"Não nos importamos nenhum pouco em sermos confundidos com aqueles que nos atropelaram de tal maneira tão intensa"

- Eu não sabia que tua avó tinha sido alguém tão importante pra ti.

- Mas eu não disse que minha avó foi importante pra mim. Apenas sublinhei que quando eu era criança, por causa da chuva que caía, ficava temeroso que sua casa viesse a baixo. Havia, sim, uma certa compaixão pela fragilidade daquela senhora idosa. Mas nunca disse que ela foi importante pra mim.

- Então ela foi apenas uma metáfora de fragilidade?

- Pode ser que sim. Nosso pai, filho dela, também nos foi uma metáfora de fragilidade, mas a seu modo específico. Mas não queremos manter as nossas lembranças nessa polaridade entre profundeza e superficialidade, dividindo aqueles que foram de fato importantes daqueles que funcionaram apenas como metáforas para a experimentação e sedimentação de alguns sentimentos. Há na nossa história uma série de experiências com pessoas tão distintas que não podem ser classificadas em categorias separadas e hierárquicas; não podemos classificar hierarquicamente essas experiências nem essas pessoas. Mas de um modo geral fazemos uma distinção sutil entre elas, mais a título de precaução e de segurança do que propriamente de hierarquização: houve e haverá aquelas com as quais simpatizamos, com cujos corpos ou palavras nós flertamos, pessoas mais ou menos admiráveis e que se mantêm num estado de reserva discreta nas nossas lembranças. Houve e haverá outras, um pouco mais sagazes, que de fato nos conquistam: nos tomam num átimo ou lentamente, nos cativam em velocidades diferentes, em tempos diferentes, vão nos entendendo e nos analisando, dialogando conosco, eventualmente propondo cortes e mudanças naquilo que somos. As pessoas que nos conquistam introduzem essa força diferencial, esse processo de diferir, mas ainda assim não borram a fronteira entre o ‘eu’ e o ‘outro’. Mas aí houve e haverá aquelas pessoas que nos rasgam, que se jogam contra nós como cavalos se lançam contra uma falésia, ou mais que isso, como asteróides que colidem contra planetas; são pessoas que não pedem licença, que nos arrombam – às vezes no sentido literal da expressão – que se chocam contra aquilo que nós somos com uma violência tamanha, empurradas por forças que são às vezes as mesmas que nos fazem estar em sua rota de colisão, ou que às vezes nos fazem delas fugir, forças que nos fazem por elas transpassar e entrecuzar. Essas pessoas são aquelas que, de fato, nos constituem: a força do nosso encontro, violento ou não, faz com que nos amalgamemos, faz com que se imploda a diferença entre o que era ‘eu’ e o que era ‘o outro’, que por sedimentação, choque, rasgo, integração ou assimilação fazem com que os limites definidores do ‘eu’ sejam suspensos. E passamos, então, a fazer parte destas pessoas às vezes tanto quanto elas fazem parte nos nós, sem que uma distinção essencial entre o ‘eu’ e ‘o outro’ seja necessária – isso porque não nos importamos nenhum pouco em sermos confundidos com aqueles que nos atropelaram de tal maneira tão intensa.

- E por que essa distinção serviria como precaução ou por motivo de segurança?

- Porque é destas últimas que nossas lembranças serão pra sempre povoadas. Porque estas últimas serão, provavelmente, aquelas cujos nomes vamos sussurrar segundos antes da morte, pois de alguma forma elas estarão ali morrendo um pouco junto conosco. Porque essas últimas são aquelas que num intervalo mínimo de tempo, com o carro parado na sinaleira, esperando na fila do caixa do supermercado, mijando no banheiro, são elas que vão emergir das brechas do nosso ‘eu’ e então diremos: "lembrei dele" ou "lembrei dela".

- E isso é tão ruim para que tenhamos que nos proteger dessas pessoas?

- Não sei se é ruim, mas certamente é perigoso.