Assassinos que há em mim

Tem por aí um cheiro forte de tarde que termina, um cheiro de cansaço do fim do dia, de gozo esquecido desde a manhã entre os lençois. Não chega a ser nauseante, nem é delicioso. É mais um dia já do segundo semestre de um ano ímpar que faz o sol se por.

E não haveria de ser? Pela manhã me satisfiz em arquitetar pequenas vinganças, mil vinganças pululantes para meu futuro próximo: um olhar de desprezo, um riso irônico, umas palavras cortantes (It’s word, its sword), dezenas de facas lançadas em velocidade cortante sem alvo algum. Fazem, todas essas, parte da minha bagagem – e da minha munição – para dar mais um passo além sem ter que baixar a guarda para nada.

À tarde me ocupei dos socos, dos tapas e dos pontapés que desejo dar, das grandes violências e dos assassinatos por estrangulamento que sonho em cometer – justamente por estrangulamento, de modo que minha vítima não fale, não sussurre, não seja capaz de pronunciar palavra sequer; ou seja, morte pelo silêncio. Entretive minha mente no planejamento dos espancamentos que anseio: pegar pelos cabelos e bater com força sua testa contra o marco da porta, reincidir uma cadeira em suas costelas, jogar pela escada e ver suas pernas e seus braços darem nós enquanto rola degraus abaixo. Jamais torturaria, pois gosto de agressões explosivas e agudas, nunca seria capaz de sofrimentos crônicos e requintados.

À noite, depois que o cheiro do fim se desprenda e depois que as pessoas esquecerem que lá se foi mais uma quarta-feira, acho que vou investir nas decepções e nas mágoas. Nos dramas que farei quando eu for trocado por um corpo mais rijo e mais enxuto, nos textos teatrais que vão misturar culpa e rancor, que vão se perguntar “por que eu não sou melhor?” – e cuja resposta será sempre um vácuo anônimo. Depois de assassinar, violentar e me vingar, vou lamentar tudo isso. Pra poder recomeçar do zero na manhã seguinte.