo que é resquício do fluxo, que é reticência; há corpo que é reticente. É o silêncio constrangedor do gozo com estranhos, é a vergonha da gordura no primeiro dia de academia, é a vergonha da fraqueza, das linhas longilíneas e curvilíneas do corpo. Tudo muito burguês e classe média: academia? Gordura? Colesterol? Circuncisão? Corpo-fluxo? É tudo classe média, essa filha do capitalismo e afilhada da psicanálise, mãe do individualismo. Silicone nos peitos, métodos pra aumentar o pênis, depilação a laser, clareamento anal, (circuncisão, eu diria), lente de contato, pintar cabelo, cortar cabelo, fazer a barba, tudo isso é uma invenção da classe média. Somos um grupo prodigiosamente dotado de criatividade inútil. Meu corpo, por exemplo, é uma gota. Um resquício de corpo. E quando meu corpo está perto do dele, do corpo dele, com aqueles cabelos anelados e nariz gigantesco, de homem com dote, com voz rouca de cigarro e bebida (quem disse que cigarro e bebida fazem mal? São adornos da estética musical), com os erres arrastados, os olhos que se fecham, cílios que se tocam, olhos que se abrem com um sorriso e os dentes brancos – nem tão brancos, pela bebida e pelo álcool – que rasgam a cara, que rasgam os lábios, os versos cabem nos dentes amarelados e nos anéis dos cabelos, em curvas, palavras curvadas, sons amarelados. Um microfone, uma mão, uma boca e uma voz. Ou várias vozes. Uma voz canta e uma voz que me fala, uma que me diz ‘oi’, uma outra que te diz ‘oi’, uma que me conta dos resquícios deste corpo – que não é gota, não! Que é fluxo, que é urina, que é tensão! –, uma que cala e outra que canta bem baixinho, pra nenhum público, já de madrugada sobre o palco dos travesseiros, voz protagonista de um chamego e de um beijo – ou dois ou três [sou capaz de mais, mas será que é demais pro fluxo? Pra minha gota é sempre demais]. Esse é o mesmo desejo que me faz comprar sempre a passagem pra poltrona 37. O desejo ingênuo de que um olhar escorregue da poltrona 40 para a poltrona 37. E que o corpo da poltrona 40 entre no fluxo – na gota – do corpo da poltrona 37. Não houve nada durante a viagem, nem na de ida nem da volta. O que eu queria era férias, mas sempre programo o despertador do celular para às 8h do outro dia, isso porque o número 8 é meu número de sorte... [...]